Foi preciso um sucesso internacional só equiparável a Maus, uma excelente adaptação para cinema de animação, e o inspirar de uma nova vaga de banda desenhada de contexto político, autobiográfico e realizada no feminino, inclusivamente por autoras do Oriente (Parsua Barshi, Zeina Abirached, em menor grau Rutu Modan). Antes tarde do que nunca. Notável obra de estreia da autora iraniana Marjane Satrapi, Persepolis relata a evolução do Irão, desde a queda do regime corrupto do Xá, até ao fundamentalismo religioso e social dos “Ayatollahs”, passando pela guerra Irão-Iraque.
A narrativa tem duas componentes complementares, de importância equivalente. Por um lado há uma contextualização histórica e um relato factual de acontecimentos, por outro, segue o percurso pessoal de Satrapi, uma criança de dez anos no início da história. Esta segunda componente, não só “justifica” o traço caricatural com óbvias conotações infantis, como permite um olhar à vida quotidiana e à evolução da autora, incluindo a sua percepção da sociedade, das relações de classe e dos verdadeiros custos e consequências da mudança política. A visão de Persepolis foge assim dos maniqueísmos e ideias feitas comuns nas abordagens externas ao Irão, sendo particularmente interessante o modo como o tom muda, à medida que a revolução laica vai dando lugar ao poder religioso, e uma forma de opressão substitui a outra. Isto embora a ascendência aristocrática da própria Satrapi (cuja família tinha uma longa tradição de poder) deva ser levada em conta quando se analisa Persepolis; o retrato do narrador nunca é neutro, e tende a sê-lo tanto menos quanto mais elevada é a tensão. E a tensão era enorme na antiga Pérsia. Satrapi acabaria, aliás, por exilar na Europa, onde o contacto com autores da editora francesa L’Association haveria de resultar num dos mais reconhecidos trabalhos na banda desenhada contemporânea.
A utilização do registo autobiográfico, aliado a um traço caricatural, tem uma longa história, fundada na BD “underground” norte-americana (com Robert Crumb ou Justin Green) e continuada por inúmeros autores. Com ligação direta ao trabalho de Satrapi está obviamente Maus, de Art Spiegelman (até pela espiral de opressão, comum a ambas as obras), ou as reportagens de Joe Sacco. Isto embora o estilo e a forma de Persepolis muito devam ao excecional David B. (L’ascension de l’haut mal), sobretudo em termos de composição e no uso de “blocos” de negro. O interesse formal deste registo reside no facto de o tom característico da autobiografia garantir, de imediato, um cunho de “verdade” narrativa. Por seu turno, o traço (na sua óbvia “não-verdade”) cria a distância necessária para que o leitor partilhe sem se sentir invasor. Ao mesmo tempo que permite, com naturalidade, a utilização de simbolismos (os gatos e ratos de Maus, as fantasias infantis de Persepolis), que seriam de todo incongruentes noutros contextos. Persepolis transcende óbvias limitações gráficas e, noutros quadrantes, o seu impacto abriu portas a novos autores, e permitiu vários tipos de abordagens académicas à banda desenhada em termos de feminismo, religião ou relação Oriente-Ocidente. Em Portugal se calhar o mais simples é desejar que a espera por Persepolis 2 (que relata o exílio e a adaptação ao Ocidente) ou por outras obras de Satrapi (Broderies, Poulet aux prunes) não seja tão longa.
Persepolis. Argumento e desenhos de Marjane Satrapi. Contraponto, 150 pp., 19 Euros.