Procurar uma determinada pessoa na serra de Espinhaço de Cão, no limite da freguesia de Barão de São João, pede navegação à vista. A resposta começa quase sempre com a frase “Está a ver aquele telhado?”. Depois será o que os deuses quiserem.
É o que aprendemos quando entramos a medo na propriedade de Frances e David Fry. Passa pouco das 10 da manhã de domingo, não se ouve qualquer ruído. Há roupa no estendal e um jipe estacionado entre duas casas em construção.
Também há portas e janelas abertas. Está alguém? Frances aparece à porta, de roupão. Ao primeiro minuto de conversa percebemos que teria sido melhor perguntar “Is any body home?” porque ela e o marido quase só falam inglês. Em 1982 trocaram Portsmouth por Ferragudo, mas os expatriados eram já tantos na zona de Portimão que nunca sentiram necessidade de aprender português.
Em Inglaterra, David começou como avaliador imobiliário. Já casado, tinha restaurantes e batia-se com a mulher para ver quem ficava na cozinha. Quando quiseram uma vida mais simples, escolheram Ferragudo porque a terra parecia ter parado nos anos 50. “Os nossos filhos [Manny e Helen, que já lhes deram netos] podiam ir à praia sozinhos.” No Algarve, mudaram de ramo. Como Frances gosta de pintar, abriram uma escola de artes e, mais tarde, uma galeria com quartos para artistas-residentes. O que aconteceu a seguir deveu-se a duas palavras escritas junto à piscina: Clothing optional.
David explica: “Tínhamos aulas de modelos nus, achei que era simpático quem quisesse poder estar mais à vontade.” Com o empurrão de uma notícia na internet e de uma reportagem num canal de televisão britânico, no final de 2001 aquilo que começou por ser uma brincadeira transformou-se num negócio hoteleiro inovador em Portugal: um pequeno resort para naturistas.
David tira a cartola e faz uma vénia, entre gargalhadas: “Éramos famosos!” Em outubro de 2010 os Fry venderam o negócio a um outro inglês e passaram de um jardim com um hectare para um pedaço de serra com 22 hectares. A pensar no futuro dos filhos, criaram uma empresa (Horses in the Sun) que organiza passeios a cavalo e de charrette, umas horas ou um dia inteiro, por montes e vales ou com piquenique na praia.
Um dos passeios preferidos dos clientes da Horses in the Sun é até Barão de São João. Chegados à aldeia, bebem um copo no café Palmeira, junto ao fontanário e ao quase pronto lar de idosos, e logo sobem até à mata nacional, onde Frances os espera com mantimentos. Na mata existe um restaurante gerido por ingleses, O Florestal, tão chique que parece ter sido transplantado de Almancil, mas, à exceção do brunch de domingo, só abre ao jantar.
Do outro lado do vale, uma rua sobe íngreme até à casa da alemã Inge e do português Deodato Santos, oferecendo muito mais do que a possibilidade de chegar à mata. Quem passa é surpreendido por grandes bonecos coloridos, uma mulher com pretzels no bolso, um homem fazendo das mãos binóculo, uma rã pousada numa charca, tudo esculturas modeladas (em ferro, rede metálica e serradura com cola) por Deodato e pintadas por Inge.
Inge foi a primeira estrangeira a fixar-se em Barão de São João. Quando chegou, em 1973, tinha 22 anos e a utopia de sobreviver da agricultura biológica. Depressa se espalhou a notícia da sua chegada e logo o povo começou subir a ladeira para espreitá-la. A alemã cavava nua, dizia-se na aldeia.
UMA REVOLUÇÃO
Não demorou muito até Inge perceber que umas calças e uma camisola a protegiam melhor do sol do que o fato de banho e a T-shirt. Aí pararam as romagens, mas quando descia para ir fazer compras à aldeia, na altura meia dúzia de ruas com casinhas brancas sem um único café, as mulheres juntavam-se à sua volta. “Apalpavam-me e diziam: ‘Tão magrinha, nem mamas tem! Onde é que o marido agarra?’.”
Deodato, o marido, era quase um filho da terra porque nascera em Lagos. Ele e Inge conheciam-se desde 1968, trabalharam juntos em Genebra, num projeto inovador na época que punha jovens e idosos no mesmo espaço de animação cultural. Para trás o português deixara Paris, onde fizera a sua primeira exposição, e, ainda mais recuado no tempo, deixara a ideia de fazer carreira militar por influência de Zeca Afonso, que fora seu professor.
Apesar das circunstâncias políticas do País em 1973, os dois pensaram que um projeto como o da Suíça era necessário em Portugal. Compraram um terreno, montaram uma tenda enquanto não construíam a casa e começaram por se dedicar à terra para terem meios de subsistência. No primeiro ano valeu-lhes as reservas em francos suíços. “Quando precisámos de uma picareta para abrir buracos para as alfaces, quando nem os bois conseguiam lavrar a terra, o Deodato foi dar aulas.”
Em 1973, a aldeia não tinha água canalizada ou saneamento. Ao serão, dois televisores entretiam alguns vizinhos. A dona de um deles alugava cadeiras quando passava um programa bonito.
Abril de 74 teve o efeito de um meteorito a cair em Barão de São João. Quem hoje vê Deodato a trabalhar nas suas esculturas, solitário, calado, não adivinha que um dia tomou o poder e “assaltou” a junta. Entre 1974 e 1975, organizou com Inge vários campos de trabalho internacionais. As pessoas que faziam “turismo político” ajudavam na colheita da amêndoa e dos figos. Dormiam em tendas emprestadas pela tropa e recebiam comida em troca da ajuda que davam à população.
TERRA DE ARTISTAS
É desse tempo o início da construção do centro cultural, hoje bem posto num dos caminhos para a mata nacional, e uma cooperativa de artesanato entretanto desaparecida. São desse tempo muitos alemães que ainda moram por aqui. Metade da aldeia pertence a estrangeiros e no Vale da Bordeira, do lado leste da mata, ainda há quem tenha um modo de vida alternativo, instalado em pequenas cabanas de madeira ou roulottes que hoje não aguentariam voltar à estrada. Quando organizam festas, normalmente de dança, a música ouve-se por toda a aldeia.
Ao longo dos anos, vieram amigos de amigos que foram ficando e comprando terrenos enquanto ainda era legal construir por aqui. Pessoas ligadas às artes, jovens, ao contrário do que sucedeu, e sucede, no resto do Algarve. Todos pintam, todos sabem música, embora para sobreviver muitos façam uns biscates, na maioria das vezes na construção civil. Na nossa primeira manhã em Barão, tropeçámos literalmente num trabalho da suíça Margarita Studer, que tem a loja-atelier Azularte.
Nas primeiras autárquicas, em 1976, Deodato perdeu a presidência da junta para um homem da terra, Florentino Marques, e passou de santo a demónio. Cortou relações e nunca mais desceu à aldeia. Quando lhe apetece passear a pé, mais vezes agora que se reformou, sobe à mata, enquanto a mulher faz ioga numa cabana no jardim (Inge dá aulas de ioga). Aos 71 anos, o trabalho artístico disfarça-lhe a amargura. Está sempre a pensar em histórias que deem azo a novas esculturas, recupera o tempo perdido desde que saiu de Paris. “Em novo, senti que fui pelo caminho mais fácil. Hoje, não preciso de me preocupar com a subsistência, o que é bom. Ser artista com dificuldades económicas afeta o trabalho.”
UMA ESCOLA DIFERENTE
Um dos seus clientes é Henrique Balsemão, dono do turismo rural Monte Velho, na Carrapateira, que havemos de encontrar na manhã seguinte, nos arredores de Barão, a deixar a filha mais nova no Jardim Infância Viva, uma escolinha para crianças entre os 3 e os 6 anos que segue o método Waldorf. A mais velha já frequenta a Escola Livre do Algarve, provisoriamente na antiga básica da Raposeira, já a caminho de Vila do Bispo. Ambas estão a ser educadas segundo quatro palavras-chave: modelo, imitação, ritmo, repetição.
É sexta-feira de manhã, altura em que as crianças que quiserem podem ajudar a descascar legumes para a sopa ou fazer colagens com pedacinhos de lã. Quem não quiser pode sempre brincar. “A brincadeira livre é muito importante”, vai dizendo Filipa, uma das “jardineiras” do jardim de infância, enquanto fia com a ajuda de algumas das crianças.
Quase 40 anos depois da chegada de Inge e Deodato, entra-se em Barão e sente-se qualquer coisa no ar. No ar da aldeia e no ar das pessoas que aqui moram ou a atravessam, muitas vezes ao volante de carros velhos com matrícula alemã. Há sempre uma ou duas caravanas a cair da tripeça e um homem loiro de aspeto estrangeiro e sotaque algarvio.
Logo à entrada, ao lado da igreja de São João Batista, vê-se um bar-restaurante pintado de azul-forte, o Caramba, que já pertenceu a alemães, mais tarde a um turco que estivera emigrado na Alemanha (era dele uma roulotte de kebabs muito tempo estacionada nas imediações) e recentemente a ingleses.
Reabre a 16 de abril com nova gerência, de alemães. Terá concorrência mais direta do bar Estrela, de Andrew Kazanowski, filho de mãe inglesa e pai polaco, e do restaurante O Beiral, comandado pela italiana Olimpia Zaza, mulher com um talento raro para a cozinha.
NO BAR DO ZÉ MANEL
Olimpia é de Milão e sempre cozinhou. Depois de morar oito anos numa ilha da Sicília, coisa minúscula com 4 km por 5, viu na internet que o clima do barlavento algarvio se assemelhava ao da Sicília. Na pesquisa que fez, ajudada pelo companheiro, Alessandro, programador informático, descobriu o Monte Rosa, à saída de Barão de São João, um alojamento turístico de uma holandesa que promove workshops de ioga.
Durante um ano, os dois italianos trabalharam no Monte Rosa, ela atrás do fogão, ele no que calhava. Depois, deram o salto e no Beiral servem massas como manda o figurino, peito de pato se houver no supermercado e caril se apetecer à cozinheira. De sobremesa, um tiramisu que tira o sono a qualquer um e, no verão, sorvetes caseiros.
Na mesma rua fica o bar Atabai, também conhecido como o Bar do Zé Manel. A partir do final da tarde, José Manuel Marreiros Silva serve copos numa correnteza colorida, portas-meias com a sua mercearia. Aos 61 anos já vai ficando cansado da dupla cerveja mais copinho de aguardente de medronho, mas continua atrás do balcão todas as noites e a contratar músicos para tocarem ao vivo no bar. Foi lá que conhecemos o duo Neo’s Dream, o casal de irlandeses Emer e Martin.
Zé Manel nasceu atrás do balcão deste bar que abriu em 1984, era ali o quarto dos pais. Atabai é o nome de uma localidade de Timor, país onde cumpriu o serviço militar durante três anos. Como estava encarregado da logística, conheceu a ilha de uma ponta à outra. Esteve por um triz para fugir até à Austrália, num iate. Não fugiu. Terminada a tropa, passou pelo México, pela Califórnia e trabalhou dez anos no Canadá. Em 1982, regressou a Barão de São João com a mulher, Ana, e duas filhas. “Portugal ainda é o melhor país para se viver”, diz, apesar de ser muito crítico da sociedade portuguesa em geral e dos políticos em particular.
‘CALIFÓRNIA PORTUGUESA’
O ano de 1982 viu chegar vários forasteiros que hoje são olhados como filhos da terra. Pedro Cavaco e a mulher, Margarida Romão, ambos hoje com 56 anos, vieram do Porto nesse verão. Pedro ainda não terminara o curso de Arquitetura quando por aqui passou pela primeira vez, em 1975. Lera a notícia de um casal que fazia agricultura biológica em Barão de São João, veio encontrar Inge e uma série de alemães acampados na escola primária. Mais tarde, foi ele quem organizou o primeiro seminário de agricultura biológica em Portugal.
Além da casa onde moram, desenhada por ele, com vista para uma floresta de acácias e bonecos do Deodato por companhia, Pedro e Margarida gerem a Casa dos Sonhos, cinco pequenos apartamentos com piscina biológica comum. Ela dá aulas de Matemática e formação de professores, ele tem escritório em Lagos e muito trabalho para os lados de Monchique.
Pedro e Margarida são uns observadores privilegiados e têm um olhar crítico face ao que aconteceu à aldeia nos últimos anos, sobretudo a perda do espírito comunitário. “Hoje, cada um pinta e faz música em sua casa, ninguém quis ou foi capaz de sair disso”, nota Pedro. “As pessoas ficaram nas suas tocas, essa foi a grande surpresa e a morte da ‘Califórnia portuguesa’.”
Até aos anos 90, Barão era o paraíso das drogas leves. Ia-se ao bar do Zé Manel e o cheiro não enganava. Depois, veio o tempo das raves que atraíam gente que juntava o ecstasy ao haxe e ao álcool. Mais recentemente, as rusgas constantes da GNR vêm acabando com essa imagem. “Felizmente”, diz José Manuel Silva, 44 anos, secretário da junta.
ENTRE BOLINHOS E BORDADOS
Em 1997, José Xavier, que mora mesmo em frente ao posto dos correios, chegou a ficar preso uma noite e teve de responder em tribunal por causa de uma grande plantação. Mas tudo não passou de um equívoco dos agentes da GNR – o campo era de cânhamo e fora financiado pela União Europeia.
Aqui o “telefone árabe” funciona bem. O primeiro a saber do diz-que-disse é quase sempre Zé Manel. Na sua mercearia cruzam-se todos, portugueses e estrangeiros, velhos e novos. O ritmo das compras e do avio dá pano para uma boa prosa. Nisso Barão de São João é uma aldeia igual às outras, apenas com mais histórias do que a maioria.
Há hábitos que não se perdem, culturas que perduram no tempo. Na tarde em que a autocaravana da VISÃO esteve de porta aberta no largo da igreja, a visita das vizinhas Maria Francisca e Natividade Evangelista confirmou que as senhoras continuam a saber fazer folar da Páscoa e arrepiados (bolinhos de amêndoa), e que os bordados são um dos entreténs ao serão.
Quem passa pela aldeia não dará por isso, mas as noites de quarta-feira são animadas. No centro cultural ensaia-se no Polo de Guitarras de Barão de São João (que, juntamente com os polos de outros concelhos, forma a Orquestra Juvenil do Algarve), e num outro edifício da junta há workshop de bordados e aulas do programa das Novas Oportunidades.
As coisas mexem por aqui, embora muitas vezes discretamente. Uma indicação para Zoo de Lagos esconde um espaço interessante, cheio de animais, sobretudo aves e primatas. Quatro burros num prado, já a caminho do Vale da Joana, são os animais resgatados pela associação Orelhas Sem Fronteiras, criada por Inge de Haan, há nove anos em Barão. Além de tê-los salvo do abandono, a holandesa utiliza-os em passeios em sessões de coaching. “Os burros são o nosso espelho”, acredita.
Desde que trabalha com burros, Inge de Haan está em rede com outras associações do género no Algarve. Estar em rede é um dos segredos do êxito de muitas iniciativas. Logo no primeiro dia em Barão de São João, outra Inge, a mulher de Deodato, falara-nos no projeto de juntar as duas escolas Waldorf a uma IPSS de apoio à terceira idade e construir um centro comunitário. Será mais uma enorme utopia?