Há várias formas de ouvirmos uma pessoa, sobretudo uma que gosta de falar. Muitas vezes, é precisamente naquilo que não diz, na sua forma de gesticular, de andar, nos objetos com que escolhe rodear-se, que encontramos o seu mais fiel e inconsciente autorretrato.
Nos mais de 10 anos que leva de carreira, Vasco Futscher (VF) soma diversas exposições de grupo e individuais, um lugar entre os nove finalistas da 11ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, o título de responsável pelo departamento de cerâmica do Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual e a presença das suas obras nas coleções da Fundação Carmona e Costa, MAAT, Alberto Caetano, Ar.Co. Figueiredo Ribeiro, Pedro Cabrita Reis e Mário Teixeira da Silva.
Além disso, 2025 parece estar a ser o seu ano. Em janeiro, passou a integrar o grupo de artistas representados pela Kubikgallery, em fevereiro, foi um dos 16 artistas portugueses escolhidos para a loja da recém inaugurada Albuquerque Foundation, em março, apresentou trabalho na ARCOmadrid, em maio, na ARCOlisboa, com uma receção “extremamente positiva”, segundo o galerista João Azinheiro, e, a 27 de junho, inaugura Meia Meia com a artista brasileira Manuella Silveira, na Kubikgallery, em Lisboa.
Tudo isto, porém, é o que o artista escolhe não dizer. Interessa-lhe falar de materiais, de pigmentos, de luz, questionar-se sobre o contínuo espaço-tempo, a noção de infinito e a possibilidade de representá-la, ou pelo menos sugeri-la, através da sua obra, maioritariamente composta por objetos escultóricos em cerâmica.
Da mesa de trabalho que ocupa quase metade do atelier, lampejam vislumbres de alguém que, para sintetizar o mundo que há dentro e fora de si, precisa de multiplicar-se em dezenas de formas
Da mesa de trabalho que ocupa quase metade do atelier, na Rua Paio Peres Correia, lampejam vislumbres de alguém que, para sintetizar o mundo que há dentro e fora de si, precisa de multiplicar-se em dezenas de formas, às vezes cozidas no forno que se encontra a um canto da sala, outras vezes desenhadas a grafite, pastel seco ou guache, em folhas como as que estão penduradas nas paredes, junto de imagens impressas de obras de arte, gráficos matemáticos, postais e objetos que remetem para viagens à Grécia ou ao Egito.
“Um atelier quando se começa a arrumar tem um problema, ainda se nota mais a desarrumação”, comenta Futscher, afastando alguns sacos de barro branco a fim de arranjar espaço na mesa, para duas esculturas que estavam pousadas no chão.
Atrás de si, dezenas de livros de História, Ciência, Teoria da Arte e catálogos de exposições dividem as prateleiras de quatro estantes com uma aparelhagem, garrafas de vinho, candeeiros de luz baixa, de todas as formas e feitios, e peças de cerâmica.
Há mais passado, presente e futuro nos metros quadrados que separam as estantes da bancada de trabalho do que em muitas teorias matemáticas. É então que, sem pré-aviso, como se os três tempos confluíssem num só – o da criação – Vasco imobiliza-se junto de dois tijolos empilhados sobre um plinto.
“Acabei de ter uma ideia para uma obra, preciso de mais nove tijolos destes”, afirma categoricamente, explicando que pintará cada bloco de uma cor diferente, colocando-os, depois, uns sobre os outros, como se de uma torre se tratasse.

No objeto prestes a nascer ante o nosso olhar, que muito provavelmente integrará a exposição que se inaugura a 27 de junho, ecoarão as formas paralelepipédicas das “torres” de Donald Judd e a paleta cromática de Frank Stella, como refere de imediato o artista, mas também os últimos cinco anos de trabalho, durante os quais VF criou diversas obras com tijolos modelados e cozidos por si, e ainda os últimos três minutos, em que, enquanto conversávamos, pintou de cor-de-rosa um tijolo semelhante aos que haveriam de captar a sua atenção, instantes mais tarde.
É precisamente deste lugar onde se convoca memória, intuição e uma confiança e respeito profundos pelo material, que nasce a obra de VF.
Uma obra “aberta e livre […] pois podemos adivinhar que a solução apresentada pelo artista não será definitiva – é possível que, noutro tempo no mesmo lugar ou noutro tempo noutro lugar, haja soluções diversas”, como sublinhava João Pinharanda, em 2015, no catálogo da exposição dos finalistas do Prémio Novos Artistas Fundação EDP.
No princípio era a arte
O percurso de VF no mundo da arte começa, sublinha o próprio, “muito cedo, mas não de forma consciente”. Aos 10 anos, a mãe inscreve-o num curso de verão do Ar.Co, após o qual passa a frequentar aulas de desenho aos sábados, na mesma escola, e, aos 15 anos, o curso noturno de desenho, que termina com 18.
“Nunca me questionei se o desenho era uma carreira ou não. Para mim, era algo que eu fazia, uma prática que nunca parou, e paralelamente à qual tive de tomar as decisões normais de todos os adolescentes”. À falta da área de artes no liceu onde estudava, seguiu Ciências, entrando, em 2005, para a Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Nova de Lisboa.
“A meio do curso percebi logo que nunca iria fazer aquilo na vida, não era para mim”, conta, revelando que acabaria por conciliar a faculdade com o Curso Regular de Pintura do Ar.Co. Bastou-lhe uma semana na escola artística para perceber que “era isso que queria fazer”.
A arte não é uma carreira, é uma prática, uma coisa que temos de fazer quase por uma questão de sobrevivência emocional
vasco futscher
“Sempre fui uma pessoa generalista, portanto adorei estar em Ciências e não me custou estar em Economia, mas chegado o momento de decidir o que é que ia fazer com a minha vida, a escolha foi fácil”, conta. É que, para Futscher, “a arte não é uma carreira, é uma prática, uma coisa que temos de fazer quase por uma questão de sobrevivência emocional”.
A cerâmica, no entanto, só em 2009 entraria na vida do artista, através do Curso Avançado de Artes Plásticas e por incentivo do então seu tutor, Manuel Castro Caldas, diretor do Ar.Co.
“O encontro com a cerâmica foi uma coisa mágica. Desde o primeiro minuto em que comecei a fazer peças, senti que elas saíam naturalmente. Como se estivesse numa floresta a encontrar coisas no chão e a pensar, ‘como é que ninguém viu isto antes?”.
Em busca dos resultados menos expectáveis
Os anos que se seguiram foram marcados por diversas exposições coletivas, umas dentro e outras fora do Ar.Co, pela conclusão do curso de Artes Plásticas e pelo início da colaboração com Mário Teixeira da Silva, fundador da galeria Módulo – Centro Difusor de Arte.
É aí que, em 2014, VF inaugura Cerâmicas, a primeira exposição individual, na qual apresenta uma série de pequenos objetos em cerâmica, sobre plintos, que ora recordam ovos Fabergé, ora remetem para ornamentos arquitetónicos, como as pinhas sicilianas ou as folhas de acanto, frequentemente usadas nos capitéis de ordem coríntia.

Recorrendo a uma complexa mistura de barros, cores e texturas, em Cerâmicas, o artista apresentava aquela que, ainda hoje, é talvez a principal linha orientadora da sua prática artística: subverter o material e a arte da cerâmica em si mesma, para alcançar os resultados menos expectáveis possíveis.
É uma filosofia que implica, claro está, muitas horas de atelier e um processo criativo assente, mais do que na tentativa-erro, na capacidade de se deixar guiar pelo material, mesmo quando este sugere que se corra no encalce do erro.
Desta dança foram surgindo novas obras e exposições, da quais importa destacar a instalação A Regra do Jogo, apresentada na exposição destinada aos finalistas da 11ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, em 2015, a exposição Manual de Instruções, em 2017, dividida entre a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, onde o artista recriava o seu atelier, elevando-o a “material” do processo criativo, e a galeria Módulo, onde apresentava vários paralelepípedos, com texturas e materiais distintos, e a exposição Masks, Tables and Loose Birds, em 2019, na galeria annex 14, na Suíça.
A partir de 2020, quis a matéria, o acaso, uma maior maturidade, ou o “erro” de uma pandemia mundial, quem sabe, que o artista se entregasse mais verdadeiramente a um mergulho dentro de si mesmo e da obra construída.
No silêncio imposto por 2020, encontrou o tempo, que tantas vezes ao longo da nossa conversa refere ser essencial, para fazer uma espécie de “revisão da matéria dada” e encontrar aquilo que define como “respostas mais articuladas” a vontades ou problemas que sempre tinham estado dentro de si.
Nada se perde, tudo se transforma
Um rápido olhar para uma escultura que se encontra a poucos metros de nós, já pronta para a exposição da Kubikgallery, permite-nos entender melhor o que o artista que dizer.
A forma oval, com um pé e planos intersetados, assemelha-se a alguns dos pequenos objetos expostos, há mais de 10 anos, em Cerâmicas, mas agora com uma escala muito superior.

Algo parecido aconteceu também com as peças apresentadas, há poucas semanas, na ARCOlisboa. Nelas era possível encontrar, não só formas semelhantes aos ornamentos arquitetónicos trabalhados em 2014, agora assemblados a pedestais retilíneos, como também elementos da arquitetura grega, já usados no passado, agora organizados com base na ideia de ritmo e repetição, que, desde 2020, tem vindo a ser cada vez mais trabalhada por Futscher.
“Muitas vezes, é como se passássemos por um caminho de terra e fossemos lá deixar uma marca, mas, como nessa altura estamos a fazer outras coisas, continuamos em frente, e só mais tarde, com tempo e maturidade, é que somos capazes de perceber o que faltava fazer ali. Então voltamos atrás e vamos um bocadinho mais longe, dando respostas mais articuladas”, explica o artista.
Avançar e voltar atrás, passado e futuro, economia e arte. O mundo de VF organiza-se em dicotomias de tal forma diametralmente opostas que apenas se tocariam se fosse possível dobrar o tempo e o espaço.
Talvez por isso, nos últimos cinco anos, tenha decidido trabalhar precisamente essa ideia, criando obras como Elipse, apresentada na mostra Volteface, patente no Ar.Co de outubro a novembro do ano passado.
Empilhando tijolos de forma desencontrada, de maneira a criar uma espécie de muro elíptico repleto de espaços vazios, VF deu, não só, forma à ideia de infinito como à da nossa incapacidade em apreendê-la. Raros serão os que, olhando Elipse, tê-la-ão entendida, não como um muro, mas como uma minúscula “fatia” de um túnel infinito.

Mas é isso que faz toda a diferença. À semelhança do que acontece no espírito criativo de Futscher, num túnel infinito cabe tudo em todo o lado e ao mesmo tempo, as ideias dobram-se sobre si mesmas e dão origem a “esculturas ou objetos que são várias coisas em simultâneo”.
Tal e qual como os 11 tijolos reunidos sobre a mesa de trabalho, a aguardar o instante em que, pintados e empilhados, poderão, enfim, mostrar ao mundo que são terra, mas também água, cor, matéria, luz, sombra, Donald Judd, Frank Stella, um templo grego, um desenho de criança, um catálogo de cerâmica, os ensinamentos de um professor, dezenas de tentativas, centenas de erros, a memória de uma manhã quente de junho.
Dando a conversa por terminada, Vasco começa a abrir frascos de tinta e a organizar pincéis. “Há coisas que não existem e que eu tenho de fazer, porque preciso que existam para ver como é que são”, comenta com um sorriso, preparando-se para lançar mãos à obra.
Há coisas que não existem e que eu tenho de fazer, porque preciso que existam para ver como é que são
vasco futscher