Tome-se Play Off, o álbum dedicado a obras do compositor Vasco Mendonça, mas siga-se igualmente por Peixinho Patriarca Percussão e For Percussion, para se encontrar as três mais recentes ‘etapas discográficas’ do grupo de percussão Drumming, de Miquel Bernat, com os seus grandes intérpretes, e descobrir alguma da mais bela música portuguesa dos dias de hoje.
Play Off tem origem na residência artística de Vasco Mendonça com o Drumming, realizada em 2020-21, reúne quatro das obras compostas durante esse período e demonstra a proximidade estabelecida.
O álbum abre com a peça que lhe dá nome, Play Off: quatro andamentos para superação de qualquer empate, numa interação constante entre os intérpretes; uma espécie de jogo, num quadro bem definido, entre a música e o movimento que ela exige. A designação de cada andamento descreve o ‘modo de jogar’: Determined, somewhat testy (“Determinado, um tanto irritado”), Restless, tense (“Inquieto, tenso”), Resolute, pulsing (“Resoluto, pulsante”) e, por fim, Anxious and racy (“Ansioso e ousado”). Em momento algum, porém, se abdica da liberdade interpretativa e da subjetividade que dela resulta – antes se faz uso delas em cada gesto.
A obra seguinte, “American Settings”, é um ciclo de cinco canções para percussão e contratenor (Stephen Diaz), sobre poemas dos norte-americanos Terrance Hayes e Tracy K. Smith. O nome e os autores remetem para uma visão da atualidade associada aos Estados Unidos, no seu excesso e extremismo, mas as preocupações abordadas ultrapassam fronteiras.
Hayes e Smith são autores atentos a questões sociais, manifestações de racismo, expressões de colonialismo, aos perigos com que as sociedades se deparam, ao obscurantismo que as ameaça. Smith, que tem em Such Color o seu mais recente livro e prepara a publicação de To Free the Captives, venceu o Prémio Pulitzer por Life on Mars, em 2012; Hayes, que recentemente estreou Cycles of My Being com a Ópera de Filadélfia, escreveu American Sonnets for My Past and Future Assassin, na sequência da chegada de Trump à Casa Branca, e com esta obra conquistou o Prémio Bobbit, em 2020.
American Settings fala assim da condição humana e do que a condena, fala de agressão e brutalidade, da mais íntima à mais evidente, da agitação social e dos gestos diários que a ela conduzem. “Quero lutar contra os raios cinzentos […] quero lutar contra o vento”, diz Terrance Hayes.
Cada andamento toma o nome do poema a que dá voz. Os dois primeiros, Wind in a Box e The Umpteenth Thump (“Mais um murro”, em tradução livre) vêm de Hayes; os três seguintes, Flores Woman, Semi-splendid e Us & Co., são de Tracy K. Smith.
O início surge quase como um lamento, que é retomado no final, partilhando uma reflexão interna, tranquila, por vezes dolorosa e contida. Do primeiro ao último instante, voz e percussão conjugam-se em função da palavra, seja no ritmo de The Umpteenth Thump, na melancolia de Flores Woman”, seja na tensão imposta pela violência de “Semi-splendid. Há algo de cíclico, quase simétrico no conjunto da obra, com ‘desvios’ que vêm do texto e sempre em função dele. American Settings pode ser a ‘cantata-testemunho’ dos tempos que correm.
Sucede-se Three Memos, peça de três curtos andamentos para duo de percussão. Trata-se, na prática, de um estudo sobre as possibilidades da interpretação, fazendo apelo ao mínimo material de base, mas explorando transfigurações, contrastes e gestos, dos mais subtis aos mais evidentes. O nome dos andamentos volta a indicar quase tudo: On Counting and Quiet, On Silent and Irrational Rhythm, Quickness and Precision.
Aphasia, para percussão solo e eletrónica, encerra o álbum. Pode ser ouvida como sequência do percurso feito. A referência ao distúrbio da linguagem falada ou escrita, à perda da capacidade de expressar ou compreender, nos seus diferentes tipos ou graus, não é um acaso, é um processo. O material de base transforma-se e circula num fluxo de gestos que se sobrepõem e se afastam com precisão, mas também com surpresas, criando novas camadas de ‘matéria musical’ e, com elas, uma outra possibilidade de linguagem além da fala.
Quando há cerca de quatro anos Vasco Mendonça editou Step Right Up, com a Orquestra Gulbenkian e o pianista Roger Muraro (Naxos), a sua perspetiva ficava bem clara, nas notas que acompanhavam a edição em disco: “Cada obra musical é um organismo, uma forma de vida que, de algum modo, se transformou, para traduzir uma ideia de som, ao longo do tempo.” A afirmação não podia ser mais válida para Aphasia e, obviamente, para a obra do compositor.
Peixinho Patriarca Percussão”, vindo do final de 2021, revela primeiras gravações de três obras de Jorge Peixinho mais uma de Eduardo Luís Patriarca. O álbum abre com Morrer em Santiago, do cofundador do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, peça composta e estreada há 50 anos, depois de a democracia chilena de Salvador Allende ter sido derrubada pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, liderado por Augusto Pinochet. Foi o início de quase duas décadas de uma das mais brutais ditaduras da América Latina (1973- 1990).
Em 12 andamentos, que incluem sequências como Elegia à Liberdade Perdida, Setembro em Santiago e Tombeau de Pablo Neruda, Morrer em Santiago é uma representação de dor e de raiva, de tristeza, mas ainda assim de alguma esperança. Tudo ganha vida nos padrões rítmicos e nas texturas exploradas pelo compositor, na conjugação rara de seis percussões, expandidas por instrumentos de sopro (Pedro Couto Soares), que incluem flauta, melódica e cromorna, um antiquíssimo antepassado do oboé.
Morrer em Santiago, obra que ficou esquecida entre os manuscritos de Jorge Peixinho, foi estreada no Teatro S. Luiz, em Lisboa, paredes meias com a sede da PIDE, a polícia política da ditadura portuguesa, ainda antes do 25 de Abril.
Segue-se “Empty Time/ Empty Space”, de Eduardo Luís Patriarca, que assume as seis percussões de “Morrer em Santiago”, e dá assim continuidade ao que a move, numa pesquisa de possibilidades rítmicas e tímbricas. Uma demanda que se prolonga através das duas outras obras para eletrónica de Peixinho, também inéditas em disco: “A Floresta Sagrada” e “Electrónicalírica”, ambas restauradas pela engenheira de som Suse Ribeiro.
O terceiro álbum, “For Percussion”, editado em abril deste ano, resulta do trabalho conjunto do Drumming com a dupla @C, de Miguel Carvalhais e Pedro Tudela. São seis peças, todas elas numeradas (“63”, “58”, “88”, “66”, “88R”, “63L”), testemunhos de uma colaboração de quase duas décadas. O trabalho prende-se sempre com o desvendar de caminhos de som através da improvisação, com referências mais ou menos distantes, que podem ir de Frank Zappa a Karlheinz Stockhausen.
Nestes álbuns, o Drumming – Grupo de Percussão apresenta-se com os músicos André Dias, Daniel Araújo, João Miguel Braga Simões, João Tiago Dias, Nuno Aroso, Pedro Góis, Pedro Oliveira, Rui Rodrigues e Saulo Giovannini, além do seu fundador e diretor artístico, Miquel Bernat.
Na discografia do grupo, quase sempre premiada, encontram-se ainda gravações tão notáveis como “Textures & Lines” (Holuzam, 2020), com o duo de piano e eletrónica de Joana Gama e Luís Fernandes, “Liturgy of the Birds” (Clean Feed, 2019), com a música de Daniel Bernardes, sob a inspiração de Olivier Messiaen, “Archipelago” (Odradek, 2019), com obras de Luís Tinoco, “Mares” (MPMP, 2016), dedicado a António Chagas Rosa, e “Step by Step” (JACC Recs, 2013), para composições de António Pinho Vargas.