Em abril de 2007, no seu 20º nº, a revista Relâmpago encontrava em Camões o tema e o motivo suficientes para, através da sua poesia, celebrar duas décadas de ininterrupta atividade. Desse número convém lembrar alguns estudos que, quinze anos depois, deveriam, pela agudeza e penetração de que se revestem, ser conhecidos, lidos, comentados em aulas. Sejam as de Português ou de Literatura Portuguesa, na área de Humanidades, no ensino secundário, sejam as aulas de Literatura Portuguesa dos séculos XVI e XVII no Ensino Superior, ou mesmo quando se estudam os séculos XIX e XX no que tange à Poesia, o conhecimento, o mais abrangente possível, da bibliografia passiva deve orientar a prática pedagógica. Assim se evitam antigas e novas superstições literárias, na célebre expressão de Paul Valéry.
Impõe-se mesmo o seguinte: evitar o que, não raro, persiste como estratégia de aproximação ao autor de Os Lusíadas – as considerações de natureza biográfica. Se percorrermos muitos manuais adotados hoje, continua a ser a biografia um dos eixos para se entrar na obra do grande poeta, desprezando-se, ou não se observando um dado simples: sabemos pouco da vida de Camões e, ao contrário do que defendeu José Hermano Saraiva, não é sobreinterpretando os seus poemas que ficamos mais conscientes do que terá sido a vida de Camões.
E nem é isso que verdadeiramente importa. Importa, para lembrar um teórico a quem muito devem os estudos literários, Roman Ingarden, ver o que não cabe na obra literária, porquanto a obra literária dependa do que nela é o seu material estruturante: a linguagem. Ingarden (in A Obra de Arte Literária, Fund. Gulbenkian, 1979, pp. 38-42) explicita: fora da obra de arte literária devem ficar “o próprio autor com todos os seus destinos, vivências e estados psíquicos. Nomeadamente, as vivências do autor durante a criação da sua obra não constituem elemento da obra criada.”
Para lembrar David Mourão-Ferreira, sempre iluminador, “a biografia ajuda, mas não explica.”. E fora da obra ficam também as vivências e estados psíquicos do leitor, o que bloqueia à partida, questões tão pseudo científicas como as que aparecem em manuais escolares ou são recurso constante na relação entre professor e turma/aluno: “Que impressão é que este poema te causa?”, “Que sensações podemos ter depois de ler o Adamastor?”
De facto, valeria a pena recuperar aquele número da revista Relâmpago e ler com os alunos, de maneira a que se compreendam conceitos e argumentos, contexto histórico-cultural e ambiente filosófico, os ensaios de Vítor Manuel de Aguiar e Silva (“Camões e a comunidade interliterária luso-castelhana dos séculos XVI e XVII”), Frederico Lourenço (“O contributo das Rythmas de 1595 para a ordenação dos poemas líricos de Camões”), “Camões em Sena”, de Jorge Fazenda Lourenço, ou ainda o seminal trabalho de José Carlos Seabra Pereira, “Primeiros apontamentos sobre Camões no Neorromantismo Português”.
A PARTIR DESTES ENSAIOS DOIS CONCEITOS poderiam ser úteis nas aulas de Português e de Literatura: o de transdisciplinaridade e o de comunidade interliterária. Isto é especialmente relevante quando falamos do ensino de Os Lusíadas, obra que se tece no diálogo com outros textos (épicos e não épicos) e que ganha em ser comentada quando se não ignoram trechos axiais de outras épicas, de algumas crónicas tardo-medievais, de não poucas alusões bíblicas, ou de decalques literários justificados pela própria obediência às convenções de época.
Essa tarefa de leitura da epopeia de Camões a partir do que a bibliografia passiva pode oferecer teria de pedir, por parte do professor, sobretudo no 3º ciclo (9º ano) e no 10º e 12º anos, uma pesquisa prévia que só com tempo é possível levar a cabo. Como seduzir para a leitura comentada dos passos da épica que, atualmente, fazem parte dos programas de Português? Se, porventura, for prioridade não o cumprimento cego do programa (a velocidade a que se tresleem os excertos constantes nos manuais em presença), mas antes a consolidação da competência da leitura inferencial e a subsequente consolidação da prática da escrita (paráfrase, análise de estrofes, exercício da citação crítica, atenção profunda prestada aos elementos de retórica de que a frase épica se faz – o anacoluto, o hipérbato, o quismo – dilucidação do conteúdo simbólico deste ou daquele episódio – o paralelo entre o Adamastor e o tópico da catábase na épica antiga, com a Divina Comédia como âmago literário desse tema: a descida aos infernos), parece-me plausível que os alunos comecem, gradualmente, a compreender quanto Os Lusíadas são um dos espelhos reveladores da nossa psicologia.
Nesta perspetiva, seria elementar, como bem viu José Augusto Cardoso Bernardes no JL de 26 de janeiro último (nº 1339), colocar à disposição de alunos e professores edições integrais da epopeia camoniana. Se é verdade ser impossível estudar os 8816 versos, as 1102 estrofes deste monumento literário, verdade é também que a saudosa edição de Emanuel Paulo Ramos (a que usei quando fui aluno no início da década de 90), já pelo cuidado gráfico, já pela pertinência e extensão dos comentários filológicos e culturais, deveria servir de modelo a essas futuras edições que viessem a publicar-se. No limite, pergunto-me se não faz sentido o regresso dessa edição às nossas escolas, pois que o formato de bolso, reproduzindo-se o tamanho original do poema, nos dava a exata noção da sua monumentalidade.
UMA POSIÇÃO MAIS CRÍTICA face aos episódios atualmente estudados (para além da Proposição, dever-se-ia ler e comentar a Invocação e a Dedicatória e, pelo menos explicitar o começo in media res da estrofe 19 do Canto I), teria como fito alargar o universo referencial dos nossos alunos e, simultaneamente, convidá-los a ler crítica e ensaio, sem cujo auxílio a epopeia é superficialmente entendida pelo leitor de agora.
Assim, mais do que relacionar os Descobrimentos com qualquer gesta desportiva ou empresarial, médica ou científica dos últimos tempos (a conquista do Euro 2016, ou a recentíssima vitória do Europeu de Futsal, ou Portugal dado como exemplo na luta contra a Covid); mais do que vincar a heroicidade do Gama a partir de exemplos que, na atualidade, podem ser conhecidos dos nossos estudantes, mas são, não raro, maus exemplos de cidadania (que têm os nautas lusos que ver com ‘heróis’ contemporâneos, sejam eles futebolistas, empresários, gestores ou políticos? Que sentido faz falar-se de heroísmo ao referir o almirante Gouveia e Melo, quando, na verdade, Camões é veemente na crítica à Fama que deturpa a virtude moral?
Julgo que Os Lusíadas podem abrir-se à fruição estética da língua pelo modo como o professor possa analisar o “engenho e arte”, a ductilidade do idioma de Camões, quer na sua fonética e morfologia (oportunidade para se esclarecer questões de ortografia e etimologia), quer na sua sintaxe (a desmontagem do hipérbato nas oitavas pode ser a porta de entrada para se compreender o estilo clássico de Ricardo Reis, outro conteúdo literário dos programas), não se esquecendo a semântica, plano gramatical que, sem esforço, aproveitando a polissemia de inúmeros termos da épica, serve para trabalhos de investigação acerca de vocábulos em desuso, empréstimos, léxico diverso sobre fauna e flora.
Em todo o caso, se é a leitura, como diz Rita Marnoto, “o centro do processo educativo”, na aprendizagem dos episódios da épica, creio ser fundamental lê-los – hélas! – com a exata noção de que há um ensaísmo de referência que os professores não podem ignorar. É a leitura prévia de alguns desses ensaios que pode enquadrar melhor o aluno quanto a passos nem sempre óbvios, posto que a língua e o pensamento no século XXI não sejam a língua e o pensamento do século XVI.
OS TRECHOS SOBRE A BATALHA DO SALADO e de Aljubarrota têm outra ressonância quando se compreende a noção de poder ao tempo de D. João I, tal qual a estudou Luiz Francisco Rebello; a hipótese de haver cripto-judaísmo em Camões foi amplamente estudada por Fiama Hasse Pais Brandão em O Labirinto Camoniano e outros labirintos (Teorema, 1985, 2007, 2ª ed.) e é um admirável e instigante livro de ensaios, de que relevo estes: “Camões e Os Lusíadas e o significado de alguns nomes”, “Linhas das cartas de Camões”, “A Ilha do Amor”, “Luís de Camões nos anos 70” e “Recomeçar a ler Os Lusíadas”. O Zohar, as dez emanações da Schehiná, o sionismo no reinado de D. João III, a alquimia e a cabala judaica como textos a servirem de subtexto à estrutura da epopeia e que Jorge de Sena terá intuído em volumes como A Estrutura de Os Lusíadas ou no seu “Ensaio de revelação da dialética camoniana”, de 1950, em rutura com o paradigma biografista da primeira metade do século XX; alguns aspetos relativos aos Cavaleiros do Amor (seita a que Camões presta hermética homenagem na epopeia – é ver o Gama e a sua armada e a simbologia patente nas cores, na natureza figurada e na descrição do ‘Monte Cipariso’ a que Téthis guia o Herói -, na senda de Bernardim e que Garrett, mais tarde, incorpora como dédalo das suas Folhas Caídas e das suas Viagens); o inapagável estudo de Vasco Graça Moura, intitulado Camões e a Divina Proporção (Lisboa, 1985), que pode mesmo seduzir estudantes das matemáticas e das ciências para a dimensão simbólica dos números numa obra tão dependente do significado deles. Somem-se a leitura de excertos Luís de Camões: alguns desafios (Vega, Lx, 1980), do mesmo Graça Moura, ou ainda o transdisciplinar Fernão Gomes e o Retrato de Camões (INCM, 1987), que iria fascinar, decerto, alunos da área de Artes, eis alguns trabalhos académicos, mas não só académicos, que quero aqui lembrar.
Quem sabe, lendo este artigo, não haja um ou outro professor de português e de literatura que deles se recordem, ou, não os conhecendo, os queiram conhecer e levá-los para as aulas?
No fundo, se ensinar a ler é difícil, ensinar a ler as obras literárias cujo código do nosso se distancia já em alguns planos linguístico-ideológicos, estilístico-retóricos, histórico-culturais, como é o caso de Os Lusíadas, mais difícil é. Todavia, o fácil, a adaptação de textos complexos que são âncora da nossa identidade, isso é justamente o que afasta os alunos de uma obra-prima como é Os Lusíadas. Na minha prática docente jamais quis tornar a epopeia de Camões um texto fácil. Esse facilitismo traduz-se quer na incorrecção de alguns questionários sobre determinadas oitavas da épica, ora sobre, ora subinterpretando, quer na infantilização com que se tratam temas magnos próprios da mundividência camoniana e da poética renascentista/maneirista. A meditação sobre a corrupção das elites, a injusta distribuição dos prémios e dos castigos, a defesa do ideal das Armas e das Letras, a reflexão sobre o Amor e o Furor, de que Adamastor é o símbolo, a ascensão do Gama à condição de semi-deus após as “núpcias” na “ínsula divina” com a filha de Neptuno, o papel do Maravilhoso cristão e pagão no mundo humano; a tese de Baco que justifica os dois concílios (a humanização dos deuses, a divinização do Homem), o confrontar dos quatro elementos levado a cabo pelos “novos argonautas”; a própria dimensão metaliterária deste poema, que recomeça no Canto VII com a mudança de tom e de intenção (Os Lusíadas são também a acusação de Camões a quantos traem Portugal e um ideal de humanismo ainda de base cavaleiresca, inspirado na ética romana, de Cícero e de Catão), esses são nós narrativos, ou temas, que deveriam animar as aulas de Literatura e de Português. Que adolescente ou jovem universitário não se sentirá tocado com as oitavas da Ilha do Amor e o discurso de Leonardo correndo atrás da sua ninfa? Que aluno não saberá ouvir, numa leitura em voz alta, pausada, ciente das curvas melódicas da sintaxe de Camões, dos seus sons e imagens, a beleza extraordinária do episódio de Inês de Castro? Quem pode, na verdade, sentir que nada lhe dizem hoje as palavras da última reflexão do Poeta nas estrofes 145 a 156 do Canto X, afinal palavras que são santo e senha para o nosso terrível momento histórico? Em rigor, como podem os alunos não gostar de Camões??
Helder Macedo foi, quanto a mim, quem mais longe levou essa aventura hermenêutica de ler Os Lusíadas a partir do que a alquimia e a simbologia insertas na própria obra nos oferecem, defendendo, no seu Camões e a Viagem Iniciática (Abysmo, 2014) termos de ler o Poeta a partir de uma fórmula que o actualiza e abre à nossa compreensão: na épica e na lírica o que Camões defende é o direito insofismável a sermos felizes na Terra. Que essa lição de Camões se leia nos 450 anos do seu epos, isso desejamos todos, à luz do que um dia escreveu o David Mourão-Ferreira nesse ensaio que une lírica e épica, A Ilha dos Amores e o Lirismo Erótico de Camões (Academia das Ciências de Lisboa, Lx, 1980).