Assistimos a um fenómeno curioso: dois importantes fazedores de teatro Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo em dois espaços diferentes realizam espectáculos influenciados pela dramaturgia grega. Quer A Cidade segundo Aristófanes, que esteve até há pouco em cena no Teatro São Luiz (vide texto no penúltimo J.L.), quer agora Rei Édipo (ca. 427 a.C.) segundo Sófocles (496 a.C. – 406 a.C.), no Teatro Nacional D. Maria II, desejam ser fiéis ao espírito do texto, à sua autenticidade, e ambos, até certo ponto, estão atentos à potencial actualidade dos próprios textos, isto é, à contemporaneidade da problemática da condição humana numa Cidade e numa República no sentido res publica.
Porém, não é nesse sentido que se pretende orientar a nota crítica. Voltemos pois, com todo o risco, ao espectáculo no Teatro D. Maria II. Espectáculo antes de tudo difícil para todos os que com ele se comprometem: difícil de concretizar, com obstáculo a cada linha do texto. Nesse sentido vai a actual versão de Jorge Silva Melo, a abolir o verso clássico, de certo modo a eloquência, os recursos expressivos, o pathos, a argumentação “excessiva”; as partes da estrutura da tragédia formalmente sintetizadas unitariamente, o discurso a tornar-se directivo, a palavra a impelir a acção. Uma escrita que visa uma actualização do texto para uma linguagem menos “elevada”, hodierna, coloquial, a substituir o metro jâmbico dos diálogos, para uma apreensão mais rápida do enredo. Uma reescrita sintética, uma “conversão” poética que, ao acelerar o ritmo da elocução e das acções, precipita ainda mais os acontecimentos na já por si acelerada evolução na economia própria da tragédia. Esta diminuição na extensão das falas reflecte-se naturalmente na representação das personagens mais trágicas e sujeitas à paixão como Édipo e Jocasta, que assim contam com menos apoio para expressar uma mudança tão radical e devastadora na sua situação extrema. São personagens voluntariosas que criam o próprio pathos com o qual se vão identificando e edificando à medida que se enunciam, estando por isso dependentes dos enunciados metafóricos e simbólicos que lhes estão subjacentes. Neste sentido, tanto Diogo Infante (Édipo) como Lia Gama (Jocasta) abrem a suspeita muito cedo do conhecimento dos factos ruinosos de que serão alvo. Como se desde o início as personagens/intérpretes já conhecessem o desenrolar dos acontecimentos. Ora é justamente no conhecimento progressivo que reside a chave da tragédia, é o reconhecimento que engendra a mudança do destino, logo não poderia ser convocado para todas as fases da representação. O terceiro actor, Virgílio Castelo, num muito mais cerebral e prático Creonte, sendo uma personagem menos trágica, que não quer ir além do plano humano nem medir-se com os deuses, consegue um desempenho mais conforme ao seu carácter. E quando digo mais conforme quero dizer isso mesmo. A tragédia grega antiga e Rei Édipo em especial fazem parte do património e cultura ocidentais: mesmo que não se conheça, conhece-se. Este conhecimento desempenha uma função importante na recepção de cada nova aproximação ao texto matricial.
Sendo Rei Édipo uma tragédia de expiação individual concentrada no protagonista, mas também geracional, pela herança de faltas e erros necessariamente a punir, constitui-se por extensão no plano social à expiação da cidade e do seu povo. É a cidade que isola Édipo, primeiro na solidão do poder, por fim sufocado na auto-punição. Poderosa reflexão sobre o poder e correspondente cegueira que lança sobre os políticos. Ontem como hoje. De muito amado, aclamado e venerado rei, salvador da pátria, Édipo passa a inimigo público, odiado, excluído e difamado parricida incestuoso. Vai nesse sentido a permanente presença em cena de um importante grupo de actores – o coro – que sobre si acarreta a perseguição das Erínias. A claustrofobia que constroem, e bem, à volta de Édipo, torna-se, por vezes, obsessiva.
Não sendo uma peça que irradia luz, pois o desconhecimento é o motor primordial, de modo geral a iluminação é inteligentemente feita de sombras ao longo de todo o espectáculo. De facto, a iluminação, a luz só vem com Édipo em Colono (406 a.C.) quando Édipo alcança a paz e morre. E depois com Freud.
(A introdução da música merecia uma análise específica pela sua qualidade intrínseca, mas sobretudo pela adição e cruzamento com um texto já em si altamente musical.)
Rei Édipo, a partir de Sófocles, versão e encenação Jorge Silva Melo, acompanhamento dramatúrgico José Pedro Serra, cenografia e figurinos Rita Lopes Alves, luz Pedro Domingos, música original Pedro Carneiro, espacialização e assistência musical André Sier, com Diogo Infante, Lia Gama, Virgílio Castelo, António Simão, Cândido Ferreira, José Neves, António Banha, Pedro Gil, Américo Silva, André Patrício, Bernardo Almeida, Daniel Pinto, David Pereira Bastos, Elmano Sancho, Estêvão Antunes, Hugo Bettencourt, Hugo Samora, João Meireles, João Miguel Rodrigues, João Delgado, Joaquim Pedro, John Romão, Manuel Sá Pessoa, Miguel Telmo, Miguel Aguiar, Pedro Lamas, Pedro Luzindro, Pedro Cardoso, Pedro Mendes, Ricardo Batista, Ruben Tiago, Tiago Matias, Tiago Mateus, as crianças Beatriz Lourenço e Neuza Campos | Beatriz Monteiro e Margarida Correia | Inês Antunes e Inês Constantino e os músicos Ângela Carneiro, David Silva, Marco Fernandes. Co-produção TNDMII e Artistas Unidos em colaboração com a Orquestra de Câmara Portuguesa.Teatro Nacional D. Maria II (Sala Garrett), de quarta a sábado às 21h30 e domingo às 16h00.Até 28 de Março.