Maria Leonor Tavares Saúde traz uma nova esperança aos doentes com lesão na medula espinhal, com o projeto “Células senescentes e o seu fenótipo secretor: novos alvos na reparação da medula espinhal” que, este ano, venceu um dos Prémios Santa Casa Neurociências, dos quais a VISÃO é parceira de média.
A cientista começa por explicar à VISÃO que este projeto, desenvolvido no Instituto de Medicina Molecular – João Lobo Antunes, pode contribuir “para o desenvolvimento de uma nova terapia para a regeneração da medula espinhal em mamíferos”. Ao longo da entrevista, a investigadora fala da importância da caracterização do programa de senescência celular na medula espinhal lesionada e nos órgãos periféricos, como a bexiga, o fígado e o baço, que são afetados nesta doença. O que poderá, no futuro, ser uma porta para novas terapias direcionadas para os diferentes órgãos no contexto deste tipo de lesões. A cientista também aborda a recente identificação das células senescentes como potenciais moduladores do resultado regenerativo após uma lesão da medula espinhal. E descreve como a equipa comprovou que “a eliminação das células senescentes conduz a uma considerável recuperação motora e sensitiva em murganhos lesionados”. Termina depois com a pretensão de compreender quais são os fatores que estas células produzem e como é que estes se alteram, ao longo do tempo, após uma lesão.
Acredita que este projeto vai contribuir para o desenvolvimento de uma nova terapia para regeneração da medula espinhal?
O meu desejo é poder contribuir para o avanço do conhecimento na área da regeneração. Eu e a minha equipa temos esperança que os nossos avanços se possam, um dia, materializar numa nova terapia. Estamos a trabalhar nesse sentido, no Instituto de Medicina Molecular. Nos últimos anos, a minha equipa tem-se focado no estudo do microambiente celular da medula espinhal em dois modelos animais: o peixe-zebra, que consegue regenerar a medula espinhal depois de uma lesão, e o murganho que é um mamífero com pouquíssima capacidade regenerativa, tal como os humanos.
Em que consiste este projeto “Células senescentes e o seu fenótipo secretor: novos alvos na reparação da medula espinhal”?
Recentemente, identificámos as células senescentes como potenciais moduladores do resultado regenerativo após uma lesão da medula espinhal. Este tipo particular de células já era conhecido como resposta a situações de stress celular e sabe-se que tem capacidade de influenciar o microambiente pela produção e libertação de variadíssimos fatores proteicos. Surpreendentemente, enquanto que no peixe-zebra as células senescentes são temporariamente induzidas na periferia da lesão, já no murganho estas células acumulam-se e persistem ao longo do tempo. Perante isto, lançámos uma questão: Será que esta acumulação de células senescentes poderá ser um dos fatores que contribui para o insucesso regenerativo que existe nos mamíferos?
Eu e a minha equipa temos esperança que os nossos avanços se possam, um dia, materializar numa nova terapia
Maria Leonor Tavares Saúde, coordenadora da equipa galardoada com o Prémio Melo e Castro 2020
Encontraram a resposta a essa questão que se torna pertinente na vossa investigação?
Sim. Para responder a esta questão, recorremos ao uso de fármacos senolíticos (ou seja, que induzem a morte das células senescentes) e demonstrámos que a eliminação das células senescentes conduz a uma considerável recuperação motora e sensitiva em murganhos lesionados. Estes resultados permitiram a identificação de um tipo celular que parece desempenhar um papel negativo no contexto das lesões vertebro-medulares em mamíferos. Agora temos de compreender quais são os fatores que estas células produzem e como é que estes se alteram, ao longo do tempo, após uma lesão, uma vez que esse conhecimento poderá criar novas oportunidades para encontrar alvos terapêuticos.
Qual é, então, o objetivo deste projeto?
No seguimento desta nossa descoberta, queremos caracterizar o programa de senescência celular na medula espinhal lesionada e nos órgãos periféricos que são afetados nesta complexa patologia, nomeadamente a bexiga, o fígado e o baço. Recorrendo a modelos genéticos complementares, queremos ainda investigar quais os benefícios de eliminar as células senescentes para a reparação da medula espinhal e para a função da bexiga, do fígado e do baço, mas sempre em contexto de uma lesão vertebro-medular.
Quais são as etapas desta investigação?
Este projecto tem quatro etapas: primeiro vamos usar um modelo genético que nos vai possibilitar eliminar as células senescentes, de um modo mais controlado, e avaliar a recuperação motora e sensitiva após a lesão da medula espinhal. Numa segunda fase, queremos compreender o que aconteceu em termos celulares nas medulas espinhais nas quais as células senescentes foram eliminadas. Já numa terceira etapa, pretendemos alargar este estudo à bexiga, ao fígado e ao baço. Por último, queremos identificar os fatores proteicos que todas estas diferentes células senescentes secretam para o microambiente. Por outras palavras, queremos conhecer o programa de senescência celular em todos estes órgãos, o que nos possibilitará no futuro encontrar terapias dirigidas para os diferentes órgãos no contexto deste tipo de lesões.
O que é que este projeto pode trazer de novo para melhorar a vida destes doentes?
As lesões vertebro-medulares são condições clínicas muito complexas. Muito provavelmente não é uma única solução terapêutica que vai contribuir para melhorar esta condição. Mas sim, uma combinação de intervenções terapêuticas, sendo um dos elementos importantes o controlo das células senescentes que queremos explorar neste projeto. A verdade é que, neste momento, é difícil prever de onde surgirão as melhores soluções. Por isso, é importante investir, tal como tem feito a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em várias áreas de investigação, como as terapias celulares e farmacológicas que é o nosso caso, mas também em áreas já na fronteira com a engenharia, como a electroestimulação, exosqueletos ebiomateriais. E não nos podemos esquecer que pequenas melhorias para os doentes, que têm este tipo de lesões tão incapacitantes, podem representar uma melhoria considerável na sua qualidade de vida. Não estou a falar sequer em voltar a andar, mas por exemplo, ser capaz de ganhar alguns movimentos autónomos na mão e poder beber um copo de água ou lavar os dentes sem ajuda.
Quando é que os doentes poderão beneficiar desta terapia?
Temos de ter a noção de que leva muitos anos entre a descoberta científica, feita num laboratório académico, e o medicamento estar disponível no mercado. Na melhor das hipóteses, estima-se que serão necessários dez anos, dada a complexidade dos estudos para demonstrar eficácia e garantir segurança. Dito isto, é difícil fazer previsões.
Porque é que decidiu estudar as lesões na medula espinhal?
A medula espinhal está protegida pela coluna vertebral e funciona como uma via de comunicação entre o cérebro e o corpo, ou seja, entre o centro de comando e a periferia. Uma lesão na medula espinhal pode ser por impacto, como acontece em acidentes de viação, ou por compressão quando existem tumores ósseos. E pode conduzir a variadíssimas situações clínicas, na maior parte das vezes irreversíveis, como a perda do controlo motor dos braços e das pernas que é a mais visível. Mas também pode levar à perda de sensibilidade ao toque e à temperatura. E depois podemos acrescentar situações que, não sendo tão visíveis, são igualmente incapacitantes, como dor crónica, falta de controlo da bexiga, problemas no fígado e nos rins, e uma maior suscetibilidade para infeções, etc. Além da lesão local na medula espinhal, os pacientes com lesões vertebro-medulares desenvolvem, assim, uma variedade de complicações caracterizadas por disfunção ou falha em múltiplos órgãos periféricos. Este é um problema de saúde muito grave e complexo para o qual não existe ainda uma cura nem sequer um tratamento minimamente eficaz. Posto isto, é crucial compreender este problema a fundo para encontrarmos soluções clínicas. É, por isso, necessária mais investigação para conhecermos os processos biológicos que ocorrem, não só na medula espinhal, mas também nos órgãos periféricos dos pacientes lesionados.

PRÉMIOS SANTA CASA NA ÁREA DAS NEUROCIÊNCIAS
Prémio Mantero Belard
Criado em 2013
Distingue a investigação científica ou clínica no âmbito das doenças neurodegenerativas, associadas ao envelhecimento, como Parkinson e Alzheimer, que possibilite o surgimento de novas estratégias no tratamento e restabelecimento das funções neurológicas.
Valor: 200 mil euros
Prémio Melo e Castro
Criado em 2013
Promove a descoberta de soluções para a reabilitação de lesões vertebromedulares de natureza traumática e não traumática (adquiridas ou congénitas).
Valor: 200 mil euros
Prémio João Lobo Antunes
Criado em 2017
Foi concebido como omenagem ao médico, neurocirurgião e cientista. Destina-se a licenciados em Medicina, em regime de internato médico, e visa estimular a cultura científica e a investigação clínica na área das Neurociências, sem esquecer o princípio de João Lobo Antunes relativo à humanização do ato médico, “os seus pacientes e as suas histórias”.
Saiba mais sobre os prémios Santa Casa na área das neurociências.