Dr. Jekyll e Mr. Hyde são duas figuras que ganharam uma dimensão popular muito maior do que a novela que as criou. Jekyll e Hyde, juntos são a metáfora da cumplicidade maligna, mais célebres do que o seu criador, o escritor escocês Robert Louis Stevenson.
Em O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, Stevenson mergulha na chamada literatura gótica, muito em voga na época, está próximo da ficção científica, e parte do tremendo êxito do livro deveu-se à coincidência temporal com os crimes de Jack, o Estripador que então aterrorizam a cidade de Londres. A quem o lia, a quem assistia às suas adaptações teatrais, a história de Stevenson parecia adequar-se àquela realidade negra e toda a estranheza do caso entre o médico e o criminoso surgia, afinal, como bastante verosímil.
Publicado em 1886, O Estranho Caso… é protagonizado por um médico respeitado, “um homem grande e bem constituído, de rosto limpo e bem perto de cinquenta anos que tinha por ventura a qualidade de uma certa dissimulação, mas todas as marcas da capacidade de gentileza” e “um sujeito com o qual ninguém podia ter nada a ver; um homem verdadeiramente danado”. Com narrador anónimo, o livro cruza falas e perspetivas num adensar de trama gerador de tensão. Utterson, o advogado que tende a praticar o bem, vai sabendo da história, colecionando detalhes e compondo uma teia onde sobressai o que se assemelha a um caso de dupla personalidade, sexualidade ambígua, temperado por acontecimentos macabros, perfídia e grotesco. No conjunto, isso compõe a estranheza que dá título ao livro e deu a Stevenson dinheiro e popularidade imediatas.
Só Utterson sabia de um detalhe: o médico, Jekyll, um respeitado membro da classe média, conhecido por algumas experiências científicas bizarras, incluíra “o homem verdadeiramente danado” no seu testamento e esse misterioso facto provocava ondas de perplexidade ao advogado que não se cansa de perseguir os motivos de tal generosidade da parte do amigo para com o que todos descrevem como um ser próximo da monstruosidade. “A minha situação é dolorosa, Utterson; a minha posição é muito estranha – deveras estranha. É um daqueles assuntos que se não podem remediar conversando”, respondeu-lhe Jekyll, quando o amigo o indagou acerca das suas razões.
O livro de Stevenson, que entretanto deu nome a musicais, restaurantes, bares, se tornou um ícone da cultura pop e de um certo negro, adaptando-se a cada tempo, é apresentado na literatura como um exemplo da escrita sobre a dualidade de personalidade. O que escondem o médico e o homem que caminha solitário pelas noites de Londres? Uma variação do vitoriano Frankenstein, de Mary Shelley, livro de 1818 que também se popularizou pelo modo como relatou a monstruosidade? Há quem procure nesta obra de Stevenson essa e outras influências. Como a de ter sido escrito 15 anos depois de The Descent Man, original de 1871 de Charles Darwin, no qual o teórico da evolução das espécies escrevia que o homem descendia do quadrúpede e que as manifestações de estádios precedentes surgiam no presente do homem. Stevenson era um leitor atento e terá levado esses elementos do animal/humano para a sua escrita.
“O Sr. Hyde era pálido e atarracado, soltava uma impressão de deformidade sem que houvesse alguma deformação que se pudesse designar, tinha um sorriso desagradável, havia-se dirigido ao advogado com uma espécie de criminosa mistura entre timidez e ousadia e falava com uma voz rouca, sussurrante e algo retorcida; todos esses pontos iam contra ele, mas nem tudo isso junto podia explicar o até então desconhecido desprezo, ódio e temor com que o sr. Utterson encarara o homem”, lê-se, com Utterson a ler qualquer coisa de “troglodítico” na criatura que tinha pela frente.
À medida que a trama se adensa, estamos em permanente alerta para a tal questão do duplo, do alter-ego que a psicanálise havia de desenvolver num namoro permanente com a arte e a literatura. E aqui a dualidade do indivíduo, mas também da sociedade, da cidade onde tudo acontece. A limpeza da ruas de Londres e o negrume de ruelas logo ali, nas sombras em que se encontra a cave na qual Hyde entra e parece viver. O bem e o mal não são categorias separáveis, antes se cruzam, matizam. Jekyll não é apenas o homem bom que aparenta. E Hyde, será puro demónio?
Stevenson acentua esses contrastes nas descrições de ambiente, no modo como a expressão de um rosto é ou não reveladora de um íntimo que se intui não ser tão claro. Isso permite-lhe uma grande eficácia narrativa quando o seu tema é o mistério. No caso, o mistério de uma relação.
Literalmente lida como uma novela de aventuras, este O Estranho Caso… acaba por refletir muitos dos debates da época em que foi escrito e isso explica ter-se tornado numa espécie de ícone, metáfora para o que não é explícito, o modo como consciente e inconsciente se manifestam, as sombras, o interdito. Um clássico, pois.
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