Avenida da Índia nº 172, 22 de maio de 2025, take 1. Luzes, câmara, ação. Uma enorme porta de metal abre-se, revelando o interior de um armazém pintado de branco “da cabeça aos pés”.
A luz que escorre das janelas e inunda o espaço, dirige-nos o olhar para duas fotografias de Catherine Opie, penduradas na parede, uma boia de Lawrence Weiner, com palavras que nos instigam a chegar à Lua, às estrelas e ao cerne das coisas, uma Blind Image [imagem cega] de João Louro, desenhada com imaginação sobre uma tela completamente preta. Corta!
Acabamos de entrar em TAKE 1, a primeira exposição do muito aguardado Pavilhão Julião Sarmento, novo espaço museológico dedicado à arte contemporânea, dirigido pela curadora Isabel Carlos (IC), que se inaugura no dia 4 de junho, em Lisboa.
Composta por mais de 100 obras, selecionadas a partir do acervo de cerca de 1500 que Julião Sarmento (JS) doou à Câmara Municipal de Lisboa, a mostra divide-se em três zonas, subordinadas a três temas fundamentais para o artista.
Porque acreditava que a Arte e a vida andavam sempre de mãos dadas, Julião Sarmento permaneceu vivo nas obras de arte trocadas com amigos, nas memórias que estes guardam das suas conversas e no sonho de ver construído um Pavilhão “que não fosse uma fortaleza”
Arte e vida, na Galeria 2, arquitetura e noção de casa, na Galeria 0, partilha, experimentação e inovação na Galeria -1. Enquanto as obras da Galeria 2 e da Galeria -1 serão mudadas a cada quatro meses, as da Galeria 0 permanecerão um ano expostas.
Atravessando o piso térreo do antigo armazém alimentar onde nos encontramos, recuperado por João Luís Carrilho da Graça, a pedido do próprio JS, Isabel Carlos explica que TAKE 1 “vai buscar a ideia de primeira tomada, ou takes, que vão ser necessários para mostrar toda a coleção”.
A referência ao mundo do cinema é ainda uma homenagem à “mente cinéfila”, nas palavras usadas, em 2015, por Delfim Sardo, com a qual JS se debruçava sobre a arte e a vida. Ele, que traduzia nos mais diversos meios as inquietações dessa mente, foi o primeiro a sonhar, há quase 10 anos, o Pavilhão que se inaugura esta semana.
Um lugar de encontro
Entretanto, a vida, como a morte, aconteceram. JS haveria de morrer a 4 de maio de 2021, mas, porque acreditava que a Arte e a vida andavam sempre de mãos dadas, permaneceu vivo nas obras de arte trocadas com amigos, nas memórias que estes guardam das suas conversas e no sonho de ver construído um Pavilhão “que não fosse uma fortaleza”, nas palavras de IC.
“Queríamos criar um porto de abrigo, um lugar de encontro, partilha e fruição, tal como uma casa”, sublinha a diretora, acrescentando que, “tal como em certas casas, também aqui há arte por todo o lado”.
De facto, à medida que circulamos por esta nova “casa” das artes, percebemos a dimensão das palavras de IC. A coleção está praticamente em todos os lugares do Pavilhão, das escadas às casas de banho, passando pela cave.
Queríamos criar um porto de abrigo, um lugar de encontro, partilha e fruição, tal como uma casa
isabel carlos – diretora pavilhão julião sarmento
Além disso, as obras, mais do que esperarem que as contemplemos, parecem pedir que as vivamos. Por exemplo, os olhos cegos de Amour Aveugle, de Geneviève Cadieux, observam-nos enquanto tiramos um café, na copa disponível para a utilização de qualquer visitante, a Oreja de Juan Muñoz parece querer ouvir as inquietações de quem desce as escadas em direção à saída, e, na casa de banho, os sabonetes de glicerina com uma lâmina, de Susana Mendes Silva, repousam lado a lado com os que, efetivamente, podemos usar.

A Arte é vida
Deixamos a Galeria 0 para trás e IC conduz-nos até à Galeria 2, no segundo andar, na qual a exposição mergulha no campo das relações humanas tecidas por JS ao longo de grande parte dos seus 72 anos de vida.
Os desenhos, pinturas, fotografias e colagens que ocupam as paredes falam do amor, da gratidão do encontro e da partilha, inevitavelmente presentes na existência de quem tem bons amigos, mas também de arte. Até porque, como defendia Joseph Beuys, autor de Hasen Blut, pendurado na parede do fundo, “a arte é vida, a vida é arte”.

Do cruzamento entre ambas, no caso de Sarmento, forjaram-se amizades com nomes como José Manuel Costa Alves, autor do retrato de JS que se encontra à entrada da sala, Fernando Calhau, que desenhou o artista e amigo como um juLEÃO, Jwow Basto, que, com papel e fios afirma “a Isabel é meiga, o Julião é bravo”, Joseph Kosuth, que retratou o artista, usando batom e caneta sobre um guardanapo de papel, Abílio Leitão, que fotografou Julião com a mulher Isabel a dançar, ou Fernanda Fragateiro, que intervencionou essa mesma fotografia, intitulando a obra Amar.
Apontando para Visible Markers, de Allan McCollum, onde conseguimos ler repetidamente a palavra “thanks” [obrigado], IC comenta ainda, referindo-se ao Pavilhão, “esta é uma instituição que colhe, escuta e fica grata, que quer ser um lugar de pessoas que se encontram, ser mais gazela do que leão”.
Esta é uma instituição que colhe, escuta e fica grata, que quer ser um lugar de pessoas que se encontram, ser mais gazela do que leão
isabel carlos – diretora pavilhão julião sarmento
Com esta tónica dirigimo-nos à cave, onde se encontra a Galeria -1. Mal saímos do elevador deparamo-nos com o projeto para a piscina da casa do Estoril de Julião e Isabel Sarmento, da autoria de Lawrence Weiner, com quem, além da amizade, Julião partilhava a galerista Cristina Guerra.
Mais à frente, dentro do espaço de exposição propriamente dito, torna-se evidente que a cave, além de prestar homenagem ao gosto que JS tinha em colecionar obras de arte com uma certa confluência de linguagens, está reservada a peças mais experimentais e performativas, como a obra de Cristina Iglesias, que ocupa o centro da sala, ou o vídeo de Marina Abramovic, projetado numa das paredes.
Na Galeria -1 irão decorrer várias iniciativas da programação paralela prevista para depois do verão
É também aqui que decorrerão várias iniciativas da programação paralela prevista para depois do verão, como projeções de cinema ou performances. Por agora, sublinha IC, a preocupação do Pavilhão será a de “ativar a coleção e não ir além dos artistas que já fazem parte dela”, porém, “daqui a um ou dois anos, abre-se ao mundo”. Em outubro, por exemplo, haverá um dia dedicado à projeção de filmes de João Onofre, que pertencem à coleção.
Em programa está ainda um ciclo de conversas entre pessoas que foram muito próximas de JS, chamado Círculo Próximo. “A primeira será entre o arquiteto Carrilho da Graça e o Pedro Falcão, designer da sinalética interior e externa do Pavilhão, e a segunda entre a Clara Ferreira Alves e o Alexandre Melo, que falarão, respetivamente, da relação do Julião com a literatura e dele enquanto curador”, revela IC.
A vida é arte
A coerência do novo Pavilhão Julião Sarmento é levada ao extremo quando se fala da roupa que será usada pelos seus trabalhadores, já que todos usarão uma sobreveste desenhada pelo designer de moda Felipe Oliveira Baptista, autor da peça de vestuário em seda da escultura Marie, de Julião Sarmento.
A figura feminina em resina, com um metro e oitenta de altura, esteve exposta nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2022, como forma de assinalar o primeiro ano da morte do artista.
O Pavilhão tem também uma loja, a funcionar desde o dia da inauguração, na qual, brevemente estarão disponíveis sabonetes inspirados na obra de Susana Mendes Silva, exposta na casa de banho, assinados pela Ach. Brito e acompanhados da história por detrás da peça original.
No dia da inauguração, além de uma visita guiada ao espaço da exposição, o Pavilhão Julião Sarmento será também palco de um concerto da compositora, musicóloga, artista sonora e virtuosa do theremin (um dos primeiros instrumentos musicais eletrónicos e o único que se toca sem contacto físico) Dorit Chrysler.
O caráter inovador da performance é mais uma prova de que dentro das quatro paredes desta casa vive um sonho que, por ter sido sonhado em colaboração com os amigos da arte e da vida, deu origem a um lugar onde a partilha em nome da fruição artística é o objetivo final.