Ela é Sua Eminência, o Papa. Sobre ela falam o contínuo e o fotógrafo. Ela vai ser retratada numa imagem que chegará a milhões de fiéis. No meio da discussão passa um cardeal vindo da pesca. Chega o Papa. Mas o retrato nunca terá o clique final. Ser e parecer, real e ilusão, o corpo e o espírito, o eu e a massificação. Está tudo em jogo na peça do dramaturgo francês, Jean Genet, que a Cornucópia leva à cena no Teatro do Bairro Alto. Com tradução, encenação e interpretação de Luís Miguel Cintra, conta ainda com Dinis Gomes, Luís Lima Barreto e Ricardo Aibéo. Para ver até 24 de junho.
JL: Desde 1995, com Splendid’s, que não regressavam a Genet. Porquê esta peça e porquê agora?
Luís Miguel Cintra: Ela surge de um compasso de espera a que as limitações orçamentais atuais nos obrigaram. Eu queria fazer A Varanda, uma das peças mais conhecidas de Genet, que levanta mais ou menos os mesmos temas, mas de um ponto de vista mais político e explícito – será a peça que vai abrir a próxima temporada. No entanto, este texto liga-se muito com a problemática do que temos feito. No sentido de criar uma responsabilização e uma noção do que é o ofício dos construtores e dos caçadores de imagens. Um caçador utiliza imagens já existentes e apenas as quer fixar, um construtor implica um trabalho de manufatura. Penso que é muito interessante assinalar essa diferença no nosso trabalho de atores e na arte em geral. No momento em que vivemos há, em relação às artes do espetáculo, uma degradação da natureza artística do trabalho, pelas próprias leis de integração numa lógica de mercado. Essa lógica impede o movimento interior de inquietação que tem que existir na obra de arte. O que se torna importante é vender, se não, não se pode existir, e o que vende é normalmente aquilo que já se conhece, que já é reconhecido, que já tem uma imagem de marca. Isso é matar as coisas e Ela mostra-o.
E quem é Ela, que afirma não ser nada?
Este Papa tem que ser uma imagem de uma entidade que não tem corpo, não tem matéria. É espiritual. Torna-se uma aberração ainda mais evidente porque, de facto, não se pode ser imagem de algo que não tem existência real. Só se pode ser símbolo. Genet escolhe um símbolo mínimo: um torrão de açúcar. Dissolve-se num instante, deixa de existir e quanto mais depressa o fizer, melhor, porque não pode ter forma. Há um outro Papa, o homem, que serve de sustentáculo a uma imagem que cada vez se tem que ‘irrealizar’ mais. Este jogo é engraçado e creio que é por isso que Genet escolhe a figura de um Papa, em vez de um grande magnata ou um presidente da república. Mesmo que esses tenham uma imagem pública poderosa não são imagens espirituais e Ela tem que ser. Do ponto de vista católico também é problemático.
Em que medida?
Até que ponto a igreja está certa ao criar uma imagem que pretende ser espiritual e que na prática não é, mas antes um aparato feito de espetáculo e de estímulos à arte da ilusão, à mentira? É como se a igreja tivesse que dar uma imagem falsa e tornar as pessoas irracionais para poderem acreditar. Não há razão nenhuma para que assim seja. As pessoas devem acreditar não abdicando da sua cabeça racional.
Genet sugere imagens muito provocatórias – como o Papa a entrar em cena em patins, a ser levado por uma corda… – que optou por não seguir. Porquê?
Penso que as imagens que ele propõe são coisas com que se diverte, mas não é preciso representá-lo assim. De certa maneira, se fosse representado tal e qual com as suas indicações, chocaria menos e estabelecer-se-ia menos contacto com a própria realidade do que dando ao Papa uma cópia exata do seu fato branco e deixando às palavras a capacidade de criação dessas imagens. Serão tantas quantas os espetadores que as ouvem. Queremos estabelecer o caminho para que o espetador se sinta livre, num estímulo à sua própria responsabilidade.