Uma casa vazia. É essa a primeira memória que João Nicolau tem de Telheiras, o bairro lisboeta para onde os pais decidiram ir viver nos anos 80, quando o realizador tinha 10 anos. “Lembro-me de os meus pais irem ver a casa e do bairro ser um sítio ainda muito inóspito. Tudo o que hoje é relva ou ajardinados era terra batida e não existiam muitos prédios”, recorda, hoje com 40 anos, numa das esplanadas da emblemática “rua dos cafés” de Telheiras.
Aos olhos de uma criança, a mudança para um bairro em construção estava longe de ser um problema: “Era maravilhoso porque havia muitos terrenos baldios, inclusive com cabras a pastar, lembro-me de vermos cobras enquanto brincávamos e ficarmos todos contentes”.
John From, a segunda longa-metragem do realizador (agora em exibição), mostra o bairro como ele é hoje, com mais prédios, mais árvores, mais automóveis (um deles mágico.). Mas o vazio continua lá, enquanto peça importante da narrativa, uma vez que a ação se desenrola em pleno mês de agosto. E se há adjetivo que assenta bem a um bairro lisboeta durante as férias grandes é. vazio.
Rita, interpretada pela atriz Júlia Palha, tem 15 anos e vai ocupar as férias com os seus delírios de paixão por um novo vizinho, um fotógrafo divorciado (Filipe Vargas), autor de uma intrigante exposição inaugurada no centro comunitário do bairro sobre a Melanésia (região da Oceânia que inclui territórios como as Fiji, Nova Guiné, Ilhas Salomão ou Vanuatu). Um enamoramento que Rita irá viver com a intensa cumplicidade da melhor amiga, Sara (Clara Riedenstein) e, claro, do bairro onde vive que, às tantas, é envolvido na fantasia da Melanésia, tornando-se num destino exótico dos antípodas.
Telheiras é invariavelmente um dos bairros lisboetas mais bem classificados em inquéritos de satisfação aos residentes. No estudo “Bairros em Lisboa”, do Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território, da Universidade Autónoma de Lisboa, apresentado em 2014, cerca de 80% dos residentes inquiridos estavam satisfeitos com o bairro e quase 70% consideravam-no o melhor sítio para viver em Lisboa. De acordo com o mesmo inquérito, os aspetos mais valorizados pelos residentes são os espaços públicos e verdes, o comércio local e a localização e acessibilidade.
A chegada do metro ao bairro, em 2002, trouxe-lhe uma maior centralidade, tendo em conta a sua posição periférica relativamente ao centro da cidade. João Nicolau assinalou a novidade com a devida pompa, apesar de não viver em Telheiras na época (esteve no bairro até aos 20 e regressou há cinco anos): “Estive na primeira viagem de sempre do metro para cá, às 6h da manhã, com um grupo de amigos”, recorda, divertido.
MEMÓRIAS DE VERÕES PASSADOS
Verões quentes num bairro deserto, amizades à distância de uma viagem de elevador e vizinhos apaixonantes farão parte das memórias de muitos, independentemente do bairro onde cresceram.
Apesar de ter passado muitos verões fora de Lisboa, João Nicolau lembra-se de como com o aproximar da adolescência ficar no bairro se tornou um prazer. “Os pais saíam de manhã para irem trabalhar e o bairro ficava só com jovens. Isto era literalmente nosso, chegávamos a organizar torneios desportivos nos parques de estacionamento”, conta, sorridente. O vazio do bairro não era visto como um elemento opressor; funcionava, antes, como “um atrativo”. Tudo era possível, tal como no filme que realizou.
Luís Pereira tem 29 anos e apenas dois não foram vividos no bairro. Também ele coleciona memórias das vivências comunitárias em Telheiras. Tinha aulas de flauta na associação de residentes e aos 6 anos já vendia brinquedos na Feira da Tralha.
Hoje, é um dos coordenadores da Parceria Local de Telheiras (que reúne várias entidades do bairro em ações conjuntas) e pela plataforma online de divulgação do bairro: a Viver Telheiras. Os projetos são acarinhados pela Junta de Freguesia do Lumiar, principal patrocinadora do evento local mais grandioso: o Festival de Telheiras, agendado para a semana de 2 a 8 de maio, com mais de 60 atividades programadas (quase todas gratuitas).
A projeção de John From será um dos momentos altos do evento (e até o cartaz foi escolhido pelos residentes).
Ao centrar o seu filme em Telheiras, João Nicolau localizou-o no território universal das memórias da vida de bairro, numa fase da vida em que o mundo parece estar concentrado nos quarteirões mais próximos: “Escolhi ambientar o filme na adolescência porque é um período em que as coisas são vividas intensamente e também porque é uma altura em que a maior parte das pessoas tem muita disponibilidade”, explica o realizador e coargumentista do filme, juntamente com a irmã, Mariana Ricardo. Mas a adolescência nunca nos abandona, acredita João Nicolau, “estas lógicas e estes momentos, obviamente com códigos diferentes, acontecem-nos durante toda a vida”. Os adultos poderão não ter a criatividade de usar um iPod oráculo, que dá pistas sobre o futuro através dos títulos das canções escolhidas aleatoriamente, mas quando o desejo ou paixão toma conta deles, é difícil resistir ao pensamento mágico.
ENCONTROS A CADA ESQUINA
Percorrendo as ruas de Telheiras agora com cartazes alusivos ao filme em quase todas as montras do comércio de rua os motivos que levaram João Nicolau a escolher o seu bairro para a rodagem tornam-se mais claros a cada passo. Apesar de “não querer, nem poder fugir” à sua biografia, o também músico da banda Silence is a Boy confessa que foram “as características funcionais” do bairro que o levaram a escolhê-lo como “protagonista”, e não razões emocionais. Os edifícios afastados uns dos outros contribuem para a ideia de isolamento do início do filme e os prédios com corredores ao ar livre (uma das imagens de marca do bairro) fazem com que as pessoas só deixem de se ver quando entram na própria casa, ou seja, “foi tudo pensado para as pessoas estarem em contacto”. A arborização também era importante para a transformação que o bairro sofre ao longo da narrativa. “Outro aspeto que me interessava era este ser um local onde as crianças e jovens ainda circulam muito. Aqui ainda se veem crianças a andar de bicicleta”, constata.
As características que tornaram o bairro numa personagem cinematográfica estão ligadas à sua génese. Construído pela EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) nos anos 70 para habitação social, Telheiras, a dois passos da cidade universitária e com casas a preços acessíveis, atraiu habitantes que o tornaram conhecido como “bairro dos doutores”. A Associação de Residentes de Telheiras (ART) assumiu um papel vigilante durante a construção do bairro, procurando garantir que o plano de urbanização era cumprido.
Impedir a construção de bombas de gasolina ou assegurar hortas comunitárias foram algumas das suas vitórias. Hoje, a ART está mais focada na dinamização cultural. Aulas de música e de dança, teatro, coro musical, yoga, palestras ou jantares comunitários são algumas das suas atividades.
Luís Queirós, 70 anos, atual presidente da associação, chegou ao bairro há cerca de 25 anos “ainda me lembro de aparecer a mercearia do sr.
Joaquim”, nota, referindo-se a uma das lojas mais emblemáticas do comércio local. O também fundador da empresa de estudos de mercado Mark test não se imagina a viver noutro sítio “está fora de questão” e não hesita na hora de dizer o que mais gosta no bairro: “Sinto-me como se estivesse numa aldeia. Posso fazer a minha vida toda sem sair daqui”. E se o excesso de automóveis é consensual enquanto aspeto a melhorar no bairro, a paixão por Telheiras tem motivos variados. João Nicolau, também ele adepto da vida de bairro (e habituado a tropeçar nas atividades locais), elege o “espaço” e a “luz” fator quase “físico-químico” para garantir o seu bem-estar. Quanto a bairrismos, o realizador responde de forma desconcertante: “Isto é uma ilha que quase poderia tomar as proporções de uma República. Gosto muito de um graffiti que diz: ‘Portugal fora de Telheiras já'”.
O realizador apresenta, ainda, um novo conceito: “Muitas vezes, fala-se dos aspetos suburbanos de Telheiras, mas acredito que pelas suas características, este é o primeiro bairro ‘sobreurbano’.
O prefixo [sobre] denota uma elevação em relação ao resto da cidade e não uma situação de inferioridade”.
Afinal, temos bairrista.
Por um bairro melhor é a iniciativa que une a VISÃO, SIC Esperança e a Comunidade EDP em busca dos vizinhos mais ativos do País. Participe, dê ideias, contribua. Tudo por um bairro melhor.