Tem dúvidas de que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) seja cumprido a tempo, aplaude as medidas de desburocratização nos licenciamentos previsto no programa ‘Mais Habitação’ e lamenta que a construção modular seja ainda pouco mais do que uma miragem em Portugal. Em entrevista à VISÃO Imobiliário, Bento Aires, presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Norte e professor no Porto Business School, defende ainda medidas mais enérgicas por parte do Estado para resolver o problema da habitação onde se incluem benefícios fiscais que promovam uma maior dinâmica imobiliária e um travão aos bancos, que permita suavizar a subida das prestações no crédito à habitação.

O que destacaria, de positivo, no programa Mais Habitação?
A redução da carga burocrática…As câmaras vão passar a ter penalizações se atrasarem a análise dos projetos. Porém, ainda estamos ainda muito longe de ver as autarquias com uma maturidade tecnológica e digital no âmbito dos licenciamentos… Acho que isto vai ser um pequeno passo, mas ainda não é aquele que precisamos de dar. É fundamental um ordenamento do território mais preditivo, que indique logo quais são as volumetrias, quais as alçadas, as manchas de implantação do desenho da cidade, de forma a reduzir a incerteza e as dúvidas dos promotores imobiliários na hora de definirem as soluções dos seus projetos.
A crise da habitação, neste momento, já não é só um problema das classes mais desfavorecidas. Afeta também a classe média e, por isso, são necessários incentivos fiscais que aumentem a oferta de habitação no mercado. Enquanto não conseguirmos ter mais casas no mercado vamos continuar a ter um problema habitacional. Não defendo que a habitação de luxo tenha benefícios fiscais, mas a habitação para a classe média deveria contemplar um zonamento do IMI, que a Autoridade Tributária pode apurar. Isso também é uma medida de política pública, pois vamos estar a dizer onde é que vamos querer ter as pessoas a viver para que possam usufruir desses benefícios fiscais.
– Tal como se fez na reabilitação com a redução do IVA na construção…
Sim, a reabilitação urbana tem benefícios fiscais. Os municípios definiram as zonas e territórios de reabilitação urbana e houve municípios que o fizeram de forma mais ampla. Por exemplo, quase todo o território de Gaia tem benefícios fiscais porque foi considerado uma ARU (Área de Reabilitação Urbana). Se fizermos uma conta de 3000 euros de custo de habitação a 23% (de IVA) estamos a falar de cerca de 500€/m2, num apartamento de 100 m2 são 50 mil euros de valor… Seria um excelente contributo que o Estado poderia dar para reduzir os valores da habitação. O país neste momento tem um problema que é crítico, de acesso à habitação e de quantidade de habitação disponível. E isto só se resolve com medidas excecionais e efetivas. Agora estar a dizer-se que estes benefícios fiscais serão só em habitação de custos controlados, não faz sentido. Assim não vamos ter mais habitação no mercado.
Do conhecimento que tem, diria que o problema da burocracia nos licenciamentos é exclusivo de Lisboa e Porto? Ou é algo estrutural, generalizado por todo o País?
É generalizado. Mas obviamente que nas câmaras de maior dimensão é mais agravado, nos grandes centros urbanos, nas áreas metropolitanas de Porto e Lisboa… Daí que seja um erro dizer que resolvemos o problema de habitação com a quantidade de imóveis devolutos que foram identificados pelos Census, um imóvel não se consegue mexer e nós temos uma dispersão total onde estão localizados os prédios devolutos…
As tais 700 mil casas devolutas que volta-e-meia são referenciadas por muitos mas que, na verdade, estão localizadas em zonas sem procura…
Exato. E não é bem onde ninguém quer ir, é onde não há força para termos lá tanta gente a viver. E como se sabe nunca se construiu tão pouca habitação como na última década.
-O que se poderia fazer de forma estrutural, além da questão do licenciamento e que seja uma medida célere, que chegue rapidamente às famílias?
Neste momento se queremos resolver essa questão é mesmo preciso atirar dinheiro para cima do problema, ou seja, apoiar as famílias no acesso à habitação. Quer por via do arrendamento – até porque a compra de habitação está a ser de certa forma desincentivada – quer por via do crédito à habitação. Era importante estancar o aumento das prestações bancárias… Quem está a lucrar com isso são os bancos. E a par disso tínhamos de ter medidas efetivas: conseguir simplificar os processos de licenciamento, conseguir ter mais mão-de-obra disponível na construção com recurso a países que têm essa disponibilidade (simplificando os vistos de trabalho em Portugal), adaptar novas medidas de construção que sejam mais rápidas, mais eficientes e sustentáveis… A construção também está a passar por um momento em que se está a transformar: nós vamos deixar de ter um grau de customização como aquele que conhecíamos no passado e vamos ter de evoluir para soluções standardizadas, que consigam ser industrializadas de forma a ganhar efetividade. Há dias estive em Braga, em duas fábricas que fazem 30 casas de banho por semana, pré-fabricadas. Uma casa de banho numa obra construída de forma tradicional é capaz de demorar um mês!
Se conseguirmos modernizar também a nossa forma de construção, isso significa também que é necessária legislação permeável a novas ferramentas de construção e a novos conceitos e assim vamos conseguir aumentar a nossa disponibilidade de Habitação. Qualquer política de Habitação que não contribua ativamente para aumentar rapidamente a oferta está condenada ao fracasso.
O programa Mais Habitação prevê que os projetos de arquitetura e especialidades deixam de estar sujeitos ao licenciamento municipal e que a Câmara emite a licença com base no Termo de Responsabilidade dos projetistas. Concorda?
A Ordem dos Engenheiros vê com muitos bons olhos que os licenciamentos sejam feitos com base nos termos de responsabilidade e está é preocupada em garantir que se consiga regular efetivamente quem pratica os atos. Nós temos licenciados, temos mestrados, temos várias categorias de membros… Mas não podemos dizer que todos estão habilitados a fazer tudo. Por isso queremos ter mais regulação efetiva da profissão. Mas não temos qualquer problema e estamos totalmente de acordo com o Governo em que todos os processos técnicos sejam decididos com base em termos de responsabilidade de técnicos habilitados para o fazer.
A construção modular tem avançado vagarosamente por cá, apesar de ser outra medida eficaz para colocar uma maior oferta de casas no mercado.
É uma barreira cultural. Nós não estamos ainda preparados para ter uma casa de banho, que é pré-fabricada, uma cozinha que é pré-fabricada… Continua a ser feita a construção por catálogo, onde se escolhe a cerâmica, a dimensão da casa-de-banho… Mas temos de migrar para um sistema de construção deste género. E aquilo que o programa de simplificação dos licenciamentos está a dizer é que se tivermos operações de loteamento, planos de pormenor, unidades operativas, de planeamento e de gestão que façam já o desenho urbano, o processo de licenciamento será só por comunicação prévia. E com esta medida vamos conseguir incentivar muito a construção modular.
Acredita que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) será cumprido a tempo?
A Europa toda tem PRRs para executar e Portugal deve estar na cauda dos países em relação aos salários que paga na construção civil… Além de que há outras geografias na Europa com regimes de entrada e de vistos mais simplificados. Portugal não consegue, por exemplo, competir com um salário pago em Espanha. Os trabalhadores de construção civil em Espanha têm os valores regulados e eu diria que um trabalhador médio da construção civil terá um salário bruto a rondar dois mil euros, seguramente. Um trabalhador médio do setor da construção em Portugal se ganhar um salário bruto de mil euros por mês, já é um bom salário… Portanto, se não conseguimos captar mão-de-obra para Portugal isso vai ser um problema não só para a habitação mas para todos os investimentos públicos que temos para executar.
Portanto, tem dúvidas de que o PRR cumpra as suas metas cronológicas…
Dentro dos timings e dentro dos valores que estão definidos eu tenho quase a certeza que não vai ser possível ser executado. Não vale a pena dizer que vai ser possível porque não vai. Temos de encontrar outras formas e dilatar isto no tempo. Até porque tem de ser executado e bem executado – não vale a pena executar só por executar. Temos que executar com controlo de qualidade, com rigor de execução, com boa gestão financeira para se conseguir ter efeito na sociedade e traduzir-se em desenvolvimento económico, social e sustentável. Porque temos de ir à boleia da descarbonização para conseguirmos executar o PRR. É preciso lembrar a fraca qualidade do nosso parque habitacional. Portugal continua a ser dos países da União Europeia que tem mais casas com entradas de água, com infiltrações, com pobreza energética e isso resolve-se com investimento, com obras, com a melhoria nas condições de climatização, de isolamento térmico, da envolvente, com a aposta em novas formas de energias, etc.
Volta e meia a terra treme, de mansinho, por enquanto, em algum ponto do país (e não só nas ilhas). Recentemente foi em Évora. Diria que temos uma boa construção anti-sísmica em Portugal? Como se cruza esta questão com a responsabilidade nos projetistas?
É preciso cruzar com a regulamentação. Temos de ter a certeza que quando se está a reabilitar um imóvel, quando se está a construir, é uma responsabilidade associada e que se estão a fazer todos os estudos para garantir a resistência sísmica. Temos um país com vulnerabilidade sísmica, que aumenta à medida que nos aproximamos do Sul. Há muito que defendo que nenhuma intervenção, nenhum imóvel deve ser feito – e falo concretamente nestes casos de relevância urbanística – sem um termo de responsabilidade associado a um profissional habilitado para o fazer, seja engenheiro, ou arquiteto, sobretudo para proteger o utilizador, quem vai lá viver. Quando não temos controlo das intervenções que são feitas nos edifícios, estamos a dar azo a que estas aumentem o risco e provoquem as debilidades estruturais nos imóveis. Se mesmo as obras de escassa relevância urbanística obrigassem a uma memória descritiva a ser entregue – ainda que seja a posteriori – num município, subscrita por um técnico responsável (até para memória futura do que ali foi feito), estaríamos muito mais do lado da segurança. Na construção nova, já se cumpre a legislação de segurança sísmica, não só nacional como internacional, por isso estamos protegidos. Quando estamos a reabilitar, não vale a pena tapar o sol com a peneira e dizer que estamos protegidos porque não estamos, uma vez que há muitas obras que são feitas sem qualquer controlo técnico!