Nos dias de hoje, há atores que são essencialmente corpo, corpo imerso na farândola dos efeitos especiais e da engenharia digital, e há os atores que continuam, antes de tudo o mais, a ser voz. Basta-lhes um texto, umas tábuas e uns panos, para usarem a essência do teatro, que é a voz em palco. Eunice é antes de tudo, isso mesmo, uma voz.
Ouço a palavra Eunice e não reproduzo um corpo, evoco uma voz. Talvez por isso mesmo, o mais recente espetáculo que partilha com a sua neta, Lídia Muñoz, A Margem do Tempo, me tenha impressionado pela ausência de palavras. A cada um dos seus movimentos, eu esperava uma fala, a cada uma das suas mudanças de passos, eu queria ouvir uma voz que pudesse vir do passado ou do futuro, a sua voz gravada em milhares de suportes – fortuna que Sarah Bernhardt só teve de forma reduzida – mas que contasse, que dissesse, que nos devolvesse o seu inconfundível timbre de prata.
Quando Eunice, no palco, atravessou a porta derradeira, sugerida pelo desenrolar da peça, eu queria ter ouvido um riso, uma gargalhada da Eunice, um som dessa sua harpa que descesse do teto do teatro para me dizer que a sua essência é isso mesmo, uma voz que persiste ativa na memória. Uma voz que não foi, uma voz que continua a ser. Porque amo a sua voz, este é um daqueles casos em que o silêncio dói. No caso de Eunice, não consigo compatibilizar silêncio e sentido implícito. E então lembrei-me de Zerlina, as primeiras palavras desse monólogo pronunciadas por Eunice no palco do Teatro Nacional Dona Maria II, quando os espectadores tinham de atar as mãos para não aplaudir a meio da peça.
Mas uma carreira desenha-se num arco, e o auge do arco de Eunice, para as pessoas da minha geração, tinha começado 1986, ao protagonizar Mãe Coragem e os Seus Filhos, pela mão de João Lourenço e Vera Sam Payo de Lemos. A voz de Eunice na interpretação excecional dessa figura de Brecht, deve ter marcado toda uma geração de espectadores portugueses. Eu não fui exceção. Passado algum tempo, iria ser ao som dessa voz que eu iria escrever um texto com o título de A Maçon.
Foi pela mão da Teresa Olga que teve início esse projeto. Tratava-se de uma série para a Europa. Várias estações de televisão unir-se-iam para criar uma série constituída por 12 episódios sobre vidas de mulheres que tivessem desempenhado papéis relevantes nos seus países. Teresa Olga havia escolhido Adelaide Cabete. Comecei a aprofundar a história de vida dessa feminista da I República e a sua figura entusiasmar-me-ia para sempre. Mas o projeto das televisões reunidas não foi por diante. Um adiamento sine die. Passado algum tempo, o Filipe La Féria teve acesso ao guião e pediu-me que nos encontrássemos na Casa da Comédia. O entusiasmo tinha passado para ele. E foi então que a configuração do texto para teatro começou a desenhar-se.
O título que eu havia dado ao episódio português era sóbrio, A Passageira. Tinha a ver com a transição de Adelaide Cabete no plano cultural, social, no domínio do republicanismo e do feminismo na passagem do século XIX para o século XX, bem como a transição dolorosa da I República para o Estado Novo. E no final da sua vida, a partida para África. Uma passageira. O Filipe achou, porém, que A Maçon seria o título certo. Vivia-se então sob o signo do filme Amadeus, de Milos Forman, e a espetacularidade do ritual maçónico era contagiante. Pareceu-me bem. Também Filipe la Féria me falou em Eunice Muñoz. Era outra coincidência. Como eu já havia pensado na figura da atriz para interpretar o papel quando ainda se pensava na série sobre mulheres, retomei o guião aplicando com gosto o timbre e o volume da sua voz ao texto.
Recuperei da vida histórica de Adelaide Cabete a viagem para Angola em 1929 como episódio central. Imaginei a passagem do navio pelo Equador, e tudo isso sob a voz de Eunice. Ao transformar o texto, escrevia para a Eunice, sem a Eunice saber. Adelaide falava com o sobrinho Arnaldo Brazão e com o espectro do marido, Manuel Fernandes Cabete, mas sobre as teclas da então minha máquina de escrever, era Eunice quem falava. A médica Adelaide era intérprete de uma iniciação à Maçonaria, mas através da voz de Eunice.
No final, era para Eunice que Adelaide Cabete falava quando dizia – “Em Portugal, ainda não se disse uma palavra subversiva”. Proferia-a no ano da viagem para Angola, estava-se em vésperas de uma mudança de regime. Melhor dizendo, pensava no desgosto de Adelaide Cabete no domínio da política, mas quem interpretava o seu pensamento era a voz de Eunice.
Entretanto, Filipe la Féria deixou a Casa da Comédia, fez êxitos sucessivos no Teatro Dona Maria II e a seguir passou a dirigir o Teatro Politeama. Por sua vez, Carlos Avilez passou a dirigir o Teatro Nacional Dona Maria II. Um dia soube que Carlos Avilez tinha encontrado o texto A Maçon, havia-o lido e tinha-o passado à Eunice. Continuava a haver coincidências interessantes como sempre acontece no teatro. Certo dia encontrei a Eunice a caminho de uma praia. Disse-me que interpretar a história de Adelaide Cabete seria uma felicidade para si. Em 1997 iniciaram-se os ensaios.
E foi então que assisti à direção de Carlos Avilez e ao trabalho de Eunice, a sua noção da palavra dita, desgarrando-a dos vícios da palavra narrativa, a sua perceção do movimento no palco, o ritual na colocação da voz, a sua intuição felina para dizer conforme o desenrolar da emoção e dos sentimentos. O seu sentido do íntimo e do épico, de qualquer modo, e sempre, a sua forma gloriosa de representar. Foram seus companheiros nessa aventura João Grosso, João d’Ávila, Fernanda Alves, Paula Mora, muitos mais. Nessa altura fiquei habitada por completo pela voz de Eunice. Assisti praticamente a todas as peças que a seguir interpretou. Agora, não preciso que Eunice fale, apenas quero continuar a ouvi-la para sempre.