Uma entrevista com Pierre Aderne não se faz sem uma garrafa de vinho aberta na mesa. Encontramo-nos na sua casa atual de Lisboa, onde o seu filho Rio, de três anos, faz um circuito rápido de triciclo e já arranha o bandolim. Mais dentro da noite chegariam os músicos, para fazer gosto aos dedos e à voz. Um casal de músicos brasileiros (voz e violão), a que se juntaram um guitarrista português e uma fadista. Enfim, em síntese, a mistura cultural a que Pierre nos habituou. E faz com que afirme: “Lisboa é a capital da música lusófona”.
Tudo isto se faz de janela aberta para o pequeno quintal, sem que os vizinhos se queixem, até agora, do barulho. Talvez goste da música. Quintal semelhante ao da sua casa anterior, na Rua das Pretas, onde começou a fazer as pequenas tertúlias, imitando Tom Jobim e Amália, e por onde passaram, entre outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Melody Gardot, Tito Paris, António Zambujo… Quem quer que estivesse de passagem pela cidade. Tudo isto se tornou em algo maior, primeiro com a passagem para um palacete no Príncipe Real, com tertúlias semanais, e depois para o program de televisão e concertos nos coliseus, que ainda acontecem.
O pretexto da nossa conversa, contudo, não é a Rua das Pretas, mas sim o novo álbum de Pierre, Vela Bandeira, o primeiro em cinco anos (justo sucessor de Na Trança de Inês). Um álbum fruto de toda essa mistura cultural de língua portuguesa que Pierre patrocinou, mas na sua essência um álbum de samba e bossa nova, com relevantes colaborações femininas, como Rita Red Shoes, a argentina Delphina Cheb, ou as brasileiras Karla da Silva, Nani Medeiros, Camila Masiso e Dandara. A que se acrescentam parcerias musicais com Moacyr Luz, Gabriel Moura, Pedro Da Silva Martins (Deolinda), Fred Martins e Melody Gardot. Um disco cheio de momentos altos, que fala de fado e bossa nova, e que está pronto para imitar o percurso dos álbuns anteriores de Pierre, que passaram pelos Estados Unidos e pelo Japão. Mas, como o próprio faz questão de repetir, o epicentro é Lisboa.
Quando nasceu, em Toulouse, há 55 anos, os pais tinham a intenção de ficar a morar em França para o resto da vida e por isso, para facilitar a sua integração, o batizaram de Pierre. Mal sabiam eles que, apenas um ano volvido, viajavam de malas e bagagens para o Brasil, aceitando o convite da universidade da recém criada Brasília.
O pai, de apelido Faria Neves, era professor de Literatura Portuguesa, oriundo de Vilar de Perdizes. Estudava em França quando conheceu a sua mãe, artista, brasileira, estudante de Belas Artes. Já a avó materna era artista plástica e as tias estavam ligadas às artes. A mãe acabou por fazer todo um percurso ligado às artes e à educação.
“Brasília era como se fosse uma cidade veraneio”, explica Pierre Aderne, rebuscando a suas mais remotas memórias. É que na nova capital foi estrategicamente construída no meio do nada. Ninguém era dali. Todos eram bahianos, mineiros, paulistas, cariocas. “A classe intelectual era quase toda do Rio de Janeiro”, afirma. Nas férias e sempre que era possível ia para o Rio de Janeiro.
A sua tia era atriz, dedicada sobretudo ao teatro infantil. Então, muitas vezes, Pierre acompanhava a digressão dos seus grupos – Umbu e Vento Forte – pelo país. Havia uma grande ligação entre este estes artistas e a música, até porque o arranjador musical do grupo, conhecido como a grande figura da harmonia da música brasileira, era o húngaro Ian Guest. Daqui ficou a influência das serestas e das baladas.
Aos 11 anos, os pais separaram-se. O pai manteve-se em Brasília, a mãe, dedicada à arte e educação, passou a percorrer o país em atividades, instalando-se finalmente em João Pessoa, na Paraíba. Ali viveu, até aos 15 anos, convivendo, entre outros, com Elba Ramalho, cujo show a mãe produzia. Depois acompanhou a mãe na mudança para Inglaterra, Birmingham, onde foi fazer um mestrado.
Na altura, Pierre Aderne dedicava-se à natação. Treinava duas vezes por dia e queria ser atleta profissional. Mas foi também ali que teve contacto com a grande música anglossaxónica 80-82. O final dos the Who, Yes, Clash… Pegou um pouco disso tudo. “A minha mãe deu-me uma viola e eu fui brincando. Birmingham tinha muita imigração jamaicana e era ligada ao reggae.” Contudo, o que mais lhe interessava continuava a ser dar as braçadas na piscina.
Por essa altura foi passar três meses em Portugal, em Ourém, com os avós. Continuava a treinar em Torres Novas, a piscina mais próxima. O treinador quando o viu nadar selecionou-o para uma prova em águas abertas na Nazaré. E ganhou mesmo a prova. Ficando cada vez mais convencido do seu talento para o desporto.
De volta ao Brasil, no Rio de Janeiro, ganhou uma bolsa para cursar desporto em Indiana nos Estados Unidos. Estava pronto para partir, quando ouviu “Vital e Sua Mota”, sucesso dos Paralamas do Sucesso. “Foi como uma aparição. Decidi que era aquilo que queria fazer da vida”, revela. E assim aconteceu. A mãe compreendeu bem a opção, ele comprou uma guitarra nova, começou a compor e três meses depois estava no palco, criando a banda Habeas Corpus. Tinha 17 anos.
Uma banda com algum sucesso, diga-se, mas que se desfez, quando estavam prestes a assinar o contrato com a BMG. “Na hora não quis assinar, os meninos queriam-me matar, mas não era aquilo que queria fazer, a minha cena era mais a MPB”, conta. A banda estava mais próxima do rock e do raggae… Gregory Isaak, Yellow Man, etc…
No Rio de Janeiro, conheceu Lenine, que se tornou uma importante influência, assim como Marina Lima, que o amadrinhou, e começou a dar pequenos concertos nas casas do Roo, fazendo participações no espetáculo da Sandra de Sá.
Gravou um primeiro disco pela Universal que nunca chegou a sair. Pierre, torcedor do Vasco da Gama, teve então uma ideia de sucesso. Resolveu regravar os hinos das claques do futebol. E para isso chamou nomes como Caetano Veloso, Tim Maia, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Ed Mota, Alceu Valença… Produziu o disco, colocou à venda com a revista desportiva Placrad e vendeu um milhão de cópias em 24 horas. Passou a lançar os discos de todos os amigos em bancas do jornal. Incluindo o seu primeiro, com o longo título Se a língua faz parte da boca a gente só se fala porque eu te beijo.
“Senti-me muito sozinho no final disto tudo, então resolvi largar tudo e começar a gravar um disco”, explica. Juntou-se Dadi Carvalho, produtor de Marisa Monte e dos Novos Bahianos. Entretanto, foi a um concerto do David Byrne. Dali copiou seis músicas num CD-R e entregou ao músico americano. Passados uns dias recebeu um email dele a convidá-lo para discutir os direitos do disco na sua Luaka Bop. Só que, quando foi para Nova Iorque, não encontrou Byrne, mas um diretor da editora, que achou muito arrogante. Desistiu da ideia.
No entanto, lembrou-se de enviar um disco para o Japão. Assim acabou por ser lançado primeiro no oriente. Com grande sucesso. Foi escolhido pela Tower Records do Japão como disco do mês. Fez uma digressão por terras de seu imperador e o álbum, Casa de Praia, foi lançado posteriormente pela Trama. Seguiram-se três outros discos.
Foi também por essa altura que veio a Portugal fazer os primeiros concertos, assinando um contrato com a Farol. Depois dinamizou o projeto Doces Cariocas, um antecessor da Rua das Pretas, que ganhou importantes prémios.
Desde 2005 que fazia tertúlias nas sua casa em Copacabana, ao estilo de Tom Jobim. Por ali passou muita gente famosa. E também foi a propósito deste encontros que escreveu “Guia”, para António Zambujo, cantor português na altura ainda desconhecido no Brasil; e, entre outros, gravou um dueto com Cuca Roseta.
Em 2011, veio para Portugal para filmar um documentário sobre a música portuguesa para o Canal Brasil. Arrendou uma casa no Poço dos Negros e ficou a montar o documentário. A RTP quis o trabalho. Acabou por fechar o apartamento do Rio e mudar-se definitivamente para Lisboa. “Passei a minha vida inteira a pensar que a música de língua portuguesa que existia era praticamente só a que se fazia no Brasil, qual foi o meu espanto quando chegando a Portugal conheci o Titos Paris, Bana, José Mário Branco, Jorge Palma, Sérgio Godinho e a nova geração…”, conta. E acrescenta: “As coisas mais interessantes da música brasileira estão vindo para aqui. Lisboa já tem um sotaque musical.”
Com a mudança para Lisboa, as tertúlias de Copacabana passaram para a sua casa na Rua das Pretas. De início era apenas um encontro de amigos. Mas a casa aberta começou a acolher cada vez mais gente. Até que certo dia reparou que a sua própria casa era referida no Japão como se fosse um clube de jazz lisboeta. Foi então que se lembrou de passar a cobrar bilhete.
Da casa passou para um palacete, em pleno Príncipe Real, que um amigo disponibilizou. O elenco sempre variado e no menu uma mistura de fado e bossa nova, acompanhado de vinho tinto, de marca própria. O disco Um Copo de Fado, dois de Bossa Nova, com o título tirado de um artigo do JL, resume o espírito daquelas tertúlias.
Rua das Pretas já circulou por Madrid, Paris, Berlim, Nova Iorque, mas para Pierre chegou a altura de iniciar uma nova etapa. “Partilhámos muito tempo o mesmo espaço, agora tenho vontade de ter um quarto só para mim. Acho que acontece com todos os músicos da Rua das Pretas… Depois encontramo-nos nas férias”.
Assim estes próximos concertos nos Coliseus e as residência marcadas para Londres e Nova Iorque podem ser “o último suspiro” do projeto.
Agora Pierre está mais concentrado em Vela Bandeira, disco brasileiríssimo mas que de alguma forma espelha o espírito cosmopolita que tem cultivado em Lisboa. Explica: “O disco surgiu da saudade que tenho do Brasil que vivi. Da beleza desse país antes de ser tomado assalto pela IURD. Já não posso ir ao Brasil, porque o Brasil de que gosto é impossível de encontrar”. Do álbum fazem parte sete músicas compostas com Melody Gardot, a que se junta um regressa ao samba e um fecho com um ponto de candomblé. Na base conta com os seus colaboradores habituais. “Fiz este disco com o que tinha dentro da geladeira”, diz.
Enquanto trata da promoção e circulação do novo álbum, Pierre parte já para novas ideias. O álbum seguinte será escrito muito provavelmente com o sambista Moacyr Luiz, com quem já fez várias parcerias. E nós sabemos que, por onde quer que vá, Pierre terá sempre muitas pessoas à sua volta. “Adoro juntar gente”, diz. E, passados uns minutos, chegam a casa um grupo de amigos músicos, alguns portugueses outros brasileiros. Enchem-se os copos, afinam-se as guitarras, o serão vai começar.