Queres só umas reticências? Vieste ao nosso atelier tatuar três pontinhos? Conta-me lá essa tua história, porque desejas tu fazer uma tatuagem? Toma o teu tempo. Queres um chá? Uma água? Um café? Uma cerveja? Vou mostrar-te o nosso estúdio. Isto era um antigo talho que transformamos em atelier artístico. Aqui fazemos as tatuagens, mais além os piercings, neste corredor estão os escritórios. Temos seis artistas permanentes que desejam tatuagens únicas para cada cliente. Aqui ninguém vai ao Pinterest buscar ideias. Cada tatuagem é uma tatuagem única, pertence ao corpo, à mente, à vida de uma pessoa só. Muitas vezes chega aqui muita gente a querer fazer uma tatuagem igual à do jogador de futebol X ou igual à do cantor Y e nós perguntamos sempre: e porque queres essa tatuagem?
Cada corpo é um corpo, e merece toda a nossa atenção. O que fazemos aqui são obras de arte itinerantes, que circulam por todos os meios e por todo o tipo de gente. É arte que não se põe na parede, que não é estática, que não escolhe galerias para se exibir. É uma obra que aceita a metamorfose da tela onde se inscreve, que adquire novas formas e até significados quando a pele envelhece, sofre uma cicatriz, uma alteração profunda. Uma tatuagem pode ser feita em qualquer corpo, de qualquer idade, de qualquer classe, e com qualquer orientação política ou religiosa. É também uma mensagem, um slogan que gritamos 24h por dia para quem quiser ver. É um manifesto no corpo. Um manifesto de qualquer um.
Dantes associava-se sempre uma tatuagem à má vida, aos portos, aos maus costumes. Quando começámos e abrimos o atelier, eu e o meu irmão, todos nos diziam para não nos metermos nisto, que isto não era trabalho para ninguém e que era só para gente reles, “isso só pode acabar mal”, diziam. Com o tempo, e muito por causa das celebridades, começam a ver-nos de outra maneira. Nós aqui temos todo o cuidado. Somos artistas mas também somos psicólogos, somos curandeiros, somos colo e ombro para muita gente que aqui vem arrumar assuntos da sua vida.
Ninguém se tatua por piada. Porque esta é uma obra de arte que se escolhe carregar no corpo toda a vida. Quem tatua o nome de alguém, ou uma frase de um poeta, uma data, ou um animal ou flor específicos, está a mostrar ao mundo inteiro como pensa, o que sente. Há pessoas que tatuam as alianças em vez de comprarem um anel de ouro, há muita emoção contida numa tatuagem, qual é a tua? Celebram uma paixão, uma saudade, retratam grandes sofrimentos ou grandes superações. São feitas para pagar promessas ou para relembrar diariamente um sonho que temos e queremos conquistar. Temos de tudo. E nós aqui não tatuamos sem ouvir a história de cada um, história essa que inscrevemos no corpo de quem a contou como quem enterra um segredo que só pode ser revelado ali, na tua pele.
Olha, eu nunca conto as histórias nem as conversas de quem cá vem ao atelier mas esta acho que posso contar. Há uns anos chegou aqui uma senhora que conseguiu vencer um cancro da mama. Foram anos de tratamentos oncológicos duríssimos e de uma recuperação lenta. Quando chegou aqui, a Teresa disse-nos: preciso do meu corpo de volta, mas não só por uma questão estética. Não me quero esquecer do que passei. Quero tatuar o mamilo que a doença me roubou.
Mas também temos histórias felizes. Ainda ontem entrou aqui uma atleta olímpica que tinha ouvido falar dos nossos estúdios em Viseu e que queria tatuar um símbolo olímpico. Participar nas olimpíadas tinha sido o momento mais alto da sua vida. E não tinha vencido nenhuma prova. Mas tinha chegado lá. E era importante comemorar. Há um grupo de amigos que todos os anos vem cá e um deles faz uma tatuagem igual a de um amigo comum que faleceu, muito novo, após doença prolongada. Já se tornou um ritual. No dia do aniversário da morte do amigo, todos viajam até Viseu e um tatua uma andorinha num lugar diferente do corpo. A andorinha representa a ressurreição e o eterno retorno. Ela parte mas regressa sempre. É um gesto de amizade bonito, não é?
Por vezes alguns amigos só se reencontram uma vez por ano, para celebrar o aniversário deste amigo ausente. A tatuagem é o seu ponto de encontro. Este ano já está marcada a sua avó! Já fizemos mais de oito tatuagens e este ano temos marcada a avó do rapaz, já imaginaste? Nós costumamos dizer que a realidade supera em muita a ficção mas as histórias que nós decidimos contar sobre as nossas vidas também superam os nossos dias. Há aquele escritor, o Oscar Wilde não é? Que dizia: “A vida imita a arte, bem mais do que a arte imita a vida”, não era qualquer coisa assim? A vida não é o que está ali mas o que a arte encontrou e resolveu dizer sobre a vida para que encontrássemos precisamente isso que é a arte na vida real. Como com as andorinhas… que regressam todas as primaveras, ou será que são as primaveras que regressam com as andorinhas? As andorinhas trazem com elas a amizade deste grupo, ou é a amizade que existe neste grupo que traz as andorinhas todos os verões para celebrar a eterna primavera?
Ah e depois há as cover ups. Quando se quer cobrir uma tatuagem que já não os faz sentido. As cover ups são só um momento de libertação. É dos trabalhos mais difíceis, é tentar cobrir o passado sem o cristalizar debaixo de um outro presente. Não é eliminar uma tatuagem! É reescrever uma tatuagem! Não é para qualquer um fazer! A tatuagem antiga condicionará sempre a nova, e o cliente não se deve esquecer nunca disso! Ninguém apaga o passado, mas pode tentar compreendê-lo de uma nova maneira que nos permita avançar na vida. Vivemos presos a um corpo. Ou então, podemos pensar: é o nosso corpo que nos dá a mobilidade de percorrermos o mundo e sermos quem somos. Já imaginou o que será ser uma planta? Viver com mobilidade condicionada? Nós podemos percorrer o mundo. E se podemos percorrer o mundo, podemos também percorrer o nosso corpo e dar-lhe outras aparências, outros significados que combinem mais com o que somos por dentro, com os outros, com os nossos projecos e planos de vida.
Queres mais chá? Queres pensar melhor no que queres tatuar e voltas cá na terça-feira? Podemos levar todo o tempo do mundo até escolhermos aquela imagem certa que desejas carregar para todo o lado. Aquela imagem que não se repetirá em mais corpo nenhum e que só conta a tua história.
(Baseado e ficcionado a partir de uma conversa com o atelier de piercings e tatuagens Piranha, com sede em Viseu.)