Corria quente o Verão de 1973, em Florença. Subitamente, talvez com a força da canícula, começou a escrever uma história. “Um mero acaso”, diz ele. Por acaso, um amigo editor de Milão, viu o original em cima da mesa e levou-o. Dois anos depois, saía Piazza d’Italia, o seu primeiro livro. Antonio Tabucchi tinha então 32 anos. E, ao abrigo de todas as variações térmicas, continuou a escrever. Certo é, porém, que o Verão continuou a atravessar os seus livros. Requiem decorre num sufocante dia de Julho, Afirma Pereira, em Agosto de 38. “Gosto muito do calor” – explica. “Sou aparentemente nórdico de aspecto, mas gosto do Sul, do sol. Da mesma forma que faço livros pequeninos, secos, enxutos, mas gosto de uma certa escrita farta”. E o caso de Rabelais: “A fartura nele não é só de comida, mas também de léxico. Portanto, faz parte da grande família do expressionismo verbal” – acrescenta. “Também gosto da fartura, da gordura, mas tenho uma natureza magra”.
Não é, contudo, um admirador da “nouvel-Não é, le cuisine”. Em contrapartida, comeria todos os dias massas italianas ou a portuguesíssima açorda. “Na cozinha portuguesa, gosto daqueles pratos magníficos, de carácter popular, feitos de restos, porque implicam uma grande criatividade” – justifica. “Um cozinheiro francês tem as ostras, o bechamel, não é dificil fazer um grande prato. Mas com pão e coentros, fazer uma boa açorda…”. Tabucchi tem, de resto, um aguçado apetite gastronómico e não se fica pela curiosidade. Mete a mão na cozinha aos domingos. É dos que pensam que o conhecimento da cultura passa pelo paladar. Por isso, sentiu-se muito “honrado”, quando um crítico americano o incluiu na categoria dos escritores xenófilos, que é como quem diz, aqueles que nos seus livros falam da comida de uma região, das suas raízes.
Será porventura para averiguar dos preceitos ancestrais da açorda que vai fazer uma incursão no Alentejo, antes de escrever um novo romance, por enquanto ainda em notas soltas. É a história de um velho andarilho italiano, que revê a sua vida de andanças, que passou também por Portugal, nomeadamente por Évora, uma das cidades preferidas de Tabucchi.
UM POEMA ÚNICO
Longe de ser um escritor precoce, Tabucchi teve, no entanto, os seus arroubos literários de juventude. Nos anos universitários, escreveu uma série de pequenos contos, que publicou, em 1968, na revista Ii Cafe, de que era director Italo Calvino. A linha editorial da publicação oscilava entre o burlesco, o prazer do texto e a pesquisa formal. Os escritos de Tabucchi, a que chama simplesmente “brincadeiras”, não destoavam. “Fiz um dicionário de máquinas prováveis. Ou seja, de máquinas muito complicadas, que não serviam para nada. Por exemplo, o arianógrafo, uma máquina nazi para descobrir quanto de ariano uma pessoa tinha” – recorda. Esses contos, já indiciadores da sua fina ironia e de uma prosa descarnada, voltaram a ser publicados, no ano passado, pela revista Micromega.
De resto, não se lhe conhecem outras experiências literárias, anteriores a Piazza d’Italia. “Andei ocupado” – graceja – “a ter filhos”. (E foram dois: Miguel e Teresa). Também nunca teve veleidades poéticas. Escreveu um único poema, a pedido de Alexandre O’Neil que, em 1975, dirigia a efémera revista Critério. “E um poema em forma narrativa” – explica. “Eu disse ao Alexandre que não conhecia a medida do verso. Ele garantiu-me que isso se encontrava sempre. Perguntei-lhe como, e ele respondeu que quando a campainha da máquina fizesse ‘tlim’, mudava de linha…”. O poema, o primeiro texto que escreveu directamente em português, chamava-se “A bicicleta de D. Quixote” e foi publicado na tal revista. “Como sempre acontecia entre mim e o Alexandre” – assevera Tabucchi – “tudo acabou com uma grande gargalhada e um bom jantar. Talvez sublinhado por um copo de champanhe ou de vinho branco, que Tabucchi tanto aprecia. E necessariamente acompanhado de muitos cigarros. Mas nem seguindo o método de O’Neil, se entendeu com a métrica. Quedou- -se por ali a sua veia poética: “O meu sentido do ridículo manda que não ouse tão alta musa” – garante, rindo. E, no entanto, são poetas alguns dos seus eleitos: Rilke, Rimbaud, Pessoa.
CORAÇÃO NÓMADA
Italiano de berço e português por afeição, António Tabucchi é um homem de duas pátrias. Vive em Florença, dá aulas de História da Literatura Portuguesa, na Universidade de Siena, e passa temporadas em Lisboa. Tem um coração nómada que lhe pede constantemente viagens. “Sou, realmente, pouco sedentário. E também simpatizo com pessoas que são nómadas ” – diz, com um sorriso. E acrescenta: “Se calhar, a grande simpatia que senti por Portugal, é pelo facto dos portugueses serem bastante andarilhos, tendo aberto a Europa ao mundo e chamado o mundo à Europa”. Dificilmente se podem contabilizar as viagens de Tabucchi. E nenhuma delas o deixou indiferente. “A viagem é sempre o desconhecido” – sublinha. “Mesmo que não aconteça nada verificável, no plano do real, sempre favorece uma sucessão de ideias, uma espécie de fantasia. Houve poucas viagens cm que, ao voltar para casa, para o meu país ou para Portugal, que também é o meu país, não me sentisse modificado. Aconteceu sempre qualquer coisa”. Quase sempre encontros com pessoas. Que o escritor prefere -as aos encantos da paisagem. “Até pode ser uma conversa banal, num sítio longínquo, mas conhecer uma vida muda a nossa perspectiva sobre as coisas” -acrescenta.
Foi por um filme que fez a primeira viagem. Tinha acabado o liceu e estava encaminhado para uma existência pacata, talvez para um curso de Medicina. Mas, entretanto, viu La Dolce Vita, de Fellini: “Foi chocante e sugeriu-me a ideia de sair de Itália, durante um ano” – comenta. “É um filme extremamente duro, muito critico e, num certo sentido, quase profético. Foi odiado à direita e à esquerda, porque não poupa ninguém, sendo uma análise impiedosa da realidade italiana”. Para Tabucchi, foi o murro no estômago. “A imagem que a escola me tinha fornecido não correspondia ao que era o meu país. Por isso, quis sair e fui para Paris”. O pai, agricultor e criador de cavalos, ajudou-o na viagem e suportou as primeiras despesas. Tabucchi inscreveu-se na Sorbonne, como “auditeur libre” do curso -de Filosofia. E arranjou um “trabalhinho” a lavar pratos, na cantina universitária. Foi a descoberta de Paris e, nas suas deambulações, deparou, num alfarrabista, com o poema “A Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Um encontro para a vida inteira.
O achado suscitou em Tabucchi a vontade de conhecer a língua e o país do poeta. Em 1965, viu pela primeira vez o céu de Lisboa. E sentiu-se em casa: “Mas era uma casa com muitas janelas fechadas. Os artistas, os escritores e intelectuais que comecei a conhecer viviam por trás da janela” – comenta. “Por um lado, havia uma atmosfera em que nos sentíamos bem, por outro um certo mau estar, porque era um país muito fechado”.
Trazia no bolso duas cartas de recomendação, uma dirigida a Alexandre O’Neil, a outra a Gino Saviotti, director do Instituto Italiano de Cultura. E não se poderá queixar da hospitalidade. Com O’Neil, fez amizade e em sua casa conheceu outros grandes amigos, como José Cardoso Pires. O seu cicerone de Lisbõa foi a neta de Saviotti, Maria José de Lancastre, com quem casaria tempos depois. Um casamento que já fez 30 anos.
Dessa primeira passagem por Lisboa, Tabucchi lembra as aulas de Jacinto Prado Coelho e de Lindley Cintra – “Eram de um grande magistério “. Ficou por cá dois ou três meses, enquanto durou a bolsa de estudo, mas desde logo soube que iria voltar.
AS EMOÇÕES DO CINEMA
Em Paris, Tabucchi descobriu também a “nouvelle vague”, sobretudo Truffaut, e cinematografias de todo o mundo. Foram muitas as tardes que passou, na Cinemateca, nos pequenos cinemas de Saint-Germain. Sempre foi intensa a sua relação com o cinema, denunciada, aliás, pelas múltiplas referências presentes nos seus livros. “As minhas primeiras emoções são ligadas ao cinema. A Literatura veio mais tarde” – salienta. “Lembro-me que, no pós guerra, os filmes passavam, na minha peque— na aldeia, e havia grandes emoções na plateia, na qual eu participava, embora não percebesse muito bem o que se estava a passar. As pessoas riam, choravam, falavam com os actores. Foram as minhas primeiras emoções “.
Nessa aldeia da Toscana, Vecchiano, perto de Pisa, nasceu e cresceu Tabucchi, numa família patriarcal. O avô foi uma das figuras importantes da sua infância. Tinha sido combatente da I Guerra Mundial, onde foi ferido. E contava histórias extraordinárias desse “massacre”. Era um socialista libertário, com tendências anarquistas e teve problemas durante o fascismo. “Era um homem com muito humor e dizia-me sempre: `Sabes, Antoninho, eu nunca gostei dos fascistas, mas o problema é que eles também não gostavam de mim'” – recorda o escritor.
Vem dessa época o fascínio de Tabucchi pelas histórias. Os amigos do seu avô passavam os serões em sua casa, à lareira, e contavam muitas peripécias pessoais. E também declamavam, de cor, as grandes obras da Literatura Italiana. “Havia uma grande tradição cultural que passava pela oralidade. Isso para mim constituía um motivo de enorme curiosidade” – recorda. Pela vida fora, continuou a gostar de ouvir as histórias dos outros.
O encontro decisivo com os livros deu -se por volta dos 14 anos. Tabucchi teve então um acidente de automóvel e partiu a rótula, que o obrigou a muitos meses de imobilidade. 0 tio, o “intelectual da família”, amante de Literatura, sobretudo da inglesa, e autor de peças teatrais, abriu-lhe, nessa altura, as portas da sua biblioteca. Forneceu-lhe livros de Stevenson, Conrad, Kipling, Henry James. Despertou-lhe assim o interesse pela literatura de viagens, que havia de rasar mais tarde, também nos seus livros. Por exemplo, em Nocturno Indiano ou em A Mulher de Porto Pim.
PESSOA ENTRANHADO
Quando regressou a Itália, depois daquela espécie de ano sabático, Tabucchi decidiu-se pela Literatura. Não pensava ser escritor, mas tinha-se esboroado o sonho de criança de ser, por exemplo, astrónomo. Um sonho acalentado, nas noites a céu aberto em que o avô, que sabia de estrelas, lhe desvendava o–firmamento. Fez o curso de Filologia, na Universidade de Letras e Filosofia de Pisa, abordando na sua tese de licenciatura os poetas surrealistas portugueses. Parte dessa tese foi publicada em 1970, no seu primeiro ensaio, La Parola Interdetta. E fez do ensino a sua profissão. “Porque me proporciona um contacto quotidiano com os jovens. E, todos os anos, os meus alunos têm 20 anos. Isso dá-me muita coisa” – justifica. Começou a leccionar na Universidade de Bolonha, passou pela de Génova, e é actualmente professor catedrático da Universidade de Siena.
No final dos anos 80, Tabucchi fez um parêntesis na sua vida universitária para vir dirigir o Instituto Italiano de Cultura, em Lisboa. “Tinha vontade de estar aqui com mais calma, com- os amigos e de fazer com que o Instituto fosse também um sítio, onde os artistas portugueses se pudessem manifestar” – adianta. Ficou três anos.
Nessa altura, como confessa, Portugal já estava completamente “entranhado” nele. Pessoa também. Tabucchi traduziu a obra do poeta para italiano e tornou-se um dos mais empenhados divulgadores pessoanos. “O Pessoa, sobretudo nos últimos anos, foi difundido, no mundo inteiro, através de uma epiderme que, muitas vezes se tornou um cliché” – comenta. “Mas o que é grande em Pessoa é a qualidade da sua poesia. Uma qualidade que é um universo, como em Kavafis ou em Rimbaud. Porque ele tocou todos os grandes problemas da grande Literatura do século XX”.
Sobre Pessoa, Tabucchi escreveu vários ensaios, Un Baule Pieno di Gente e La No St a l g i e, L’Automobile et L’Infini, e outros reunidos, nomeadamente, em Pessoana Mínima. Mas o poeta assombrou também a sua ficção, perpassando por Requiem ou Os Ultimos Três Dias de Fernando Pessoa, por exemplo.
Mas Tabucchi conta outras, histórias portuguesas. Em 1994 publica Afirma Pereira, distinguido internacionalmente com vários prémios e, em 1997, deu à estampa A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro. Quatro dos seus romances foram já passados ao cinema. Nocturno Indiano, por Alain Comeau, O Fio do Horizonte, por Fernando Lopes, Afirma Pereira, por Roberto Faenza, e Requiem, por Alain Tanner. Algumas das suas obras subiram também à cena e Tabucchi, de resto, experimentou a escrita de teatro, com os textos Chamam ao Telefone o Senhor Pirandello e O Tempo aperta. O escritor acha, no entanto, que lhe falta mão para a carpintaria teatral. Mas em matéria de ensaio, escreveu uma obra sobre o teatro português: Ii Teatro Portoghese del Dopoguerra – Trent’anni di Censura. Mas é tão extensa quanto diversa a sua ensaística e também traduziu para italiano Carlos Drummond de Andrade.
Antonio Tabucchi está traduzido em trinta idiomas e conquistou leitores fiéis por toda a parte. Sempre recusou, porém, ser um escritor profissional. “Gosto de escrever, quando me apetece. Isso é uma grande liberdade” – afirma. “Além disso, a literatura é uma prática muito solitária. Se uma pessoa se fecha em casa apenas a escrever, parece -me que perde mundo”. E Tabucchi é um andarilho.