Base essencial da economia nacional, o setor do turismo passou por um autêntico tsunami quando a pandemia começou. Mas agora que paulatinamente começa a recuperar o fulgor de outros tempos (não muito longínquos), o que vai acontecer ao alojamento local, ao turismo de negócios ou às regiões do interior que podem sair desta crise sanitária mais reforçadas? Temas abordados pela economista Vera Gouveia de Barros, autora do ensaio “Turismo em Portugal”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
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Que prioridades acha que deveriam existir em relação ao Orçamento para atrair os investimentos imobiliários?
Em termos imobiliários convém lembrar algumas coisas… Por exemplo, que Portugal é um país onde existem mais alojamentos do que agregados familiares, que os agregados familiares poderiam crescer se o preço de habitação fosse outro (pois há pessoas forçadas a viver em conjunto como filhos com os pais ou casais que não se divorciam) e, claro, que também há uma parte do parque habitacional que abrange as segundas habitações, portanto, não está vocacionado para o mercado de arrendamento. Mas, em termos de prioridades, acho que é necessário continuar a investir em reabilitação e na melhoria das condições das casas em termos energéticos. Depois, tem de existir uma certa estabilidade legislativa. Para se estimular o mercado de arrendamento, por exemplo, é preciso dar segurança a quem quer colocar a sua casa no mercado pois as pessoas querem saber quais são as regras que vão vigorar ao longo do seu contrato. Mas o que temos assistido são alterações sucessivas dessas regras o que cria desconfiança no mercado e essa estratégia não é amiga nem do investimento nem do arrendamento.
Os analistas têm vindo a alertar para o provável aumento das taxas de juro. Que conselhos deixa a quem vai comprar casa?
A primeira delas é recomendar que escolham taxas fixas. A taxa de referência vai ser a um prazo superior e, por isso, mais alta e o spread também será mais elevado, porque a taxa de juro fixa transfere o risco para o banco, que vai exigir ser compensado por tal. Portanto, se compararem as prestações com uma Euribor a 6 ou a 12 meses, pode, de repente, parecer um mau negócio mas olhem para que valores vai a prestação se a taxa de juro subir um ponto percentual. Ou dois. É que olhando para o historial das taxas de juro não é nenhum absurdo. Aliás, a Ficha de Informação Normalizada Europeia, que os bancos são obrigados a fornecer nas simulações de crédito habitação, tem de indicar quais serão as prestações se a TAN (Taxa Anual Nominal) chegar ao valor mais alto dos últimos 20 anos. Por isso, se a ideia não é reembolsar o empréstimo a curto prazo, sugiro que o façam com taxas fixas.O segundo conselho é o de que analisem muito bem todas as informações constantes da referida Ficha. Não se limitem à prestação, porque há seguros obrigatórios para quem contrai um crédito à habitação e esses seguros pagam-se. Façam as contas da taxa de esforço contabilizando-os, bem como às despesas com IMI, condomínio e outras. Portugal tem níveis preocupantes de iliteracia financeira e isso tem consequências práticas na vida das pessoas, nomeadamente neste assunto.
Escreveu um livro sobre turismo e o seu impacto na economia. Como vê a situação do setor num contexto pós- pandemia (ou endémica)?
Bom, o turismo é uma atividade quase tão antiga como a Humanidade… Basta pensarmos, por exemplo, que os romanos tinham formas de turismo muito próximas daquilo que é o nosso turismo de hoje – o sair da cidade nos meses mais quentes, o ir para a beira-mar, o turismo de bem-estar ligado às termas… Isso significa que esta atividade milenar tem sobrevivido a muita coisa, a outras pandemias, a guerras mundiais, locais… Portanto, também vai sobreviver a esta pois o desejo de viajar não desapareceu e estruturalmente as pessoas não modificaram as suas preferências. Apenas têm receio de viajar porque é preciso fazer testes, temem que no destino as coisas estejam fechadas ou de acesso difícil, ou que fiquem doentes e não aproveitem a viagem. Tudo isso tem prejudicado enormemente o turismo mas não há alteração no desejo de viajar. E também não me parece que Portugal tenha perdido competitividade face à situação pré-pandemia, pelo contrário, até foi considerado em muitas ocasiões como um destino seguro. Aquilo que eu esperaria na retoma – mas não sei se será otimismo meu – é que esta perceção do risco de estarmos todos em grande proximidade uns dos outros, levasse a que os turistas se espalhassem mais pelo território. Aquilo que eu gostava é que a pandemia fosse um catalisador na descoberta de novos destinos dentro de Portugal. Temos crescido muito em vários indicadores mas continuamos a ter um problema que, aliás, é muito comum à maioria dos setores económicos no país – existe uma excessiva concentração geográfica no turismo em destinos como Lisboa, Algarve, Madeira e Porto, que representam três quartos das receitas de turismo… O turismo gera sustentabilidade, gera valor, emprego e valoriza até o próprio sentimento que as populações têm relativamente à sua terra. Os portugueses aprenderam a gostar mais do seu país quando ele começou a ser elogiado lá fora. O turismo serve também para esse aspeto da autoestima que é muito importante.
No ano passado, o Alentejo e outras zonas do interior tiveram, ainda assim, excelentes desempenhos. A pandemia pode ter criado aqui uma oportunidade para manter?
Sim, os portugueses decidiram procurar os tais destinos mais desconhecidos onde não estivesse tanta gente porque na pandemia é importante essa questão do isolamento. Eu gostava que esse fenómeno acontecesse também do ponto de vista internacional. Temos ganhado prémios de divulgação turística, mas falta o tal crescimento internacional. O turista não deveria ficar apenas em Lisboa ou ao Porto, somos um país tão pequenino, portanto, façamos dessa pequena localização que temos, destes 92 mil km2 – ainda por cima densamente servidos de autoestradas – um investimento produtivo que permita que as pessoas aumentem a sua estada. E isso é um aspeto importante até do ponto de vista ambiental… Sabemos que as viagens aéreas estão associadas à emissão de gases com efeito de estufa, portanto o ideal é mesmo aumentar a estada. É preciso mostrar que o território turístico se entende como um todo… As regiões não estão em competição umas com as outras, mas sim em colaboração pois todas saem a ganhar.
Ou seja, falta mais promoção turística…
Mas promoção articulada, sem uma lógica paroquial. A solução passa por orientar os turistas a não ficarem só em Lisboa mas poderem dar um salto a Évora e permanecerem três dias num monte alentejano ou, a partir do Porto juntarem uma experiência de enoturismo no Douro mais um passeio na rota do românico a Marco de Canaveses e ao descerem passarem pelos Passadiços do Paiva, só para dar alguns exemplos.
E quanto ao turismo de negócios, o que mais está a sofrer neste momento, conseguirá reerguer-se?
Acho que vai mudar de características… Haverá menos reuniões presenciais do que aquelas de existiam porque nos apercebemos que temos meios para nos reunir a quilómetros de distancia. Mas também acho que esta pandemia nos fez perceber que há certos aspetos do convívio, da interação presencial que não são substituíveis, portanto, acredito que os eventos maiores, as conferências mais longas permaneçam e aí o turismo de negócios vai ter de se reinventar. Passarão a existir menos eventos mas cada evento com mais valor.
O setor da hotelaria tem vindo a queixar-se de falta de recursos humanos… Muitos estrangeiros que trabalhavam nesta área, como brasileiros, por exemplo, regressaram aos seus países de origem quando a pandemia começou. Isto pode ser um obstáculo no regresso à normalidade?
De facto, essa tem sido uma queixa recorrente. E há também a questão das remunerações pagas no setor, que devem ser vistas sob um olhar sério. O turismo tem uma baixa taxa de masculinidade e isso prejudica a média das renumerações visto que as mulheres são, em média, mais mal pagas, e sobre isso acho que o discurso do mercado tem de servir para os dois lados. Depois há outra questão – existe um problema de qualificações dos recursos humanos que é transversal e que também se verifica no setor do turismo. Se olharmos para aquilo que é o ranking do Fórum económico mundial relativamente ao turismo, percebemos que não nos saímos bem nos indicadores e na parte da formação. Acho que esta pausa forçada pela pandemia seria a altura ideal para dar formação e estimular o envolvimento com a própria empresa. Sabemos que foram momentos extraordinariamente difíceis para todos, foram criados alguns mecanismos de mitigação mas existe uma certa diferença entre receber um subsídio sem trabalhar e ficar em casa, ou estar a receber um subsídio e receber formação que dá uma perspetiva de regresso à atividade, de envolvimento com os colegas, com a empresa… E isso teria sido importante. É um daqueles indicadores que precisamos melhorar até para poder subir na tal escala de valor que queremos que o nosso turismo tenha.
No período pré-pandemia muito se falou da questão da gentrificação. O que acha que irá suceder no regresso à normalidade? O alojamento local continuará a ser uma boa aposta de investimento ou o mercado vai ajustar-se doutra forma?
Associa-se muitas vezes o alojamento local a um turismo “pé no chinelo”, pouco sofisticado e essa não é a realidade que mostram alguns estudos internacionais segmentando o mercado e mostrando que alguns dos hóspedes que optam pelo alojamento local fazem-no não por uma questão de preço mas sim porque querem ter uma experiência mais próxima da vivência local. Isso quer dizer que o mercado com o tempo tenderá para a auto regulação. Essa auto-regulação, às vezes, pode demorar tempo pelo que o ideal seria usar não o instrumento pelo qual se optou que foi o das áreas de contenção que tem um efeito pernicioso mas sim através da taxa turística como forma de regular a procura tanto no espaço como no tempo. Ou seja, eu não precisava de ter uma taxa turística idêntica em todo o concelho, podia diferenciá-la com base na mesma lógica que presidiu à criação das áreas de contenção. Quando nas áreas de contenção se impede o surgimento de novos alojamentos locais, o que se está a fazer é evitar que o mercado faça, por si, uma limpeza dos alojamentos locais. Ou seja, protege-se quem já tem um alojamento local e bloqueia-se a entrada de novos concorrentes. Isso significa que algumas destas unidades que numa situação de concorrência não teriam condições para sobreviver caso não melhorassem, acabem por ficar com o que chamamos em economia de renda excessiva…
Depois é preciso olhar para aquilo que os Censos nos dizem sobre as freguesias onde existe mais alojamento local, porque aquilo que nos contam é sobre a existência de alojamentos extraordinariamente pequenos… E eu sei, que uma pessoa vai ao Ikea e vê aquelas casas feitas em 25 m2 e até parece engraçado, mas se calhar, na vida real, não é bem assim… Se calhar dois meses a viver nessas condições em Alfama dá para perceber que algumas daquelas habitações só têm mesmo função para turismo. Durante anos e anos tivemos fogos habitacionais na sua génese que foram convertidos em escritórios de advogados, sedes de partidos, de organizações várias, consultórios médicos, dentistas, uma panóplia de serviços, e nunca ninguém se lembrou de associar isso a um problema de habitação…