Ignoro a relação que Tiago Manuel possa ter com os seus diferentes alter-egos. Personagens vestidas num momento criativo específico e logo decartadas, ou personalidades que emergem quando lhes apetece ou quando convocadas? Seja como for, terá particular admiração pelo trabalho de algum deles, alguma secreta estima pessoal? Pouco importa. Independentemente de haver (ou não) uma maturação do autor no definir de outras identidades, “Tamayo Marín” é uma das suas mais vibrantes criações, e o seu livro “A tempo inteiro” (Assírio & Alvim) uma obra forte e surpreendente. Ilustrador mexicano, a filiação artística de Tamayo Marín é, de certo modo previsível, passando por referências aos grandes muralistas (Orozco, Siqueiros, Rivera), a Frida Kahlo e ao notável ilustrador gráfico José Guadalupe Posada, alvo de uma excelente exposição em Lisboa (2004). Posada parece, de resto, o mote maior para a obra de Tamayo Marín, curiosamente nos antípodas do menos politicamente empenhado pintor mexicano Rufino Tamayo, contemporâneo de Rivera, Orozco e Siqueiros.
Apropriando-se de iconografia mexicana típica, Marín (como Posada) usa a figura do esqueleto como protagonista/comentador de um livro feito de três projetos de ilustração distintos e escrito em inglês. Tal como muitos dos seus compatriotas (e como Rufino Tamayo), este alter-ego de Tiago Manuel fez carreira nos EUA. O primeiro momento (“A tempo inteiro”) começa de forma tímida, com uma jocosidade em torno da Morte oscilando entre o irónico e o cruel, em desenhos marcados, naturalmente, pela cor vermelha. Da doença e velhice aos acidentes e assassinatos (com várias homenagens pelo meio), o trabalho de Marín vai adquirindo contornos de comentário social e político, que o humor disfarça mais do que vinca. Essa vertente é mais óbvia no segundo projeto, “América limpa”, um retrato seco e racional da violência nos EUA nas suas várias vertentes (ambiental, racial, institucional), ilustrada com as cores fortemente simbólicas da respetiva bandeira. Se há nesta faceta de Marín alguma distância a uma realidade que lhe parece estranha, e que chega a dar a sensação de simplismo (anti)turístico, o último movimento torpedeia por completo essa sensação. “Agora já posso brincar?” alterna dois tipos de abstracionismos: a imagens lúgebres de pessoas desesperadas capturadas por linhas grossas e cores pesadas seguem-se desenhos claros de objetos anódinos com cores alegres. Cuja legenda torna inapelavelmente ameaçadores. A poderosa claustrofobia surreal gerada pretende responder à seguinte pergunta: se o sono da razão produz monstros, o que produz o sono da Morte?
O uso do esqueleto tem um simbolismo múltiplo na obra deste Tiago Manuel, feito Tamayo Marín. A morte, sim. O medo e o desespero, claro. Mas também a remoção de camadas, o descarnar, a busca de fundamentos. A exploração da possibilidade de múltiplas leituras usando imagens e palavras simples cuja combinação transcende espetativas. Desse ponto de vista, e sem ser tecnicamente banda desenhada, “A tempo inteiro” encarna na perfeição a complexidade e o potencial da linguagem. Esta não é apenas mais uma viagem de Tiago Manuel em torno da identidade.
A tempo inteiro/Full Time. Ilustrações de Tamayo Marín/Tiago Manuel. Assírio & Alvim, 143 pp., 20 Euros.