“Ele é aquele que não desiste e acaba por conseguir – por vezes logo à primeira, outras à vigésima tentativa – agarrar o boneco. Só que os cromos que lhe interessam raramente são fofinhos, embora amiúde sejam de pelúcia.” Ao correr dos anos e de muitas leituras, Zink foi sentindo a força da “auto-exigência e da teimosa e non-stop busca de precisão”, ao ponto de hoje se apresentar como um escritor da família de JCP.
E não é o único.
Inês Pedrosa, que o entrevistou muitas vezes e publicou a sua Fotobiografia, assume-se da mesma linhagem, pelo “rigor e humor na definição das personagens”, assim como pela capacidade de “agarrar o leitor pelos colarinhos e interessá-lo imediatamente pela narrativa”. João Ricardo Pedro, que ao vencer o Prémio Leya em 2011 apontou Cardoso Pires como uma das suas principais referências, destaca “o ritmo das frases, dos parágrafos, dos diálogos”, “o desassombro da linguagem” e os “infindáveis recursos narrativos e estilísticos”. Para os escritores ouvidos pelo JL não há angústias da influência. Apenas prazer.
“O lado fabular das histórias de JCP é que me atrai muito”, afirma o poeta e contista Frederico Pedreira. “Sobretudo porque esse lado nunca é, para o leitor, ostensivo ou invasivo. Gosto particularmente da forma como ele consegue reabilitar uma certa noção de ruína (moral, social, paisagística) através da exibição contida do grotesco, do ridículo”. A escrita até ao osso, em frases descarnadas, sem “excrescências, adiposidades, advérbios e adjetivos”, é o que mais fascina Ana Margarida de Carvalho.
“É realmente maravilhoso (um adjetivo que ele não utilizaria). E o que é fantástico (outro!) é que não os usa porque não precisa. A sua escrita é extremamente (olha agora, o advérbio) expressiva, sem precisar dos truques e artifícios óbvios. Mais do que escrever, trata-se de reescrever e isso, sim, é difícil e admirável.” Um imortal, garante Rui Vieira, que guarda do mestre todas as primeiras edições e até o conto A Esta Hora, publicado na revista Afinidades, que nunca é referenciado na sua bibliografia, apesar de ser a sua primeira narrativa curta publicada. Um cosmonauta numa viagem arriscada, sugere Tiago Patrício.
O prazer da influência, no entanto, nem sempre é fácil de explicar. E mais difícil revela-se isolar uma única obra das várias que JCP escreveu. A ter de escolher, Inês Pedrosa elege Alexandra Alpha. “Além de ser um retrato impiedoso e divertido de Portugal, tem uma inesquecível história de amizade entre duas mulheres e a melhor descrição do 25 de Abril de 1974 da literatura portuguesa”, afirma. E acrescenta: “Encontro sempre qualquer coisa de novo a cada leitura. É um livro muito poético, com diálogos fabulosos, que dará um excelente filme, caso alguém tenha a coragem de o adaptar”.
João Ricardo Pedro alinha na mesma escolha. “É um livro assombroso e o que mais me marcou. Um obra complexa, sem paralelo na literatura portuguesa, qualquer coisa entre romance falhado e obra-prima. Abro-o com alguma frequência e descubro sempre parágrafos espantosos. É de uma ambição extrema. São dezenas de livros dentro de um só”, assegura.
Durante uns tempos, Alexandra Alpha foi o livro que Tiago Patrício ofereceu aos seus amigos, às vezes sem nenhum pretexto. Ficou tão “entusiasmado” com a leitura que quis partilhá-la. “É daqueles romances que temos inveja de não termos escrito e no meu caso uma inveja suplementar por não ter presenciado a intensidade daqueles três tempos: anos 60, 74/75 e inícios da década de 80”.
A este romance, Patrício acrescenta a peça Corpo Delito, que o entusiasmou “pela forma como as personagens se libertam da própria genealogia e rompem com a representação de grupo para se atualizarem como entidades particulares, com vida própria”. Incapazes de individualizarem um único livro, Manuel Jorge Marmelo e Frederico Pedreira associam Alexandra Alpha a outros dois títulos: O Delfim e A Balada da Praia dos Cães.
“Sendo obras tão distintas, mostram o essencial da sua escrita: um gozo imenso investido no trabalho de contar uma história”, afirma Marmelo. Que fundamenta: “Em O Delfim, por exemplo, entende-se como o modo de contar uma história é, para o autor, o divertimento maior, num comprometimento absoluto e responsável perante ângulos, perspetivas e possibilidades de captura de uma realidade que se transfigura pelo tom em que é descrita.
A apetência para o jogo e para o entretenimento do discurso dentro de regras muito específicas poderá justificar, por outro lado, a estrutura policial em A Balada da Praia dos Cães ou a linguagem enxertada do meio publicitário em Alexandra Alpha.” Fã de muitos livros, Rui Zink prefere referir o título que o fez “entender de vez que o grande romance é um ensaio e que o grande ensaio também se pode ler como um romance”.
Cartilha do Marialva também o ajudou a compreender, ainda adolescente, “que tipo de homem português não queria ser”.
Sublinhando a admiração e a constância da leitura, Rui Vieira não hesita em nomear JCP como uma das referências e influências fundamentais dos seus próprios livros.
“Na sua escrita, os lugares e as personagens complementam-se na construção de uma narrativa que nos faz crer realizadores”, descreve o escritor. Em concreto, Vozes no Escuro, romance de 2010, cruzou-se, na sua génese, com uma passagem de Alexandra Alpha, “naqueles diálogos repletos de imagens entre os barulhos de um bar, na história que Diogo conta, a pedido de Sophia, sobre as Irmãzinhas Despidas, O Caso das Monjas Desnudas e dos Monstros de Deus, nos pormenores e referências, nos requintes deliciosos para o imaginário de um enredo literário”.
Foi um ponto de partida que o levou a investigar mais a fundo o caso das monjas, o que envolveu muitos emails trocados com a revista alemã Der Spiegel, onde foram publicados os artigos citados no livro. Tiago Patrício também coloca a hipótese de, inconscientemente, a vontade de escrever sobre a Revolução dos Cravos, que concretizou em Mil Novecentos e Setenta e Quatro, romance de 2014, se dever a José Cardoso Pires e, em particular, a Alexandra Alpha.
“Lembro-me muitas vezes do diálogo fabuloso entre uma personagem e um poeta (que é identificado como o Ruy Belo) que, para mim, é um dos momentos mais altos da criação literária. E chego a relê-lo muitas vezes para apanhar o tom (como se fosse um diapasão) e afinar as frases, a tensão entre as personagens e as variações em torno do tema principal”.
A par de Carlos de Oliveira e Nuno Bragança, Frederico Pedreira também nomeia JCP como um autor fundamental para a sua prosa.
“Ele consegue retirar do quotidiano um dos seus lados mais interessantes, que é o da mesquinhez, um lastro que vem da repetição dos dias e dos hábitos e que vai endurecendo, até conseguir uma forma tosca, bizarra, definitiva”, afirma. Também lhe agrada “um certo tipo de coragem” que mostra em viver e contar através de um “grace under pressure”, expressão cunhada por Hemingway. “Essa elegância ou graciosidade é o mais difícil de conseguir, parece-me”, acrescenta.
“Com ele aprendi que escrever não é publicar”, garante Rui Zink. “Cardoso Pires tentava que cada livro fosse diferente, e uma dádiva generosa aos sentidos e à inteligência do leitor. Tento também não me repetir demasiado, nem exagerar na fórmula, exceto quando posto no facebook. Há uma ténue fronteira entre estilo pessoal e preguiça afónica”. Num possível paralelo, Zink aproxima o seu livro O Aníbaleitor do gozo da novela breve Dinossauro excelentíssimo”.
Mais difusa é a consciência que Manuel Jorge Marmelo tem da presença do escritor na sua obra. “Não sei se é possível determinar uma influência concreta, mas lembro-me que, por vezes, me apontam a virtude de ser um autor que desfruta do ato de escrever e que transmite esse prazer nos livros que escreve”, afirma.
Em Inês Pedrosa, a influência, que reconhece, transformou-se em privilégio: A Instrução dos Amantes, o seu primeiro romance, teve a sua revisão atenta. Foi oferta do próprio Cardoso Pires e surpresa para a estreante. “Ele sempre se mostrou muito atento aos novos autores e no meu caso foi de uma enorme generosidade”, recorda. “As nossas escritas são muito diferentes mas lembro-me dele sempre que me sinto palavrosa. Foi muito importante para mim ouvi-lo falar sobre o ato da escrita e sobre a importância da escolha das palavras exatas”.
Para Ana Margarida de Carvalho o prazer da influência pode muito bem acabar angústia. “Deve haver muita gente que gostaria de escrever à sua maneira, até porque os seus livros sacodem-se e das suas páginas não cai nada, está lá tudo no sítio certo”, defende. “É uma falsa simplicidade, que não pode ser confundida com uma certa escrita anglo-saxónica e nórdica ou com aquela horrível expressão pages turners para designar os livros que se leem facilmente – como se isto fosse necessariamente bom. Se alguém o ler como um page turner é porque não o leu.
Depois de se passar pelos seus livros não fica leveza nem vacuidade nenhuma.” Por isto, a conclusão, na sua opinião, só pode ser esta: “Se não há mais escritores a escreverem como ele, isso acontece por uma simples razão: não conseguem.” Que lugar na História da Literatura atribuem afinal ao autor de O Delfim? “Devia ser lido nas escolas, nos hospitais, nas prisões, nos transportes públicos, nos jardins, nas tascas e nas casas de chá”, defende Patrício.
Para Marmelo, está entre os escritores que mais preza, ao lado de Camilo, Eça, Rodrigues Miguéis e Saramago. Segundo Zink, tem um lugar central no cânone do romance português da segunda metade do século XX. “É O Escritor”, diz. “Tenho plena certeza (tanta quanta se pode ter nestas coisas de gosto & arte) de que a sua obra fica e irá crescendo.”
Na perspetiva de Pedreira, “lendo a sua obra de uma ponta à outra talvez possamos perceber como muito daquilo que hoje em dia é apresentado como inovador, fresco ou interessante, já existia, numa versão de facto séria e competente, comprometida com o reflexo imponderável da escrita, na sua obra.”
J. R. Pedro acrescenta: “É verdade que são livros muito datados, cheios de referências exclusivas de uma determinada época, objetos que já ninguém usa, expressões que já não se utilizam, mas isso não diminui em nada a qualidade dos seus livros, bem pelo contrário. A intemporalidade tem sido sobrevalorizada”. Vieira não tem dúvidas: como imortal que é o seu lugar é junto àqueles “que nunca deixam de respirar”. A cada leitura. E releitura.