A iniciativa das 1001 bandas desenhadas (http://www.paulgravett.com/index.php/1001_comics/1001_atoz/) parece vir no seguimento de muitas outras listas de coisas que se devem fazer antes de morrer, dado que ninguém parece contentar-se com apenas viver durante esse período. Lugares a visitar, livros a ler, filmes a ver, comidas a experimentar. As listas são boas para revelar coisas novas, más se vistas enquanto obrigação. E cada lista é apenas isso mesmo: UMA lista, entre milhares possíveis. Mas esta é grande e de banda desenhada, difícil de ignorar por “nerds” como eu. Até já transformei parte da lista em “lista de compras possíveis”.
O organizador do projeto, Paul Gravett, é um grande conhecedor inglês de banda desenhada, mas contou aqui com a colaboração de muitos outros especialistas, que lhe indicaram obras a incluir. Não podia deixar de ser assim, embora Gravett confesse ainda não ter lido todas as obras, o que é curioso, para não usar outra palavra. E o projeto merecia ser complementado com algo que pudesse disponibilizar algumas das menos conhecidas.
Olhando de relance fica clara a diversidade de motivos para escolher obras, que vão desde o interesse histórico-nostálgico ao sucesso incónico-comercial. No meio ficam as bandas desenhadas de grande qualidade que vale de facto a pena ler antes de morrer (depois é difícil…).
Estas últimas deviam ser as únicas presentes, em minha opinião. Numa lista de filmes que vale a pena ver duvido que se incluíssem “serials”, filmes da “Lassie”, Louis de Funès, Michael Bay ou Adam Sandler (fora “Punch Drunk Love”, mesmo que seja um filme sobrevalorizado) ao lado de Ford, Bergman, Fellini, Scorcese, Truffaut, ou mesmo James Cameron e Christopher Nolan. É um trauma que a banda desenhada teima em não superar ao recusar-se a separar estas águas, provavelmente por dois tipos de motivos: a) Há uma corrente pouco saudável de “geek fan-boy”; e b) Teme-se que a não inclusão de nomes reconhecíveis afaste a discussão mais global deste tipo de iniciativas fora do mundo da BD, que é (também) o que se pretende.
Não tenho nada contra BD comercial ou infanto-juvenil, pelo contrário. Mas tem de sobreviver fora do contexto nostálgico, e se é preciso explicar de forma muito elaborada porque deve uma obra figurar numa dada seleção, provavelmente é porque não devia lá figurar. Em 1001 BDs há demasiados exemplos destes.
No entanto a lista tem muitas notáveis obras que valem a pena ser lidas, desde bandas desenhadas que já foram objeto de muita atenção (“Maus, Persepolis”, “Mort Cinder”, “Watchmen”, todos os grandes clássicos europeus em termos de séries) a outras que vale a pena conhecer, de autores como Kaz, Ben Katchor, Junji Ito, Gianni de Luca, Guido Buzzelli, Urasawa, Debeurme, Jeffrey Brown, Dominique Goblet, Gustavo Arriola, Jason Shiga, Hideshi Hino, Dino Buzzati, Bastien Vivès…
Como seria compreensível a discussão nacional da lista deteve-se no facto de Portugal contar com uma entrada, “O Diário de K.” de Filipe Abranches. Independentemente de tudo o mais o autor merece por isso parabéns. A escolha faz sentido se se considerar que os dois críticos portugueses envolvidos no projeto foram Pedro Moura e Domingos Isabelinho, e se conhecer o que valorizam numa obra. Não que não sejam leitores atentos e ecléticos, mas o que se pedia aqui era muito preciso, e não tiveram o “luxo” de críticos de mercados mais fortes que (é um palpite) terão podido incluir, não só obras que admiram verdadeiramente, como as tais BDs importantes do ponto de vista histórico, ou tesouros nostálgicos das respetivas infâncias.
Claro que a participação de Moura e Isabelinho não se resumiu à seleção de um nome, mas certamente também passou por aí. São os críticos nacionais que melhor se movimentam nestes círculos, e não há nada a apontar. Sendo um grande admirador de Filipe Abranches, não o sou particularmente de “O Diário de K.” (a julgar por conversas nas recentes Conferências de Banda Desenhada sei que estou em minoria). Mas, mesmo que fosse, honestamente teria pensado primeiro em José Carlos Fernandes e na sua “Pior Banda do Mundo”, ou “Filipe Seems” de António Jorge Gonçalves e Nuno Artur Silva, ou “Salazar” de Miguel Rocha e João Paulo Cotrim, e ainda a “História de Lisboa” de Abranches e A. H. de Oliveira Marques. Não sei por que ordem. E pouco mais, dado que não seria plausível que se pudessem incluir muitas obras. Com muita pena minha deixaria para uma segunda linha, por exemplo, Fernando Relvas (“L123”), Nuno Saraiva e Júlio Pinto (“Filosofia de Ponta”), Stuart Carvalhais (“Quim e Manecas”), ET Coelho (“Ragnar o Viking”, com Jean Ollivier), Fernando Bento (“Beau Geste”) ou Carlos Botelho (“Ecos da Semana”).
Mas o que fica de uma abordagem inicial à lista é que Portugal em BD é, neste projeto, igual a um. É bom? É mau? Depende. Sendo deprimente é mais do que zero… No entanto soa a compensação.
Se considerarmos a listagem por países Portugal está ao mesmo nível do Egipto, Nigéria, Chile, Grécia, Argélia, China, República Checa, Croácia, Hong Kong (?), Indonésia, Nova Zelândia, Filipinas, e em países menos representativos as afinidades dos selecionadores são sempre mais visíveis. Apenas conheço os representantes do Chile (“Condorito” consiste numa série de “gags” como desenho tipo Disney/Zé Carioca) e Grécia (o muito interessante “Logicomix”, de que já aqui se falou), e sei que nas Filipinas e China é duvidoso que uma só escolha cumpra os mínimos. Mas teriam estes países mesmo qualidade que mereça mais do que uma seleção? Ignoro. Portugal tem, sobretudo comparando as obras selecionadas dos mercados mais fortes (franco-belga, norte-americano, italiano, espanhol, argentino, inglês, canadiano; confesso não ter lido o suficiente do japonês para avaliar). Não é uma opinião, acho que posso mesmo chamar-lhe facto. Sem chauvinismos.
Uma das reações imediatas a uma lista deste género consiste em rever BDs que amigos e familiares me têm trazido do Nepal, Emiratos Árabes Unidos ou Albânia. Dá vontade de viajar por aí (na atual conjuntura, usar o Google…) e procurar pérolas perdidas de BD nestes e noutros países não cobertos pela lista. É certo que muitas nações com uma-duas escolhas estão lá, sejamos claros, para compor o ramalhete e combater preventivamente a crítica ao centralismo dos grandes mercados de banda desenhada. As escolhas “a sério”, as que fazem doutrina, estão na BD norte-americana, canadiana, franco-belga, japonesa, italiana, espanhola, inglesa. O resto é paisagem.
Nessas escolhas há coisas que não fazem sentido, umas mais, outras menos. E quanto mais vejo, mais encontro, por isso vou parar e discutir apenas o que me chamou a atenção. Vêem? Isto das listas é giro! São como os legos (ainda se usam legos?): horas de diversão e ninguém faz as mesmas construções.
Já agora: não li a fundo o enquadramento e explicações de Paul Gravett, nem comentários dos seus colaboradores, alguns dos quais se têm vindo a distanciar do resultado final (também é típico). Isto por dois motivos: um profundo, um prático.
O profundo: não leio entrevistas de criadores a explicar as suas criações antes de as ver/ouvir/ler/fruir. Ouvir autores significa correr o risco de que explicações sobre o esforço (honesto) que introduziram no seu trabalho consigam resgatar (na nossa cabeça) o facto de uma obra ser pouco conseguida. As obras devem falar por si, não é? Então que falem. E esta obra em particular consiste numa lista. Mais claro e linear do que o resultado final do exercício é difícil.
O prático: o livro tem 960 páginas e saiu inicialmente em capa dura, só recentemente em capa mole. No seu site Paul Gravett revela que a maior parte da informação sobre as escolhas está no livro. Faz todo o sentido: o objetivo de fazer um livro é que ele seja lido, não apenas dissecado online. Mas, volto a repetir, o resultado final deste livro em particular é a lista, não as justificações. Em resumo: ainda não decidi se o livro sobre as 1001 bandas desenhadas que se devem ler antes de morrer é um dos livros que se devem ler antes de morrer.
Ao correr a lista a principal questão é que se “desperdiçaram” lugares nas 1001 BDs nomeando a mesma coisa várias vezes. “Batman” aparece em nome próprio (e será a estreia em 1939 algo que seja mesmo preciso ler?), e depois em diversas histórias soltas (seis no total), com um claro enviesamento no final do século XX. Ou seja, sete entradas distintas. São nomeados quatro álbuns de “Astérix”, cinco de “Tintin”, três de “Blake & Mortimer”, dois de “Corto Maltese” e de “Spirou & Fantasio”, várias histórias dos patos da Disney de Carl Barks (e uma de Don Rosa, muito justamente). Nada contra, se o mesmo critério fosse coerente ao longo da seleção. Não é, nomeiam-se outras séries como um todo: “Blacksad”, “Dylan Dog”, “Alix”, “Thorgal”, “Martin Mystère”, “Alack Sinner”, “Os Passageiros do Vento”, “Incal” (entre muitas outras), e o mesmo sucede em quase todas as séries japonesas. Incluem-se mesmo personagens tratadas por uma imensidade de autores (“Thor”, “Hulk”), sem descriminar histórias; valem portanto enquanto símbolos? É preciso ler “Dylan Dog” todo antes de morrer, é preciso ler apenas a primeira história, ou basta uma história qualquer, à escolha? No caso de “Thor” pode ser o de Walt Simonson, em vez da estreia? Ficamos só pelo primeiro volume do “Philémon” de Fred e de “As Torres de Bois-Maury” de Hermann? E, ainda mais ridículo, pela primeira parte de aventuras duplas de “Tintin” ou presume-se que as continuações estão “implícitas” (“O Segredo do Licorne” e “As Sete Bolas de Cristal”; mas não “O Tesouro de Rackham o Vermelho” e “O Templo do Sol”)? E só um “Lucky Luke”, um volume de “Astro City”? Era mesmo essencial incluir uma história da medíocre “Os Túnicas Azuis” e a série inteira de “Yoko Tsuno”? Ou não se conseguiu escolher porque selecionar de entre o mesmo nível médio era impossível e ia levar ainda a mais críticas, portanto optou-se pela solução fácil? No caso de “Largo Winch” até se referem dois volumes numa única entrada. Finalmente, como é possível que do subvalorizado italiano Gianni de Luca se cite o meritório “Comissário Spada”, mas não as geniais adaptações de Shakespeare?
Não faz qualquer sentido.
Teria sido preferível nomear apenas séries/personagens, e depois dar sugestões de volumes/histórias que se poderiam ler para ter uma boa ideia da qualidade e características das mesmas nos textos que as acompanham. Algo que, de resto, acontece em muitos casos. E também referir, já agora, volumes que não deviam contar, como o “Spirou & Fantasio” não realizado por Franquin, ou o “Blake & Mortimer” pós-Jacobs. Em princípio mantinha-se a seleção das obras isoladas, mas era algo a rever caso fossem nomeadas obras de um mesmo autor, objetivamente semelhantes (Ben Katchor, Joe Sacco, Posey Simmonds e Christophe Blain, para dar exemplos, e apesar da excelência dos autores). Mas com tudo isto seria talvez mais difícil chegar às 1001! Tinha de se voltar a examinar a BD da Jamaica, Azerbaijão e Burkina Faso em busca das tais pérolas perdidas. É pena José Carlos Fernandes estar “reformado” da BD, cheira-me que havia aqui material para uma série absurda que se poderia intitular “Em busca das BDs do Mundo”, aproveitando afinidades com a sua “Agência de Viagens Lemming”, editada em Espanha pela Astiberri, e que contará por isso como obra “espanhola” numa lista futura de BDs que siga as mesmas regras desta.
Pois é: o facto de por “Países” se querer dizer locais de primeira edição faz com que obras como “Alack Sinner” ou “Perramus” sejam listados como “italianas”, quando são de autores argentinos. Já “Zil Zelub” e “HP & Giuseppe Bergman” dos italianos Guido Buzzelli e Milo Manara surgem como franceses. Se um livro de Saramago tivesse sido editado primeiro noutro país faria diferença em temos da filiação da obra, haveria alguma preocupação com estas distinções? Mas isso tem solução muito fácil: basta fazer a listagem por autores, uma das boas funcionalidades da lista interativa de Gravett (ainda se pode dividir por anos ou géneros). Claro que aí surgem outros problemas que denotam falta de atenção. Desde logo surgem dois autores portugueses: Filipe Abranches e… Raul Brandão. É certo que “O Diário de K.” é adaptado de textos de Brandão, mas daí a considerá-lo co-autor de BD vai uma longa distância. O mesmo se verifica noutros lados: Paul Karasik é, que eu saiba, o (muito meritório) editor de “I Shall Destroy All The Civilized Planets!,” o autor é só Fletcher Hanks.
Por último, e em termos de uma discussão nacional, é importante lembrar que em 2004 o Festival da Amadora promoveu uma escolha das 100 BDs do Século XX, recorrendo a vários críticos de diferentes países, e com organização de João Paulo Paiva Boléo. Antes, em 1999, o The Comics Journal tinha publicado um Top de 100 Comics, coligindo escolhas de oito especialistas e focado no mercado norte-americano.
Muito criticada na altura a iniciativa da Amadora era, na base, equivalente a esta das 1001 BDs, no sentido em que se procurava (ao contrário do Comics Journal) uma perspetiva global. Algo que é muito difícil de fazer, muito mais do que no cinema ou na literatura. Como bem assinalam Isabelinho e Moura em várias discussões e textos não é só um problema estrito da falta de difusão/divulgação/traduções, mas de ser difícil a críticos e especialistas dos três grandes “grupos” (anglófono, francófono e nipónico, para simplificar) saírem dos respetivos universos, balizados por tradições históricas distintas, e universos criativos que ainda permanecem muito separados. A solução encontrada nas 1001 BDs parece ter sido a de dividir o espaço e deixar co-existir visões semi-autistas, não debatê-las.
Não deixa de ser sintomático que, como sempre, a publicação de uma lista tente obscurecer as que vieram atrás, mas, por muito que agora se tente esconder ou esquecer isso, a iniciativa da Amadora teve mérito inegável. Podia ter uma seleção menor e menos representativa de críticos, focar pouco mercados importantes (sobretudo o japonês), mas o princípio era parecido (para não dizer idêntico) ao das 1001 BDs, algo que é comprovado em inúmeras escolhas comuns e no facto de as discussões sobre os pontos fracos do exercício serem quase iguais às que leio agora quanto ao trabalho de Gravett. Ou seja, a Amadora foi pioneira, pena é que, como tenho referido muitas vezes desde essa altura, o evento não tenha sido mais aproveitado (nunca saiu o livro previsto), até para projetar mais a própria Amadora. Porque é para isso que as listas servem: para sugerir leituras, chamar a atenção e estimular o debate.
Portanto sigam o “link” das 1001 BDs, e comecem uma lista, um debate, qualquer coisa. Sobretudo: leiam.
PSDCQMVL (PS de Coisas Que Me Vou Lembrando):
Parece-me que há demasiados títulos de 2009-2011, ou seja obras sobre as quais temos pouca distância crítica (“Habibi” de Craig Thompson mal saiu, e outros ainda não estavam distribuídos de forma alargada na altura da publicação). Por outro lado esses títulos têm o potencial de estimular leitores que podem nem ter muito contato recente com a BD. A minha “lista de compras potenciais” é quase toda tirada daí. E essa deve ser outra função das listas.