Estreia-se, por fim, em Portugal o Quixote de Terry Gilliam. Uma festa quixotesca e cinematográfica! Que, além do mais, que é muito, tem a participação coprotagonista de uma jovem atriz portuguesa: Joana Ribeiro, com um excelente desempenho do multiforme papel que o realizador lhe atribuiu. Ela é a doce Angélica, a virgem no andor da procissão da aldeia, a puta do “duque” e, por fim, numa das mais belas e cervantinas sequências do filme, a última, é também ela o leal e devotado Sancho que dará uma vida nova a um Quixote derrotado e, de novo, renascido.
Quem conhece o cinema dos Monthy Pyton e, também, o livro de Cervantes, entende que este tenha sido uma tentação inescusável para T. Gilliam. Porque o Quixote não é só o cavaleiro e o seu escudeiro ou uns quantos episódios dos quais pouco mais se conhece (e mal) do que os “moinhos de vento”. A invenção desbordante de Cervantes põe em cena quase 900 personagens e uma infinidade de episódios, dos mais tristes e disfóricos aos mais burlescos: enredados no plano da ação, polivalentes nos planos simbólicos e ideológicos. Excessivos. Que episódios, pois, por em cena? Gilliam, também ele desbordante, optou por muitos, mais do que qualquer outro filme tinha jamais trazido para o cinema. E mostra que conhece muitíssimo bem o livro e também a iconografia que o tem representado. Escolhe e homenageia as recriações visuais de G. Doré, destacadamente as do par.
Como no Quixote de O. Welles, a figura do realizador tem um papel protagonista mas, aqui, presente em todo o filme. O jovem estudante Toby que, anos atrás, viera a Espanha para realizar uma curta sobre a história, tinha já então descoberto em Angélica a sua Dulcineia e conseguido converter um humilde sapateiro em Quixote; regressa, agora, para o “grande” filme. E o espectador regala-se na mestria que nos oferece a interpolação das imagens de então, a preto e branco, na «super» realização de agora . Numa das mais comoventes sequências – humanamente comovente e cinematograficamente esplêndida – Toby (outro excelente actor, Adam Driver) reencontra o seu Quixote que, numa barraca desmantelada numa aldeia de nome “Os sonhos”, por entre caminhos com eólicas (os moinhos estão no lugar das filmagens) passa a sua velha película, sob o anúncio “Quixote vive”. Em fundo, o colosso de Goya. Esse mesmo Goya, cujas caras monstruosas das pinturas negras O. Welles tinha ido buscar para transformar as asas dos moinhos em gigantes.
A atualização da crítica social que Cervantes não tinha poupado é aqui implacável: a libertação dos “galeotes”, com o cavaleiro a atacar a Guardia Civil; a intolerância religiosa; os imigrantes muçulmanos que vivem em bairros de lata e se escondem da Inquisição; o cigano que não rouba mas é “o ladrão”. E, por fim, na recriação do episódio central do Quixote de 1615: uma longa sequência onde as figuras do duque e da duquesa que usam e abusam da ingenuidade de Quixote e de Sancho para divertir-se, humilhando-os uma e outra vez são, agora, um mafioso russo de quem o produtor do filme de Toby espera o dinheiro para a sua grande produção e seus comparsas; o rico palácio é agora, magistralmente aproveitado, o espaço multivalente do Convento de Tomar. Teatralização e carnavalizações distópicas e extremas: esses mesmos processos que alguns dos mais relevantes estudos cervantinos dos nossos dias (em leituras inspiradas por Bakhtine) têm mostrado na encenação de muitas da «loucuras» quixotescas e da crítica que estas encerram. Processos que a imaginação plástica de Gilliam, servida por atores excecionais – como um extraordinário Jonathan Price no papel de Don Quixote – puseram neste filme que nos dá a ver, como nenhum outro antes, a riqueza e complexidade do legado cervantino.