Pintar, desenhar, esculpir, riscar, moldar são gestos a que a sua mão está afeiçoada desde sempre. Porém, captar a imagem, o som, filmar, criar planos, sequências, fazer filmes, acabaria por ser o lado mais visível da sua criação.
No cinema, em que começou a trabalhar nos anos 70, estreou-se com Relação Fiel e Verdadeira, em 1987, tendo realizado longas-metragens como Rosa Negra, Paixão, Adriana, e documentários como As Escolhidas, sobre Graça Morais, ou a curta Carlos de Oliveira: Sobre o Lado Esquerdo.
A cineasta Margarida Gil projeta agora, em grande dimensão, a sua face de escultora numa exposição “quase antológica” que junta três dezenas de obras em cerâmica. Mise en Place é o nome da mostra, e não é casual a referência a um procedimento do processo de filmagens. A curadoria é de André Almeida e Sousa, e Paulo Abelho criou uma instalação sonora a partir das suas esculturas. Também não por acaso, já que o pintor e o músico têm trabalhado nos seus filmes.
Margarida Gil nasceu na Covilhã em 1950, licenciou-se em Filologia Germânica, e a escultura, inicialmente estimulada por uma professora de Filosofia, teria sido um caminho “natural”, não fosse o cinema.
Estudaria, aliás, gravura, desenho, pintura e cerâmica no Ar.Co, e expôs a nível individual, nomeadamente no Museu Bordalo Pinheiro.
Como realizadora de televisão, trabalhou desde 1975 na RTP. E paralelamente foi assistente convidada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
E se as suas grandes esculturas em barro convocam águas, montanhas, minerais, corais, aves, fábulas, enigmas ou a maternidade, remetendo para a Natureza e para o “lugar do humano”, segundo as palavras do curador, nada disso será porventura estranho ao seu cinema.
Mãos no Fogo é o seu último filme, que teve uma antestreia, em fevereiro, na seleção oficial do Festival de Berlim 2024, e irá estrear na edição deste ano do IndieLisboa.
Mise en Place pode, entretanto, ser vista até 2 de junho na galeria do Palácio da Cidadela, uma exposição no âmbito do Bairro dos Museus, iniciativa da Fundação Dom Luís I e da Câmara Municipal de Cascais.
Foi o lugar da escultura na sua criação que quis mostrar nesta exposição?
Não tive um tempo de trabalho regular na escultura ao longo da minha vida, mas comecei muito cedo com barro e carvão nas mãos… (riso) Só que se meteram muitas coisas pelo meio.
Sobretudo o cinema?
Obviamente. Mas na verdade o cinema não é propriamente impeditivo, porque fazemos poucos filmes. Felizmente dei aulas, fiz televisão muito tempo e não ficava apenas à espera de fazer os filmes. Mas claro que isso me desviou da pintura que sempre gostei de fazer. E no fundo, o que faço é pintura em cerâmica…
Mas como começou a “pintar” em cerâmica?
Quando fiz o curso inteiro de artes plásticas no Ar.Co, o que me deu imenso prazer e foi muito importante para mim, no Projeto, o Manuel Castro Caldas indicou-me a cerâmica e achei que fazia todo o sentido.
Por que razão?
Era retomar o meu passado e sobretudo a importância, para mim, do trabalho com as mãos. Tem a ver com uma certa noção de construção, de erguer alguma coisa do papel… e até da película (riso). É, aliás, uma atividade que tem muito a ver com o cinema.
Como?
Não é tanto a figura que mexe, mas nós que mexemos à volta da figura. Esse movimento, o ritmo, que existe na cerâmica, o tempo e o respeito em relação à matéria, tudo isso tem muitas afinidades com o cinema.
Quais?
Não se pode acabar uma peça de cerâmica, sobretudo as que faço que são bastante grandes, num dia. É preciso esperar que seque, e o que o fogo irá fazer depois. Nesse sentido, é um trabalho muito autodisciplinador para mim, porque sou muito impaciente (riso). E com o barro é preciso dar tempo ao tempo, saber esperar o ponto certo, senão pode mudar a cor, a textura.
Por isso é tão fascinante, temos que respeitar os elementos, a água, a terra, o fogo, que tenho que conduzir, com os meus gestos, com o corpo, como uma maestrina. E como uma realizadora, claro. Há muito de alquímico, no trabalho com o barro. Criar algo a partir de uma placa inerte é algo de mágico, como fazer uma mise-en-scène em cinema ou em teatro.
O PODER DA CRIAÇÃO
Daí o nome da exposição, Mise en Place, pôr as coisas no lugar da cena?
É, claro, uma piscadela de olho ao cinema, porque é realmente a fase antes da mise-en-scène. Ou seja, a colocação no espaço dos volumes, dos objetos… neste caso, das forças que constroem uma figura, uma escultura. É, na verdade, uma sensação de poder que temos quando se consegue elevar algo do chão.
O poder da criação?
E é uma coisa espantosa o poder que existe nas nossas mãos, que vão dando forma ao que pensamos. Depois, a cor ou a nossa decisão de não a usar… É um poder criador que normalmente se atribui a Deus, aos deuses, a uma entidade sobrenatural. Só que o ser humano também o tem.
Não é por acaso que o barro está ligado até à criação de Adão, do humano, na Bíblia. E muitas vezes as mãos no barro fazem formas em que nem sequer tínhamos pensado.
Uma escultura pode tomar formas diferentes do que tinha traçado inicialmente?
Completamente. Mas aí eu também faço muitíssimo cinema.
Quando faz escultura?
Sim, há muitas analogias. Evidentemente os suportes são diferentes, mas a minha atitude é muito semelhante.
Em que sentido?
Deixo-me guiar pelo impulso criativo que é da ordem do inconsciente. O pensamento, a linguagem narrativa ou não, vem depois, como se recolhesse pedaços da vida, da experiência, da intuição, da sensibilidade… E tem que haver uma harmonia, isso é natural em mim e no que crio. E que me exprime. A exposição fala de mim, sou eu que lá estou, como num filme.
E do seu modo de ver o mundo até com uma certa ironia…
Exatamente. A malandrice toda, o lado sombrio, o não levar nada muito a sério, o tirar o tapete… está lá tudo. Há muitos temas associados à maternidade, bichos que são madonas… A minha falta de respeito dá-me muita liberdade para pensar e criar.
É sobretudo no tempo de “pousio” do cinema que vai para o atelier e faz as suas esculturas?
Tive, na realidade, uma grande interrupção durante muito tempo na escultura. Talvez nem seja bem uma interrupção, porque o meu olhar está sempre a ser trabalhado e a escultura vem numa certa continuidade do meu trabalho visual e acho que isso se nota bastante, até uma certa continuação de uma atividade noutra. Não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo (riso). Mas posso estar com o projeto de um filme a aboborar e a fazer escultura.
Estou habituada a trabalhar muito, mas claro que não se pode trabalhar muitas horas seguidas em cerâmica, porque é fisicamente muito cansativo e é uma atividade que precisa de tempo de espera… Mas aí, ao fim da tarde, sento-me a escrever… e pode ser um guião…
Mas quando estou a filmar, é impensável esculpir, faço um corte, é como se nada mais existisse. O mesmo acontece em certos momentos da escultura. Há mesmo uma fase em que tenho insónias… (riso) É um sinal, normalmente antes do forno. Porque o fogo é como filmar.
Porquê?
Porque entra tudo em jogo, a rodagem é um período exclusivo, em que todos os sentidos estão completamente envolvidos.
Mãos e fogo são duas palavras que já usou muito nesta conversa. Curiosamente, o seu novo filme chama-se Mãos no Fogo…
Aliás, durante muito tempo, nem havia título. Mas confiava que iria surgir e, de repente, apareceu mesmo… (riso) Porque o filme também mexe com culinária, com o ato de pôr as mãos no fazer da comida, e reparei que havia muito fogo presente, porque se passa numa cozinha enorme, fabulosa, do Minho, e uma personagem muito importante, a Adelaide Teixeira, está permanentemente a usar as mãos.Isto é, dei por mim a filmar muito as suas mãos… Por isso, quando tive a intuição desse título, achei que fazia todo o sentido.
Também pelo seu espanto em relação às mãos?
É verdade, eu adoro mãos. E uso-as muito, sim, as mãos no barro…
Mãos no Fogo foi o único filme português na seleção oficial do recente Festival de Berlim. Como foi a experiência?
Muito forte. Uma sala de 700 lugares vibrou com o filme, foi uma febre que senti… (riso) Felizmente tinha a exposição a inaugurar também e tive que começar a pensar nela, deixando um pouco para trás esses ecos.
O FILME DA EXPOSIÇÃO
Também pôs a mão no espaço, na ordem das suas esculturas na exposição?
Fui à Cidadela uma vez ver uma exposição de Rosa Ramalho, que eu adoro, e achei um espaço magnífico. E de repente, por via do presidente da Fundação, o Salvato Telles de Menezes, com quem tenho uma longa amizade e partilhei muitos encontros com o Carlos de Oliveira, acabei por ter essa galeria para mim, para a minha exposição. Fiquei muito contente. E também um pouco assustada.
Com receio de quê?
Senti um sobressalto quando pensei em como pôr a minha cerâmica naquele branco… (riso) Até porque antes só tinha tido uma grande exposição como esta, no Museu Bordalo Pinheiro. Mas tive um grande impulsionador, o pintor André Almeida e Sousa, que foi meu professor, de quem gosto muito e que conhece bem o meu trabalho.
Por isso, houve uma coautoria. Ele fez uma verdadeira montagem, exatamente como se fosse um montador de um filme, pegando nas peças isoladas e criando uma sequência, dando-lhes um sentido. A iluminação, aquelas salas abobadadas da Cidadela pintadas de branco, também ajudam, porque tenho muitas esculturas negras.
A central é um ancoradouro e achei que precisava de um fora de campo (riso)… lá estou eu a pensar em cinema… e pedi uma escultura sonora ao Paulo Abelho, que também trabalha comigo nos meus filmes.
Tal como, de resto, André Almeida e Sousa?
Sim, ele entra como ator no pequeno filme que fiz nos Açores há pouco tempo, Cavaleiro Vento, e é um grande pintor. E o Paulo Abelho, não fosse ele um excelente músico, fez uma instalação que valoriza muito a exposição, porque as salas se sucedem, dão umas para as outras, e o som acaba por prolongar e dar-lhes continuidade.
Tal como o André conseguiu dar um sentido às várias salas com uma sobriedade e uma intensidade, trabalhando cada uma como se fosse uma página em branco, uma tela, onde colocou as figuras, criando uma relação entre elas como num quadro. Por isso, falo de coautoria, o que acho que torna a exposição muito especial.
André Almeida e Sousa fala da criação de uma ordem, num dos textos da exposição.
E foi isso que ele fez, encontrar uma ordem. Algumas peças já são formadas por um conjunto de elementos, como O Cais ou A Cidade Perdida, que já têm uma ideia, mas digamos que o filme que foi montado, a junção de sequências com um sentido em toda a exposição, foi realmente o André que o fez e não seria possível se ele não fosse o pintor que é.
VOCAÇÃO DO OLHAR
Antes de começar a fazer uma escultura, também escreve um guião, faz um esboço?
A maior parte das vezes, não… É preciso ter uma ideia da escala, se equivale apenas ao trabalho de mãos, se envolve também o corpo. Tenho peças bastante grandes na exposição que implicaram não propriamente um desenho prévio, mas uma noção do volume, um fundamento, porque é uma construção com barro e a sua tendência é naturalmente para cair, para se desfazer em pó (riso).
E é necessária alguma argúcia, porque por exemplo a porcelana é muito voluntariosa, difícil de trabalhar com as mãos, há que fazer de outra maneira. Porque sou eu que faço todas as esculturas, mesmo as muito grandes, com as minhas mãos, sem moldes. E temos que perceber muito bem a matéria que temos nas mãos, o que pode dar, o que queremos. É uma relação fiel e verdadeira… (riso)
Título do seu primeiro filme… Está tudo ligado desde sempre?
Sim. Lembro-me que quando estava a preparar esse filme, convidei o pintor Sá Nogueira, com quem tinha tido aulas de Desenho em Movimento na SNBA, para trabalhar comigo, tal como Costa e Silva, que tinha uma enorme sensibilidade em relação à luz.
Uma vez, estávamos a falar precisamente da luz, da cor do filme, e Sá Nogueira disse-me que aquela conversa estava a dar-lhe uma enorme vontade de pintar… (riso) E a relação entre luz, cor e som é, na verdade, muito importante para mim desde o meu primeiro filme.
Aliás, penso que também é muito visível nos últimos, uma espécie de vocação do olhar. No entanto, tento fugir o mais possível à associação direta do cinema com a pintura. Não gosto nada de ver filmes em que deliberadamente se procura imitar Vermeer ou outro pintor qualquer, ainda que isso possa acontecer de uma forma inconsciente, porque é fatal, tem a ver com a nossa tradição. Não nascemos de uma couve… (riso)
E é fiel e verdadeira a sua relação com o barro?
Sim. É pena que a convenção tenha posto a cerâmica nas artes decorativas, subestimando-a. Tal como a gravura, tudo o que implica trabalho manual foi de alguma maneira desvalorizado em relação à pintura a óleo. Há uma hierarquia de valor que tem a ver com a finança, que atribuiu à cerâmica um valor utilitário, embora isso também tenha muito que se lhe diga.
Por isso, não é normalmente uma obra de que um pintor ou escultor se vanglorie, mas qualquer coisa para os alfinetes (riso). Tudo o que seja valorizar e dignificar a cerâmica, dando-lhe a dimensão que merece, é, por isso, muito importante. É preciso lutar contra esse preconceito.
E a seguir? Já pensa noutro filme ou exposição?
Apetece-me fazer um filme novo e novas esculturas. Mas sei lá qual será a situação do cinema em Portugal, se continuará a haver filmes, se as pessoas acordam e vão outra vez às salas…
Estou à espera de notícias para fazer dois documentários. Ficção, já tenho um embrião, como uma semente na terra, que de repente pode crescer e tornar-se planta… dependendo da matéria, dos meios, de mais ou menos água… Como com o barro.