O Padre António Vieira não poderia subscrever o lema autobiográfico de Oscar Wilde: “Eu investi todo o meu génio na minha vida, e apenas o meu talento nas minhas obras”. Em Vieira a vida e a obra confundem-se e intensificam-se. A edição da Obra Completa, numa ousada e ambiciosa iniciativa editorial do Círculo de Leitores, patrocinada pela Santa Casa da Misericórdia, de Lisboa, e coordenada por José Eduardo Franco e Pedro Calafate – levada a cabo com uma disciplina e um método que são outra forma de homenagem Vieira – veio permitir reconstituir a estatura deste homem, cuja medida transbordante o aproxima do estatuto de uma verdadeira força da natureza. Mais do que um indivíduo,ele é uma multidão de heterónimos de carne e osso, tal a variedade dos seus talentos: missionário e diplomata; organizador e conselheiro de Estado; aventureiro e teólogo; réu da Inquisição e profeta. Este homem que habitou na terra e nas ondas do Atlântico, conviveu com reis, soldados, papas e escravos.
Para os portugueses de hoje, Vieira é também o mais profundo conhecedor dos enigmas da nossa identidade coletiva. No momento de profunda angústia nacional que vivemos, dá-nos um exemplo de coragem e resiliência, perante todas as agressões e infortúnios. Renascendo sempre, com vigor, e renovado poder de atração e influência, ajudou a fundar três dos principais conceitos do léxico da modernidade, a saber: a condição humana; a relação entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens; a experiência da Nação.
A condição humana
António Vieira faz parte da galeria das grandes figuras do universo católico, do pensamento e ação, que anteciparam a formulação das grandes cartas dos Direitos do Homem e do Cidadão, entre a Bill of Rights da “Gloriosa Revolução” (Glorious Revolution) de 1688-9 e os primeiros dez aditamentos da Constituição dos EUA, em 15 de dezembro de 1791. Na linha de Bartolomé de Las Casas e Francisco de Vitoria, Vieira defendeu sempre os povos ameríndios em nome de uma visão universalista da condição humana. Em 1694, no seu Voto sobre as Dúvidas dos Moradores de S. Paulo, não hesitava em esclarecer os moradores de S. Paulo acerca da dignidade das comunidades políticas dos ameríndios, mesmo quando subjugadas por uma força militar maior: ” (…) importando igualmente para a soberania e liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o arco como o cetro”. A questão dos direitos dos povos indígenas, a recusa da utilização de argumentos teológicos para justificar a usurpação da propriedade e dos direitos políticos das comunidades subjugadas pela desmesura dos colonizadores, todos esses argumentos serão objeto da sua contestação. O universalismo católico significava que o cuidado pela alma deveria passar também pela preservação da integridade do corpo.
Viera é também um bálsamo para Portugal na questão judaica. Importa não esquecer nunca que, embora os portugueses não tenham de carregar a cruz alemã de Wannsee, o anátema da “solução final da questão judaica” (Endlösung der Judenfrage), o extermínio industrial de um povo inteiro, decidido numa reunião de burocratas num sereno lago perto de Berlim, no dealbar de 1942, a verdade é que seria uma hipocrisia separar completamente os fios de complexa e oblíqua causalidade que podem ser encontrados entre a expulsão dos Judeus da Península Ibérica, a partir dos finais do século XV, e a torrente de eventos que conduziram ao apogeu dantesco e trágico do Holocausto.
Tratou também a questão judaica, mais uma vez a partir de uma perspetiva universalista da condição humana, e, como diplomata, procurando captar o apoio da comunidade sefardita dos Países Baixos em favor da causa da Restauração e do correspondente esforço de guerra. A vertente portuguesa da questão judaica sente-se, ainda hoje, quando se visita a sinagoga de Amesterdão, que os holandeses designam, simplesmente, como a “Sinagoga dos Portugueses”, construída ainda em vida de Vieira (e de Espinosa). Nas suas paredes, onde sobressaem as inscrições em português do século XVII, deixadas pelos nossos compatriotas hebreus, é impossível não sentir uma forte emoção pelo contraste entre a grandeza ética e a tenacidade política de Vieira, e a mesquinhez moral e a miopia política do Estado Novo, que assistiu, com uma ignóbil indiferença, ao extermínio de 90% da comunidade sefardita portuguesa de Amesterdão, calculada em cerca de 4 000 almas, nos campos de extermínio nazis, entre 1943 e 1945.
Deus e a Cidade dos Homens
Uma das facetas mais marcantes de Vieira é o seu vigor missionário. Ele convoca a força da sua fé, as capacidades de organizador e de líder de homens, a sua enorme resistência aos imensos obstáculos de uma Natureza imensa, a um tempo abundante e acolhedora, mas também hostil e perigosa. Sem os portugueses e os espanhóis, o catolicismo jamais teria deixado de ser um tribalismo religioso desse pequeno apêndice da Ásia, a que chamamos Europa.
Talvez a mais impressionante defesa do catolicismo em que se filia Vieira, o catolicismo da Companhia de Jesus e da Contrarreforma, pertença a Friedrich Nietzsche. O filósofo alemão considerou a Reforma de Lutero como um dos momentos mais trágicos da história europeia. Não apenas pela mesma razão de Erasmo, que viu na cisão protestante o desaparecimento de uma escala espiritual europeia para todos os voos do espírito (algo que, hoje, se confirma de novo), mas sobretudo porque Lutero representava, para Nietzsche, a destruição do Renascimento, o momento mais alto e inigualável de todo o segundo milénio. Um recuo cultural, um regresso às sombras mais obscuras da Idade Média, levavam Nietzsche, filho de um pastor luterano, a considerar a Contrarreforma como “um Cristianismo de legítima defesa” (Christenthum der Notwehr)…
Curiosamente, no que concerne às relações entre política e religião, entre Estado e sociedade, o luteranismo revelar-se-ia extraordinariamente antimoderno. Carl Schmitt acusará Lutero de uma espécie de “territorialismo”, um apego à “terra”, por oposição ao catolicismo e ao calvinismo, que se casaram com potências marítimas, expansivas e universalistas. Na verdade, a tomada de partido de Lutero pelos senhores feudais, nas famosas guerras germânicas dos camponeses, em 1525, projetou-se na teoria teológica dos “Dois Reinos”, uma abruta divisão entre a igreja e a comunidade política, entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.
Nada poderia ser mais distante da posição de Vieira, para quem o Reino de Deus se projeta em todos os actos da vida do cristão. Com efeito, o Reino de Deus, para ele, não é deste mundo, mas pode (e deve) ser neste mundo. Se não há abruta separação entre os dois Reinos ainda menos poderá existir confusão sobre a prioridade entre os dois valores matriciais sobre os quais se deverá erguer a bem ordenada Cidade dos Homens: “Abraçaram-se a justiça e a paz, e foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço. Porque não é a justiça que depende da paz (como alguns tomam por escusa) senão a paz da justiça” (Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados).
A refundação de Portugal
Se há um gesto singular que explica a persistência de Portugal como país independente, esse terá sido, sem dúvida, a decisão de Nuno Álvares Pereira de enfrentar as forças castelhanas em Aljubarrota. No Conselho de Guerra que precedeu a batalha, o próprio D. João I, sensível à desproporção de 1 para 5 a favor de Castela, aconselhou uma manobra indireta: um ataque a Sevilha. Foi a determinação do jovem Condestável, que ameaçou enfrentar o inimigo apenas com os dois mil combatentes sob o seu comando direto, que conduziu à “decisão pelas armas” que salvou o país. Sem Aljubarrota não teria sido possível a criação da dinâmica binária que explicou a existência de Portugal durante os seus três impérios (asiático, americano e africano), entre 1415 e 1974: a permanente sinergia entre um império ultramarino para proteger o rincão europeu, e uma política europeia para garantir a margem de manobra imperial. A atual crise existencial que ameaça Portugal, numa Europa contaminada pelos seus ressuscitados fantasmas hegemónicos, revela que a III República se esqueceu das lições estratégicas iniciadas pelo Condestável e aprofundadas no pensamento e na acção de António Vieira.
Ao tomar o partido de D. João IV, passando num ápice de desconhecido a conselheiro e diplomata real para situações de urgência, Vieira foi um dos arquitetos da improvável Restauração de Portugal. Com apenas milhão e meio de habitantes, o país teve não só de enfrentar uma longa guerra com a maior potência da época, a Espanha dos Habsburgos, mas também de travar uma guerra mundial com os rivais holandeses. Da derrota sofrida no Ceilão, às esforçadas vitórias em Goa, Angola e Brasil, Portugal viu as suas armas serem acrescentadas pelo talento estratégico de Vieira. Quis trazer os sefarditas portugueses (bem como os seus capitais) do coração dos Países Baixos para o apoio à pátria intolerante que os havia expulsado. Lutou com denodo pela integração dos índios num Brasil nascente e administrativamente unificado, que também lhes pertencia por Direito Natural. Percebeu, muito antes de Clausewitz, que também as armas fazem política, e que esta também desembainha a espada na boa diplomacia.
Mas o segredo de Vieira revela-se nestas imortais palavras, saudosamente escritas em Roma: “Para nascer, pouca terra. Para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal. Para morrer, o mundo.” A essência nacional reside nesta capacidade de sair de si próprio, de se transcender num império que, na sua visão, deveria ser baseado num cristianismo universalista, casa de voluntária adesão para todos os povos. Para um país, hoje ajoelhado perante um novo impulso suicidário europeu, a lição de Vieira é a de que Portugal não sobreviverá se a sobrevivência constituir o seu exclusivo desígnio. É útil recordar o verdadeiro enquadramento estratégico com que Vieira apresentou a Dom João IV a sua “Proposta” de Julho de 1643. Portugal não podia confiar o seu futuro a forças externas contingentes, representadas na altura pelo desvio do esforço de guerra da Espanha, obrigada pela França e seus aliados a deixar Portugal temporariamente aliviado da sua pressão militar. Portugal tinha de confiar nas suas forças endógenas, que eram avaliadas assim por Vieira: “O poder próprio em que se funda a conservação de Portugal, ou são as forças interiores do reino, ou as exteriores das conquistas”.
Tal como em 1643, hoje também podemos dizer que a “conservação” da República é mais “duvidosa” do que segura. Desprovidos agora, pela combinação das circunstâncias com a vontade própria, das conquistas, Portugal deve apostar nas suas “forças interiores”, sem desistir de efetuar conquistas de um novo tipo. O novo império a que o Portugal de hoje deveria ambicionar seria o de uma Europa de cidadãos, iguais nas leis, mas diversos na pluralidade cultural que constitui o tesouro do Velho Continente.
O federalismo, em todos os seus modos (constitucional, político, económico, fiscal e financeiro) seria, provavelmente, o profetismo de Vieira para os Europeus do século XXI. Se este falhar, não será a miséria resignada que os fanáticos da austeridade perpétua prometem para duas gerações a prevalecer, mas sim a legítima defesa. Esperemos que tal nunca venha a ser necessário, mas entre definhar ou lutar não existe verdadeira escolha. Mesmo se tivermos de embarcar na arriscada aventura da Jangada de Pedra de José Saramago, teremos sempre connosco, como bússola e inspiração, a Palavra mobilizadora do Imperador da Língua Portuguesa, que esta Obra Completa permite, finalmente, reconstituir na sua integral grandeza.