JL: O que o levou a este filme?
Basil da Cunha: O que me levou a fazer este filme foi em primeiro lugar o desejo de contar uma história de resistência a modernidade (gentrificação, capitalismo feroz, etc..) que cada vez mais ameaça o bairro da Reboleira, bairro no qual vivo e filmo a mais de 10 anos. Queria muito trabalhar com a nova geração que começava a tomar conta das ruas. Então resolvi escrever uma espécie de teen-movie num ambiente urbano onde acompanhávamos três crianças testemunhas de uma mudança brutal nas relações entre os moradores do bairro no qual os adultos, confrontados com a iminente destruição do próprio bairro onde cresceram e foram criados, começaram a ter conflitos comunitários. Então esses miúdos mudavam o rumo dos acontecimentos através da sua única inocência e basicamente, salvavam o bairro! Mas quando se aproximou a hora de filmar essas crianças para as quais tinha escrito, percebi que já não eram crianças mas sim adolescentes. E a tal ideia da inocência já não encaixava. Como já tinha prometido aos rapazes que seriam eles a carregar o filme às costas, preferi mudar a história do que mudar de atores. Isso levou-me a escrever em cima da hora uma história sobre o fim da inocência, mas sempre com a destruição do bairro em pano de fundo. O filme transformou-se no relato de o fim de uma geração, a minha, o início de outra, a deles, mas que por fim acaba por ser uma homenagem o bairro da Reboleira…
Decidi criar uma personagem exterior que permitisse descobrir o bairro com outro olhar: o Spira, um jovem rapaz que volta ao bairro passado sete anos no colégio e que pelo caminho, perdeu a inocência. Quando chega, reencontra velhas inimizades, os amigos de sempre, uma miúda que não o vai deixar indiferente e a destruição do bairro em marcha. A partir daí, vamos observar como um produto de uma sociedade que privilegia a repressão a educação vai mexer com a própria organização do bairro e levar os seus a crescerem mais rápido do que previsto.
Quais foram os principais cuidados na abordagem?
O genro do filme, a gramática que queríamos usar, também teve que se adaptar a nova direção que o filme tomava e optei para trabalhar com os códigos do filme noir, filme de gangster, que permitia não só criar um universo tenso como dar uma dimensão quase sagrada os protagonistas. A ideia que passa de uma versão para a outra, é a vontade de utilizar a ficção como possibilidade de mudar o destino real de um bairro ao qual pertenço e pelo qual tenho um amor eterno.
Cuidados na abordagem foram os seguintes: na escrita, tive de encontrar aquele equilíbrio entre a realidade e a ficção, conseguir levar relatos de vida de pessoas que, os poucos, ia transformando-se em personagens, numa história de ficção. Na rodagem houve, em primeiro lugar, o cuidado de respeitar a vida dos trabalhadores do bairro. Filmamos muitas horas e em grande parte a noite, e acabamos por perturbar o dia a dia de pessoas que têm de levantar cedo. Então tivemos de nos adaptar a essa realidade e aceitá-la.
Houve também o desejo constante de ficar aberto às surpresas que decorrem do nosso método pouco clássico de fazer filmes onde o improviso tem um lugar especial e onde vida e trabalho misturam-se de forma constante. Por fim, e essa foi minha principal missão, manter todos unidos e com boa disposição para o que existisse atrás das câmaras se refletisse a frente delas.
Como situa este filme no contexto do seu percurso artístico, olhando para o que já fez e para o que deseja vir a fazer?
Esse filme é o produto de dez anos de trabalho na Reboleira onde desenvolvi uma metodologia de trabalho ao longo dos filmes, onde criei relações e um conhecimento profundo de uma realidade através daquilo que vi e ouvi e onde conseguimos unir um bairro inteiro a volta do cinema. Mas esse filme não é a finalidade, é o começo. A partir de agora, temos um leque de atores brutal, um grupo de trabalho fantástico e acho que vamos ter ainda um longo e belo caminho para fazer juntos. Até porque histórias na Reboleira não faltam…