A questão sempre foi mais sobre a vida do que sobre outra coisa qualquer. Na Natureza Morta, género pictórico muito cultivado a partir do século XVII, segundo os modelos greco-romanos, é a vida que se celebra: a sua beleza e a sua finitude, a possibilidade de a gozar e a angústia de a saber tão breve. Talvez por isso a sua designação mais popular seja precisamente Still-life, que traduzido à letra seria ainda vida ou, numa versão mais próxima da interpretação que foi tendo ao longo dos séculos, “a vida suspensa num instante imóvel”.
E muitos são os instantes imóveis que se proporcionam ao visitante na exposição A Perspectiva das Coisas – A Natureza Morta na Europa, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian, e patente no edifício sede, entre 12 de Fevereiro e 2 de Maio. Ao longo de 71 pinturas, é possível mergulhar num universo de símbolos, referências, mensagens subliminares, evocações e mandamentos. E se são os alimentos que têm o primeiro plano, é o olhar quem mais se delicia.
Como Alice no país das maravilhas, o espectador é convidado a entrar para o outro lado da tela. Uma enorme moldura, colocada à entrada da mostra, dá início a uma viagem por 200 anos. Os séculos XIX e XX, que completam esta visão global sobre as naturezas mortas, apresentam-se numa segunda exposição, em Outubro de 2011. Nos dois casos, o objectivo foi dar a ver não só os melhores autores que praticaram este género artístico, muitas vezes desvalorizado nas categorias tradicionais da pintura, mas também a variedade de soluções estéticas e formais que foram sendo encontradas por alguns dos maiores génios da pintura. As obras, provenientes de 34 instituições públicas e de 11 colecções particulares (apenas uma pertence à Gulbenkian), foram divididas em dez núcleos temáticos, das doçarias aos animais, dos tributos florais aos jogos de luz, dos momentos preciosos às questões da vida e de morte.
Apesar da mostra não ter uma ordem cronológica, o núcleo inicial, O Encanto das Coisas Pintadas, é dedicado aos primeiros ensaios que foram realizados dentro do género por artistas italianos, espanhóis e holandeses. São os casos de Mestre de Harford, Juan Sánchez Cotán ou Nicolaes Gillis. A partir desta base fixaram-se os elementos chave das naturezas mortas: a ausência de figuras humanas, a transcrição realista de objectos, flores ou frutos.
Para uma sociedade tão devota à pintura religiosa e histórica, como era a dos séculos XVII e XVIII, não deixa de ser surpreendente a aceitação das naturezas mortas. Aceitação e apropriação, pois rapidamente, como se pode ver pelo segundo núcleo, Momentos Preciosos, estas pinturas tornaram-se “veículo para a ostentação de preciosidades e demonstração da mestria do pintor, tanto nas coisas representadas, como no seu requintado pormenor”, explica-se no texto de introdução à mostra. Frans Fracken, Ambrousius Bosschaert e Jacques Linard são os pintores aqui incluídos, ao lado de um trio de pintoras: Clara Peeters, Louise Moillon e Fede Galizia.
Carnes, peixes, mariscos, frutos, legumes e bebidas. O apelo sensual directo ao sentido do paladar foi uma das estratégias mais seguidas pelos artistas em coloridas naturezas mortas. Em Um festim para o olhar, o terceiro núcleo, são os banquetes e as cozinhas que enchem o olhar, com composições de Abraham van Beyeren ou Frans Snijders. “Esta forma notável de ‘consumo pintado’ celebra a ideia de abundância, a qual, na realidade, poderia representar o desejo da sua concretização”, assegura o mesmo texto. Desta forma, “as naturezas-mortas davam aos seus proprietários uma reconfortante sensação de bem-estar numa época em que a fome era endémica e transmitiam uma mensagem de generosa hospitalidade aos seus convidados”. O extremo realismo das obras era, por isso, muito apreciado, nomeadamente as de Juan Fernández el Labrador e os seus cachos de uvas suspensos. Já na Doçaria, o núcleo seguinte, o que mais impressiona são os trabalhos de Josefa de Ayala (ou de Óbidos, a única portuguesa da exposição), Juan van der Hamen, Georg Flegel ou Georg Flegel, que se aproximam de “perpétuas lembranças de prazeres desfrutados e da promessa de outros ainda por experimentar”.
Ao prosseguir a visita entende-se que a evolução das naturezas mortas passou também pelo virtuosismo, numa demonstração da habilidade dos artistas. Pelos Jogos de luz ou pela ideia de Natureza e artifício, quinto e sexto núcleos, respectivamente, a ilusão do olhar é levada ao limite. Quer nas fantásticas reproduções de vidros partidos de Sébastien Stoskopff, com as respectivas ondulações luminosas, quer nos trompe l’oeil de Samuel van Hoogstraten ou de Johann Hinz, que têm a capacidade de “convencer o observador de que a ficção pintada é real”. Estes atributos também eram utilizados para evidenciar o que a natureza tinha de único, sobretudo nas suas formas. Os melhores exemplos disso são as pinturas de Abraham Susenier, com conchas exóticas, Paolo Porpora, com umas nozes que evocam a fragilidade da vida, ou de Abraham Brueghel, com referências a um mundo fantástico.
Os Tributos florais e os Animais de imolação, dos núcleos sete e oito, são outros temas que facilmente associamos à natureza-morta. Imagens exuberantes, de forte intensidade dramática, em particular nos animais mortos, eram, no entanto, um pouco artificiais. Os jarros, como os de Willem van Aelst, Mário Nuzzi e Juan de Arellano, conjugavam flores de épocas muito diferentes. Já os animais mortos “constituíam um tema específico da natureza-morta, que era encarada no passado como a representação de coisas sem vida e inanimadas”. Acima de tudo, “estes animais constituem oferendas no altar da arte, permitindo aos pintores dar asas à sua destreza na representação de pelos e penas”.
Se as naturezas mortas apontam para a vida, elas lembram também a morte. Basta recordar as Vanitas. Inspiradas numa passagem do Eclesiastes 1:2 – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” -, são monumentos à fragilidade da condição humana e chamadas de atenção à passagem do tempo. Nestes quadros profundamente simbólicos, abundam os objectos de medição de tempo, velas, instrumentos musicais com cordas partidas e caveiras. Também surgem com frequência elementos que apontam para a futilidade das acções humanas: os livros das actividades intelectuais, as peças de armadura do poder terreno e as peças valiosas da riqueza material.
Já no fim da viagem, lançam-se pistas para o que será a segunda parte da exposição, dominada pela modernidade das naturezas mortas dos séculos XIX e XX. Os artistas aqui reunidos – Luis Meléndez, Jean-Baptiste Oudry, Jean-Baptiste-Siméon Chardin, um dos expoentes máximos do género, e Francisco de Goya – já não se interessam tanto pelo que está representado, mas pela sua dimensão estética. É a emergência das pinceladas expressivas e das manchas abstractas. Porque a natureza morta será, a partir daqui, mais emoção do que deslumbramento. Mais sobre o que se sente do que sobre o que se vê. Será conceptual e abstracta, como os caminhos da arte contemporânea.