Madalena Sá e Costa, 100 anos
Destacada violoncelista e professora, de uma eminente família de músicos, o pai compositor, e pianista com a outra filha, Helena, ainda foi discípula ou conheceu Viana da Mota e Guilhermina Suggia, Paul Grümmer, Pablo Casals e Rostropovich. Fez agora cem anos e de par com a(s) muita(s) memória(s), continua a olhar para a frente e a afirmar o seu gosto em estar com os jovens e viver. Como se vê nesta tão expressiva entrevista ao JL, conduzida por um musicólogo e nosso colaborador que conhece bem a sua obra
Madalena Sá e Costa (MSC), que fez 100 anos no passado dia 20, será talvez um dos melhores exemplos do que é viver uma vida plena, dedicada inteiramente à Música e aos outros. Nascida no seio de uma família de músicos, que marcou o Porto e mesmo o país, é ainda uma notável violoncelista solista. Foi-lhe atribuído o Prémio da Emissora Nacional em 1943, a última vez que tocou a solo em concerto foi em agosto de 2012; e durante quase 40 anos foi destacada professora no Conservatório do Porto, onde ensinou alguns dos principais violoncelistas portugueses, entre os quais Paulo Gaio-Lima. Pode orgulhar-se de ter estreado e/ou ser dedicatária de algumas das mais belas páginas escritas para violoncelo por vários compositores portugueses, a começar por seu pai, Luís Costa, mas também por Armando José Fernandes ou Fernando Lopes-Graça. Falar de si é também falar da sua irmã Helena Sá e Costa com quem, durante mais de meio século, desenvolveu uma intensa atividade concertista, quer em duo, quer em trio e mesmo em quarteto (Trio e Quarteto Portugália). Exemplo pleno e transcendente do envelhecimento ativo, Madalena Sá e Costa, dedica-se presentemente à edição da Obra Musical de seu pai, ao alargamento do reportório para violoncelo, isto sem falar numa constante participação em palestras, concertos e convívio com músicos e jovens.
Jornal de Letras: Como foi nascer e crescer rodeada de Música?
Madalena Sá e Costa: Foi algo que ficou para a vida! Eu acordava com Poemas de Liszt ou com Concertos de Brahms. E ouvia-se música por toda a casa!
Os seus pais eram ambos pianistas. Como surgiu o violoncelo?
O meu avô, Bernardo Moreira de Sá, tinha um (violino) Guadagnini, feito por Bernardel e escolhido para ele por Sarasate, do qual tenho imensas saudades. Está hoje na Fundação Gulbenkian. O violino estava fechado numa caixa que eu abria aos domingos quando ia a sua casa. Colocava-o entre os joelhos, como se fosse um violoncelo, fiquei com a lembrança de tirar uma sonoridade fenomenal – e, foi assim, que comecei com o violoncelo. Augusto Suggia, pai de Guilhermina, foi o meu primeiro professor, e terá dado conta à filha dos meus progressos de uma forma tão expressiva que ela própria me quis ouvir e depois fui sua aluna durante muitos anos.
Admirava muito Guilhermina Suggia?
Guilhermina tocava muito com os meus pais e era grande amiga de infância da minha mãe. Havia um grande convívio e eu tinha por ela uma admiração enorme. Era espantoso ouvir aquela mulher! Um vulcão! O seu fraseio musical e uma capacidade de arriscar únicos. Não tocava duas notas em que não exteriorizasse o seu ser, tinha uma ligação afetiva, emotiva com o público. Tudo isto também possibilitado pelo Montagnana, violoncelo único e que lhe permitiu mostrar as suas potencialidades. Lembro-me sempre da 2ª Sonata para violoncelo e piano de Brahms e do Concerto de Dvorak. A impressão de a ouvir nesta obra era tal que parecia ter sido escrita para ela. Nunca ninguém a tocou assim!
E o seu pai, Luís Costa, como era como intérprete?
O meu pai estudou na Alemanha – e estou até pensar, a partir da sua correspondência nesses anos escrever sobre ele, a sua vida em Berlim, o convívio com grandes artistas, alguns ainda tão próximos de Brahms ou Liszt. O meu pai tinha uma forma muito própria de ver as coisas, de viver a música e a arte no fundo a arte é só uma. E corria riscos, corria todos os riscos! (risos). Tinha as mãos próprias para a sonoridade de Brahms e também para Beethoven…. é pena não haver gravação da época. Nunca voltei a ouvir uma interpretação semelhante às que fez com Suggia das Sonatas de Brahms.
E o pai compositor?
Lembro-me da minha mãe dizer: “Hoje à noite o pai vai tocar-nos a sua última composição”. Meu pai dedicou-se com muita intensidade à composição. A sua obra é vasta e variada. Assim aconteceu com Pelos Montes Fora, Cenários, Telas Campesinas. O encantamento de ouvir música evocativa daquela região de Fralães no Minho. São peças com um cunho muito poético e são evocações concebidas pela forte emoção daquela belíssima paisagem da casa onde nasceu, na Quinta da Porta. Mais tarde, veio uma fase mais intimista e pessoal, da canção de câmara, com a poesia de Guerra Junqueiro, Teixeira Pascoaes e Correia de Oliveira. Aliás, várias obras suas, de grande interesse, estão gravadas: o Trio, por Pedro Burmester, Gerardo Ribeiro e José Augusto Pereira de Sousa; a Sonatina de Viola, por Anabela Chaves e Olga Prats; a Sonata de Violoncelo e Piano, dedicada a “sua filha Madalena”, por José Augusto Pereira de Sousa e Frank Reich; cinco outras peças por minha irmã Helena.
Como foi viver com pais que eram professores e professores que eram pais?
Com o respeito e a naturalidade que surgia da relação. Devolhes tanto a atmosfera que nos proporcionaram como os ideais e conhecimentos que nos transmitiram.
Havia um grande amigo da sua família e presença tutelar: Viana da Mota!
Era uma visita frequente. A relação musical e de amizade já vinha do tempo de meu avô Bernardo. Fez com ele digressões aos Açores e três no Brasil. Foi com ele no Orpheon Portuense que se começou a ouvir o “grande repertório”. Lembro-me também que minha irmã Helena recebeu o Prémio Beethoven instituído por Vianna da Motta depois de ter executado as 32 Sonatas de Beethoven, por ocasião do seu centenário. Meu pai também cultivava a tradição de celebrar o centenário dos grandes compositores.
A vossa casa, no Largo da Paz, era frequentada também por alguns dos maiores artistas internacionais que vinham ao Porto tocar. Como foi ver entrar pela porta e conviver com nomes como Heifetz, Gieseking, Cortot, Weingartner, Paderewski…
Era fantástico! Respirar aquele ar que havia lá em casa, a Música! Foi uma época de grande dinamismo! Lembro-me de Wilhelm Backhaus, do seu som “beethoveniano”, da sua potência sonora. A ideia de que o intérprete se pode transcender e, ao fazê-lo, a obra musical ganha outra dimensão!
Estudou com Paul Grümmer e Pablo Casals. Este último uma referência incontornável não só enquanto violoncelista mas também moral.
O que me abriu um horizonte imenso! Tremendo! Curiosamente, depois de conhecermos e trabalharmos com esses gigantes, damo-nos conta que afinal é um disparate todo aquela apreensão que nos causas. No fundo, somos todos iguais, é tudo igual – e toca a trabalhar para ir mais longe! Ai está a receita! (risos)
São conhecidas as digressões que fez com a sua irmã, como aquela em companhia da Orquestra Filarmónica de Berlim e dos míticos Wilhelm Furtwängler e Edwin Fischer.
Foi uma viagem a Weimar aquando da estreia do Concerto para Piano de Furtwängler, dirigido pelo próprio, em que Fischer era solista ao piano. Furtwängler nasceu para a música, não se entendia com as coisas mais comezinhas da vida, como comer (risos). E Fischer, que amigo, que saudades!
Foi professora no Conservatório de Música do Porto durante 38 anos, isto sem falar da passagem pelo Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, em Braga, e pelo Conservatório Regional de Vila Nova de Gaia. Qual deve ser a maior qualidade do professor?
É preciso dizer que todos os alunos têm o seu quê de muito pessoal e, por essa razão, é preciso respeitar a individualidade artística. Temos de procurar o talento de cada um. Aquilo que cada um traz à música, a tal individualidade. Foi algo que a minha mãe sempre defendeu, a teoria de que cada um trás o seu mundo e um mundo diferente! É preciso aceitar tudo e, depois, moldar, adaptar. Criar e ir pouco a pouco moldando, é aí que reside o ensino.
É um grande exemplo o facto de, mesmo após ter iniciado uma longa carreira artística, nunca ter deixado de procurar o aperfeiçoamento e o contacto com grandes artistas como os já referidos os já referidos Paul Grümmer, Pablo Casals ou Sandor Veghe, e já em 1981 Mistislav Rostropovich.
É preciso distinguir o professor do Mestre. Aqueles que menciona eram Mestres! Houve sempre da nossa parte a necessidade de conhecer, de ter informação. Sabendo mais, conhecendo mais, podemos ir mais longe. Tocámos, eu e a Helena, para Rostropovich, o qual, sempre tão natural, nos disse que tocávamos como a água que corre de uma fonte e nos perguntou porque é que lá tínhamos ido. Dissemos-lhe que ele era uma referência, uma personagem lá das nuvens, com muito nome e com um percurso incrível, que nos podia dizer qualquer coisa sobre música. Respondeu-nos que no fundo a Música é algo muito simples (e nós que achávamos que era algo muito complexo…). Adorei!
É o espírito que os seus pais vos transmitiram que a levou a criar e dirigir artisticamente os Cursos Luiz Costa em Fralães (1999-2009)?
Sim. E também a escolher os professores que naquele ambiente trabalharam com alunos vindos dos quatro cantos do pais! Foi aí que dei conta de como tínhamos progredido no alargamento da formação musical. Não muito para trás havia apenas dois conservatórios e algumas academias que fizeram um trabalho notável.
Muitos dos nossos leitores irão ficar surpreendidos com a quantidade de projetos e planos que tem, não só no presente como para o futuro…
Gostava de ir à Rússia! (risos) Tenho em mãos aquela ideia de que falei sobre o meu pai em Berlim, o fado Burnay, as edições na internet de obras do meu pai e a Berta Alves de Sousa! E ainda outras, a seu tempo!
Há uma pergunta ‘banal’ mas a que não resistimos: que compositores e obras levaria para uma ilha deserta?
Bach e Brahms! O Cravo Bem Temperado do primeiro, que ouvi tantas vezes pela minha irmã, na Bélgica, Alemanha…, em todas as tonalidades, uma obra prima. Do segundo, as Sonatas para violoncelo e piano e as Suites.
E não podemos deixar de evocar a sua irmã, Helena Sá e Costa…
Foi uma das maiores artistas que conheci, ouvi e acompanhei ao longo de muitos e muitos anos. Tocámos juntas mais de 50 anos, na verdade, desde muito crianças: com 8, 9 anos, a nossa mãe estabeleceu um sistema de trabalho para tocarmos juntas. Tínhamos um dia certo e assim começamos a fazer o nosso repertório até às Sonatas de Beethoven e de Brahms. Devido a esse trabalho fazíamos ambas de cor a 1ª Sonata de Brahms e a 3ª de Beethoven. Era um prazer imenso trabalhar com a minha irmã, por quem eu tinha uma admiração espantosa. Aprendi imenso com ela. Fizemos mais de mil concertos em Portugal e também nas ilhas da Madeira, nos Açores na Alemanha…e quase sempre de cor. Era realmente uma comunhão de ideias muito grande que existia entre uma e outra. Tocar com a Helena, era fazer Música como que saltando em grande altitude de um avião, com toda a liberdade.
Gostava que nos deixasse um conselho aos jovens músicos.
Há uma linha condutora que se transmite através do contacto direto entre compositores e intérpretes, entre professores e alunos: procurem a beleza, a essência e beleza intemporal da Música que leva a que, após uma vida de convivência com certas obras, ainda se descubram novos pormenores, novas emoções.
O segredo da sua longevidade é a sua alegria e prazer de viver!
Ui! (risos) Penso que que sim. Vivi tanto, ouvi e vivi momentos extraordinariamente belos, ao ponto de poder afirmar ser quase impossível haver algo ainda mais belo por viver. Até poderia perguntar: porquê viver mais? Na verdade, não sei. Sei que é bom viver, gosto de me surpreender, de me maravilhar, de ter sempre projetos novos, de estar com os jovens! No fundo gosto de viver!