Deitada sobre uma mesa de trabalho, entre nuvens de pó de cerâmica e pedaços de grês, uma criatura jaz envolta num pano húmido. A seu lado, de pé, um ser semelhante aguarda o momento em que será levado para dentro de um dos enormes fornos de cozedura da Fábrica da Viúva Lamego, onde as chamas o trarão à vida.
Monstruosas, perturbadoras, kafkianas, ambas as criaturas nasceram das mãos, da cabeça, do coração e da imaginação galopante de Francisco Trêpa, artista plástico que, aos 29 anos, atravessa um momento particularmente profícuo do seu percurso profissional.
Após ter inaugurado, em abril do ano passado, na Galeria Foco, a exposição individual Flor Cadáver, com curadoria de Ana Cristina Cachola, em junho viu o seu nome figurar entre os seis finalistas da 15.ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, que reconhece os melhores talentos emergentes na área das artes plásticas e visuais, e, em dezembro, ganhou a 3ª edição do Sovereign Portuguese Art Prize, prémio anual organizado pela Sovereign Art Foundation, com a escultura de cerâmica Dripping Stage.
Em julho deste ano, inaugurará uma exposição individual no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, ao abrigo do programa Institution(ing)s, um projeto de cooperação europeu que incentiva organizações de arte contemporânea e cultura a co-criar de forma inovadora.
Além disso, ao longo de 2025, o jovem escultor apresentará ainda o seu trabalho numa exposição individual, durante a ARCOmadrid, e em diversas mostras coletivas, em Portugal e no Brasil, país onde, desde 2024, começou a colaborar com a Portas Vilaseca Galeria.
Mas regressemos à Fábrica da Viúva Lamego e às figuras que parecem contorcer-se em todas as direções. Uma delas tem um pequena falha, alerta uma das empregadas da fábrica. “Não faz mal, dá-lhe vida, é isso que é a escultura”, responde Francisco, acrescentando, “estou tão contente, nunca tinha feito nada assim tão grande”.
As peças destinam-se à exposição dos finalistas do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, que se inaugura em março, no MAAT, museu responsável pela parceria que permitiu a Francisco estar em residência na Fábrica da Viúva Lamego, de dezembro de 2024 a março de 2025.
A obra final, que por agora deverá permanecer envolta em mistério, será constituída pelas duas esculturas praticamente finalizadas, que aguardam a cozedura, e por outras, ainda em maquete, semelhantes a elas, e representa o capítulo mais recente de uma história que começou a ser escrita há muitos anos.
A procura pela beleza que habita a imperfeição e a tentativa de traduzir as vibrações violentas da vida em peças escultóricas, são gestos que remontam à adolescência de Francisco Trêpa.
Ainda que, até 2021, o seu nome não tenha figurado em nenhuma exposição individual, a “impenetrabilidade pouco ortodoxa” e “o magnetismo” identificados pelo curador David Elliott, presidente do júri do Sovereign Portuguese Art Prize, na peça vencedora do concurso, são características sintomáticas dos últimos três anos do seu percurso artístico.
Arte que sai das entranhas
O caminho de Francisco começou a ser trilhado aos 15 anos. Acabado de entrar na Escola Artística António Arroio, escolhe especializar-se em cerâmica por saber já que, na faculdade, seguiria Escultura.
A vontade, assegura, não nasceu de nenhuma relação particular com a arte contemporânea, até porque, de casa, “trazia referências do Modernismo para trás, como muitas das pessoas que não têm pais artistas”.
Foram antes “a impulsão por criar” e “uma fome” interior difícil de saciar, que assegura ter ainda hoje, as responsáveis pelas suas escolhas. É caso para dizer, como comentou uma vez Ângela Ferreira, que foi sua professora durante os anos de Belas Artes, que Francisco “vomita as coisas”, a arte sai-lhe das entranhas.
“A Ângela disse-me que se continuasse a vomitar peças ia ficar gratuito. Que já tinha o estômago trabalhado, mas faltava-me trabalhar a cabeça, sem cair na tentação de ficar só cabeça sem estômago. E que depois era preciso alinhar as duas coisas”.
Mal termina a licenciatura, em 2017, entrega-se à procura deste alinhamento e explora várias linguagens plásticas a fim de encontrar aquela com que mais se identifica, acabando por fixar-se na cerâmica, que havia abandonado durante os anos da faculdade.
“Regressei à cerâmica utilizando a técnica dos moldes, que é como se fosse a fotografia da escultura. Tiro moldes de coisas nas quais a minha vida tropeça, sejam alimentos, flores ou pequenas larvas”, explica.
E porque, geralmente, as coisas nas quais “a vida tropeça” não são perfeitas, a fim de representá-las, Trêpa acaba por criar verdadeiras transcrições das imprevisibilidades do dia-a-dia.
Fascina-se, por exemplo, com as irregularidades contidas na casca de um ovo defeituoso ou com a força em potência contida no botão de uma flor prestes a desabrochar, acrescentando depois, a cada forma, camadas e camadas de histórias e significado.
É o caso de Imperfect Egg Tower, obra que assemelha uma cobra feita de ovos, um vilão que só o é porque, na sua imperfeição, assim o percecionarmos.
“Apesar de a Natureza ser brutal, a noção de monstro e monstruosidade não existe. Os monstros são puramente humanos, a sua existência e monstruosidade estão presas à existência e ao olhar humano”, defende o artista.
Tais ideias, hoje completamente indissociáveis da sua obra, revelaram-se pela primeira vez, de forma evidente, em Hiperderme, exposição individual que apresentou no Museu de História Natural de Lisboa, em 2022.
“Ao procurar um objeto pequeno que pudesse reproduzir, e que se relacionasse com o espaço da exposição, dois cientistas do laboratório de taxidermia do Museu de História Natural sugeriram que usasse uma larva de escaravelho da palmeira. Achei-a perfeita, porque é algo que está em transformação, em transitoriedade, tem muita vulnerabilidade, não tem exosqueleto, não tem asas, às vezes tem veneno para se proteger, mas muitas vezes é muito frágil”.
É esta larva que, em 2022, reinterpreta num tamanho maior para criar Dripping Stage, escultura em cerâmica, de contornos orgânicos e poéticos, com a qual viria a ganhar o Sovereign Portuguese Art Prize, em 2024.
“No fundo, pode-se considerar esta como a primeira obra do corpo de trabalho que tenho vindo a desenvolver ao longo dos últimos três anos”.
A partir de então, começou a explorar cada vez mais a importância dada ao ponto de vista, a criar ficções a partir de uma base real e a modelar seres híbridos, que não pertencem exclusivamente ao mundo real nem ao mundo onírico, sem espécie, género, maldade ou bondade.
Relações simbióticas
“Atualmente, gosto de trabalhar relações simbióticas, sejam boas ou más, isso não interessa muito. O importante é que sejam coisas que relacionem humanidade, tecnologia, vida animal e vegetal, e que andem no espetro da ambiguidade. Quanto maior, melhor”, comenta Francisco enquanto abre a porta do atelier, na Graça.
Gosto de trabalhar relações simbióticas, sejam boas ou más, isso não interessa muito. O importante é que sejam coisas que relacionem humanidade, tecnologia, vida animal e vegetal e que andem no espetro da ambiguidade
Penduradas na parede do fundo, apoiadas sobre plintos ou pousadas em prateleiras de diversos armários encontram-se as dezenas de personagens de cerâmica que tem criado nos últimos anos. Sim, não há dúvida, são ambíguas.
Basta atentar, por exemplo, numa obra composta por duas figuras, uma entre a lesma e o molusco e outra entre a corola de uma flor e uma anémona, que se enroscam uma na outra, num gesto que encerra, simultaneamente, a ternura de um abraço e a frieza de um estrangulamento mortal.
Junto delas, uma enorme flor encarnada abre a corola em pétalas que têm tanto de majestoso como de intimidante, enquanto que, do outro lado da sala, um busto de algo que poderia ser um humano, mas não é, “olha” para o teto com os tentáculos que tem em lugar da cara.
Apesar de ter muito estômago, ao longo dos anos Francisco aprofundou definitivamente a “cabeça” de que Ângela Ferreira falava e alinhou-a com o que lhe sai da alma. Nas obras espalhadas pelo atelier, pressentem-se referências à História da Arte e à cultura contemporânea, reinterpretadas e, nas palavras do próprio artista, “ressignificadas”.
Ao Barroco vai buscar a paixão pelo êxtase e o movimento que os grandes mestres imprimiam nas composições escultóricas, à ficção científica pede emprestadas formas híbridas entre o reino animal e vegetal, e da Botânica retira conhecimentos técnicos sobre a organização social das abelhas ou as particularidades de espécies exóticas, como a flor cadáver que, em abril de 2024, acabou por dar título à exposição individual apresentada na Galeria Foco.
Polinizadores de ideias
O caminho até Flor Cadáver, explica o artista, implicou uma passagem prévia pelos “polinizadores”, figuras apresentadas pela primeira vez na ARCOlisboa 2023, que “misturam biologia e uma questão filosófica”, revisitando a temática das relações simbióticas que tanto agradam a Francisco.
Através destes seres, que, ao alimentarem-se numa flor, ficam com pólen agarrado ao corpo, o qual depositam, sem saber, nos órgãos reprodutores de outra, o artista evoca as ideias, gestos ou sentimentos que, tantas vezes, sem sabermos, trocamos uns com os outros.
“Interessava-me esta questão de transportar e depositar o desconhecido, pensar nas coisas que carregamos quando nos alimentamos de uma exposição, por exemplo, o que é que fica cá dentro agarrado a nós e onde é que vamos largar isso”.
Nas fronteiras entre reinos e identidades
O “pólen” do processo criativo iniciado em 2023 para a ARCOlisboa parece ter sido, entretanto, depositado na vontade de continuar a explorar o tema da simbiose e numa “grande paixão pelas coisas da vida” sobre as quais se inventam sempre “histórias e ficções”.
A escultura Flor Cadáver, e a exposição à qual deu nome, surgiram precisamente de uma curiosidade apaixonada pelas peculiaridades da Natureza que, invariavelmente, tem conduzido Francisco a descobertas como a da existência desta espécie rara.
Ao “tropeçar” naquela que é a flor individual maior do mundo, o artista encontrou nas suas formas, no centímetro de espessura das suas pétalas e no diâmetro igual ao de uma bola de basquetebol do seu olho, o híbrido perfeito entre os conceitos de flor e de monstro.
“É fora da norma, é excêntrica, é teatral e contraditória, e emite um cheiro de morte para atrair os polinizadores, que, no fundo, vão permitir a continuação da sua vida. Tudo isto me atraiu”.
Excêntricas são também as formas a partir das quais vai desenvolver a sua próxima exposição, patente no CAM a partir do mês de julho.
Organizada ao abrigo do Institution(ing)s, projeto de cooperação europeia liderado pela investigadora Luísa Santos, que incentiva as organizações de arte e cultura contemporâneas a cocriarem modelos institucionais inovadores para a inclusão social, transformação ambiental, económica e artística, a exposição terá curadoria dos alunos de Mestrado em Estudos de Cultura, da Universidade Católica Portuguesa.
Apesar de não poder revelar muitos pormenores, o artista explica que, a partir da relação entre interior e exterior, o projeto explorará “híbridos naturais e questões relacionadas com simbiose e transformação”, refletindo, à semelhança do Espaço Engawa, que o acolherá, “sobre o que nasce nas fronteiras entre reinos e identidades”.
Quanto ao futuro, ainda que Francisco não queira fazer grandes conjeturas, “porque as coisas vão surgindo em cascata, numa espécie de rizoma”, a compulsão criativa que anima a sua prática artística parece empurrá-lo sempre, e cada vez mais, em direção a territórios onde pulsa a ambiguidade inerente a todas formas de vida.
O que tirará dela e o que ela tirará dele é um mistério tão grande quanto aquilo que, dessa troca, acabará por nascer.