Victor Mesquita é uma figura marcante da banda desenhada nacional desde a altura em que, no período pós-revolucionário de 1975-76, participou na excelente e pioneira revista (de BD…)
Visão, da qual viria aliás a ser afastado. Mas a sua fama vem sobretudo do álbum (iniciado na
Visão)
Eternus 9: Um filho do Cosmos, que sintetizava várias influências da BD francófona da época num misto de ficção científica e misticismo, com padrões de qualidade formal (planificação, traço, rigor anatómico, cor) muito elevados para a época, e transcendendo por completo a realidade nacional.
Um filho do Cosmos foi um livro prometedor e, em simultâneo, é uma obra crucial na história da BD portuguesa, pela construção e projecção. Estas duas coisas não são equivalentes: apesar das suas qualidades o livro tinha o potencial de lançar uma carreira para outros patamares, algo que acabou por não suceder. Daí ser lícito encarar o novíssimo
Eternus 9: A cidade dos espelhos (Gradiva) com um misto de interesse e desconfiança.
Não é útil olhar para este livro como aquilo que não é. A personagem Eternus 9 não regressa, não há de resto qualquer herói, nenhuma história no sentido clássico. O que é tanto mais fascinante quanto essa parece ser, à primeira vista (formato, estilo gráfico, ritmo narrativo) a filiação clara do livro. O que há então? Há a angústia extrema de um autor com talento, ego e nome. Um autor cujo verdadeiro regresso (após vários projectos curtos) deixou de ser aguardado, porque aguardado há demasiado tempo. Um autor que cultivou espetativas e assinou contratos. Um autor perdido no seu universo. Um autor com muitas ideias, demasiadas pistas. Um autor que não sabe bem o que há-de fazer.
Se em termos de referências bedéfilas o misticismo cósmico de Jodorowsky e Moebius substitui a influência de Druillet no livro anterior, é o Fellini de 8 1/2 que espreita. Um criador a preencher páginas com fragmentos inacabados à espera que surja uma síntese, uma inspiração, qualquer coisa. A (leve) ficcionização em termos de identidades, ou o facto de estarmos num mundo de ficção científica, não esconde o óbvio. Não estamos nada, como o próprio título sugere estamos na cabeça de Victor Mesquita, assistimos na primeira fila enquanto luta com demónios pessoais e criativos. Apesar de um disfarce operático, o tom faz uma ponte surpreendente com talentosos autores de BD mais confessional e autobiográfica, por vezes com os mais frágeis (John Porcellino, Madison Clell), por vezes com os mais confiantes (Fabrice Néaud, Joe Matt, Chester Brown), sendo essa a essência do conceito de EmovisionBD proposto pelo autor. A vulnerabilidade permite contextualizar textos grandiloquentes e referências pseudo-científicas forçadas (curiosamente numa editora que trabalha essa vertente), dá ao leitor um escape para não levar tudo a sério, a não ser no sentido em que reflecte uma viagem interior, e mostra porque Mesquita não foi o autor que Um filho do Cosmos antevia. O livro caminha miraculosamente no fio da navalha do “camp” sem cair.
A junção do estilo grandioso com a fragilidade do autor torna pois A cidade dos espelhos uma das obras mais surpreendentes de que há memória. Desconfia-se que o livro resulte de uma colagem/revisitação de material com diversas origens, interesses e épocas, retocado com um bom trabalho digital, coalescido. Dada a genealogia da obra, o percurso do autor e a vontade do editor, desmontar esta génese improvável parece quase uma obrigação do próximo AmadoraBD. Por outro lado, anuncia-se novo volume de Eternus 9. Só se espera que não constitua aquilo que se temia que este fosse e não foi: um regresso marcado pela auto-satisfação, feito de certezas. Mas Victor Mesquita já assinou duas obras marcantes para a BD nacional, uma lançando pistas e apontando caminhos em potência, outra explicando porque não foram seguidos. Nada deve a ninguém.
Eternus 9: A cidade dos espelhos. Texto e desenhos de Victor Mesquita. Gradiva, 140 pp., 25 Euros.