O anterior encontro entre o pianista norueguês Leif Ove Andsnes e a Mahler Chamber Orchestra remonta a 2012, e estendeu-se por mais três anos, numa extraordinária “Beethoven Journey”, dedicada à obra concertante do mestre alemão, viagem que se manteve ativa até que a integral dos cinco concertos para piano e orquestra ficasse completa, gravada e editada.
Agora, pianista e orquestra voltam a juntar-se, desta vez para um novo projeto, dedicado a um dos mais notáveis instantes do final do século XVIII, a que chamam o “Mozart Momentum”, expresso na produção do compositor em Viena, em 1785 e 1786, dois anos de grande liberdade e poder criativo, depois de se ter libertado do posto no arcebispado de Salzburgo e da tutela paterna.
São os anos em que Mozart se afirmou como compositor e empresário de si mesmo, em que deu trabalho a músicos, negociou contratos, e em que compôs obras tão visionárias no seu tempo, como os concertos para piano e orquestra com que estabeleceu um novo nível de escrita concertante, peças para piano solo como a Fantasia K.475, que deram novas perspetivas de liberdade, e para conjuntos de câmara como o Quarteto K.478, que desafiaram os paradigmas de interpretação, sem esquecer óperas como “As Bodas de Fígaro” (1786) e “Don Giovanni” (1787), entre muitas outras manifestações absolutamente demonstrativas do seu génio.
Ao nível das obras está a interpretação, assim como todo o trabalho desenvolvido e maturado, nos dois últimos anos, por Andsnes e a Orquestra Mahler. Estamos perante uma abordagem perfeita – não é de mais dizê-lo – da obra de Mozart, numa leitura contextualizante, extremamente rica, que se estenderá até 2022, com obras do ano de 1786, e que, já no próximo sábado, passará pelo Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, numa previsão do segundo álbum dedicado ao projeto.
O primeiro, agora editado, reúne os concertos para piano e orquestra n.º 20, em Ré menor K.466, n.º 21 em Dó maior K.467, e n.º 22 em Mi bemol maior K.482, todos concluídos em 1785, assim como a Fantasia K.475, o 1.º Quarteto com Piano K.478 e o “Funeral Maçónico” K.477, para orquestra.
Seria difícil escolher melhor abertura do projeto do que o Concerto n.º 20 em Ré menor. É uma obra revolucionária, dramática, o primeiro concerto na história da música, garante Andsnes, em que o instrumento solista não repete ‘apenas’ temas/frases já expostos pela orquestra, mas que, pelo contrário, fornece material completamente novo à composição.
Estes concertos são o expoente ‘pré-Beethovaniano’, no entender do pianista. Melodicamente ricos, engenhosamente orquestrados, adquirem uma qualidade ‘sinfónica’ e patenteiam um equilíbrio inédito entre virtuosismo e conceção formal. Vários instrumentos, como o clarinete, são chamados a primeira linha, e a expressão melódica presta-se ao diálogo e à interação, com o desenvolvimento da tensão subjacente, entre o solista e os diferentes naipes da orquestra.
São concertos cada vez mais ricos em caráter, de algum modo premonitórios do Romantismo, com as ‘sementes’ de futuro inscritas em si mesmos, como acontece de modo muito evidente no Concerto em Ré menor, com uma exploração das vozes intermédias, numa sugestão de Schubert, e como se pode encontrar no notável e miraculosamente perturbador andamento lento do Concerto em Dó Maior, com o piano simultaneamente luminoso e sereno, e na riqueza rítmica que subverte o rigor clássico, no Concerto em Mi bemol maior, obra a que o pianista não se coíbe de sublinhar a dimensão sinfónica, bem patente na abertura.
“Mozart não escrevia música fácil”, disse Leif Ove Andsnes, sobre a escolha das obras para o projeto, numa entrevista ao Financial Times, no início do passado mês de maio. Muito menos quando, pela primeira vez, era dono de si mesmo, em plena cidade de Viena.
A interpretação de Andsnes com a Orquestra Mahler, patenteia um domínio total dos contrastes dinâmicos e do fraseado, e sublinha efetivamente a dimensão ‘pré-Beethoveniana’, das obras. No alinhamento deste duplo álbum, em que outras peças contextualizam o “Momento Mozart” de 1785, a Fantasia em Dó menor e o Quarteto para Piano em Sol menor sucedem-se aos dois primeiros concertos e abrem caminho ao Concerto em Mi bemol maior. Se, na Fantasia, Andsnes sublinha o poder dramático do discurso livre e a audácia harmónica, o ambiente sai reforçado no Quinteto.
Nas ‘cadências’ dos concertos (o ‘espaço’ para a sequência ou passagem virtuosa deixada à mercê do intérprete pelo compositor), a opção demonstra igualmente a inscrição da abordagem interpretativa de Andsnes. Aqui estão as ‘cadências’ de Beethoven, no final do 1.º andamento do Concerto em Ré menor, e de Hummel, no seu termo; as perspetivas de dois grandes pianistas do século XX, Géza Anda (1.º andamento) e Dinu Lipatti (final), cruzam-se nas ‘cadências’ do Concerto em Dó maior. Para o Concerto K.482, Andsnes recorre de novo a Géza Anda, para o final, mas, para o termo do 1.º andamento, optou pela composição inédita do seu produtor, John Fraser, também pianista.
Numa entrevista à revista Gramophone, sobre este projeto, no passado mês de maio, Leif Ove Andsnes admitia, para os concertos seguintes, a opção por ‘cadências’ da época, originárias de manuscritos guardados no Musikverein, em Viena, a que teve acesso. Trata-se dos Concertos n.º 23, em Lá maior, K.488, e n.º 24, em Dó menor, K.491, que serão interpretados em Lisboa, no próximo sábado. Toda a atenção é pouca.