A pandemia congelou o turismo e colocou em suspenso as vidas de todos aqueles que viviam do alojamento local (AL). Eduardo Miranda, presidente da Associação de Alojamento Local de Portugal (ALEP) fala do que está a bloquear a transição das casas de AL para o arrendamento, em que zonas se conseguiu ‘salvar’ o Verão e o que poderia ser feito para segurar um setor que movimenta milhares de postos de trabalho.
O Alojamento Local (AL) tem sido um dos setores mais afetados pela pandemia. Que balanço é possível fazer em termos de encerramentos e novas aberturas?
Desde o início do ano e até agosto tivemos 5 400 aberturas, ou seja, novos registos. No ano passado, até agosto, os registos chegaram aos 10 950; e em 2018 eram quase 17 000… Portanto, são quebras muito grandes… Quanto a cancelamentos e para o mesmo período estamos a falar de 2 758 registos cancelados.
Suponho que muito concentrados em Lisboa e Porto?…
Nos concelhos de Lisboa e Porto estamos a falar de cerca de 800, portanto, é pouco mais de um terço… Mas há um grande problema nos cancelamentos. E quem fala em cancelamento fala em qualquer tipo de migração. Esse problema chama-se mais-valia, é um grande obstáculo. Ou seja, há muita gente que não cancela o registo e se calhar até já desistiu ou praticamente suspendeu a sua atividade, ou então quer dedicar-se a um ou dois anos ao mercado de arrendamento, mas não dá baixa do registo porque tem medo de ser apanhado nas mais-valias. As mais-valias ou aquilo que nós chamamos de “falso imposto de mais-valia”, pois é a mesma coisa que se aplica na venda do imóvel. Ou seja, ao cancelar a atividade do AL, ao cancelar o registo, a lei fiscal entende como se tivesse vendido a casa e tem que pagar a mais-valia.
Mas se a casa não foi realmente vendida, qual é então a base para o cálculo dessa mais-valia?
Essa é parte pior – é com base no valor de mercado. Imagine que eu comprei a casa por 100 mil euros há 10 anos e que agora esse imóvel tem um valor de mercado de 200 mil euros. Entretanto, imagine que eu agora resolvo viver na casa que estava em AL. Que eu estava, por exemplo, no exterior a trabalhar e a empresa despediu-me, eu regressei ao país e quero viver nessa casa que era minha e que estava em AL. Eu vou ter que pagar dezenas de milhares de euros como se tivesse vendido a casa e ainda por cima num imóvel com uma valorização de mercado porque o mercado esteve a subir de forma significativa nestes últimos anos… Ou seja, é um valor que é pago só por se desistir da atividade. E é por isso que a migração está muito bloqueada… Pode haver gente que está querendo fazer algum tipo de migração, seja para arrendar, seja para uso próprio, seja até temporariamente desistir do AL por causa do Covid e qualquer uma dessas situações pode significar a sujeição a pagar uma mais-valia de milhares ou dezenas de milhares de euros! Portanto, é uma verdadeira prisão ao AL e numa época de crise absoluta.
Já fizeram chegar ao Governo esta vossa contestação. Já tiveram respostas a estas questões?
Essa questão é tão surreal e contraproducente que todas as pessoas com quem falámos concordaram que é uma situação absurda, incluindo o próprio Governo. Esse assunto já foi levado à Secretaria de Estado do Turismo, a Secretaria de Estado da Habitação, já foi discutida com o ministro da Economia nas reuniões do Turismo e até já chegou ao Primeiro-Ministro. Ele próprio disse que era uma coisa que realmente se tinha de se resolver.. Isso foi há dois ou três meses… Já falámos quatro ou cinco vezes com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais… Nós não entendemos como é que em época de crise, quando o próprio Governo diz que é saudável que haja uma migração do alojamento local para o arrendamento (porque estamos em crise e satisfaz todos os interesses), existe esta barreira que está a impedir que algo aconteça. Não sei se é uma questão de simples inércia ou se existe pressão política.
As parcerias com as autarquias de Lisboa e do Porto não poderiam ser uma solução?
O programa Renda Segura diz que se eu estiver cinco anos consecutivos em arrendamento recebo isenção… O que é que isso significa? Significa que eu tenho que ficar cinco anos consecutivos neste regime e nada pode dar errado pelo meio. E se daqui a três ou quatro anos alguém altera a lei e diz que já não são cinco, mas dez anos? Como é que eu vou fazer um acordo, mesmo que seja com um município, e deixo-me ficar nas mãos do Estado, do Governo e do Parlamento, que já mudaram várias vezes a lei fiscal, quase todas elas bastante prejudiciais para o alojamento local? Quem vai confiar que daqui a quatro anos não mudam a lei?
Muitos proprietários estão a virar-se para o mercado de estudantes universitários…
Sim , mas também aqui há uma lacuna na lei, que temos de resolver – a lei não permite suspensões no registo de AL. Imagine que eu parei durante um ano ou por seis ou sete meses para acolher estudantes. Eu posso ter uma fiscalização e não está claro na lei que nesse período a casa tenha ou não de se manter adequada a AL quando na verdade tenho lá inquilinos durante 4, 5, 6 meses… Portanto, há aqui uma lacuna que estamos a tentar resolver de forma a permitir a suspensão temporária dos registos. Assim quem queira experimentar outras atividades como o arrendamento, ou o uso próprio, às vezes até para obras de melhorias, ou porque simplesmente não quer (tendo em conta a pandemia), deveria poder suspender temporariamente o registo.
Terminado o verão, o mercado nacional conseguiu minimizar o impacto negativo da pandemia em zonas como o Algarve ou o interior?
O segmento sol e praia (onde o Algarve domina) sofreu uma quebra importante, mas agora em agosto, como é natural com o pico do Verão, sentiu um alívio mesmo estando limitado ao mercado nacional. Ainda assim estamos a falar de ocupações de 50 e 70%, mas com ajustes de preço porque o mercado nacional não tem o mesmo poder de compra do mercado internacional. Em termos práticos, no mês de agosto que foi e é sempre o melhor mês, estamos a falar de quebras de 50%, 60% não na ocupação, mas na faturação. Portanto, estão a trabalhar com 40% do que era a faturação, num mês que deveria servir para criar almofada para o resto do ano.
Lisboa e Porto são os mercados mais atingidos, mais até Lisboa do que o Porto, pois o Porto ainda tem alguma ligação de proximidade com a Espanha, o Porto tem situação mais vantajosa em termos de portas aéreas, foi menos afectado com a TAP, tem outras companhias alternativas, já Lisboa foi muito afetada com a TAP e também com a situação da pandemia, teve muita repercussão nos noticiários lá fora. Em Lisboa estamos a falar de quebras de faturação na ordem dos 80%, 90%.
Falou há pouco da questão dos valores das estadias que se ajustaram forçosamente ao mercado nacional. Estamos a falar de que ordem de valores em termos de descontos?
Os descontos aconteceram nos destinos de Verão e em alguns segmentos como o dos apartamentos. Estamos a falar de algo em torno dos 20% nos destinos de Verão.
Em Lisboa e no Porto a questão não é preço, é mesmo a falta de clientes. Os poucos que aparecem, os tais 10, 15 ou 20%, são, acima de tudo, casais mais jovens ou amigos também de uma faixa mais jovem. Há um receio maior das pessoas de mais idade e casais com crianças em viajar. Os mais jovens estão a reagir primeiro pois têm menos receio. Basta dizer que em Lisboa, os hostels estão entre os primeiros a registar algum movimento. Tudo o que é direcionado para a família, em Lisboa e Porto, teve quase uma paralisia.
Depois, houve também uma procura razoavelmente grande para moradias, propriedades que estão um pouco mais isoladas, quase uma extensão do confinamento, onde fosse possível garantir menos convivência social.
Em que zonas, especificamente?
Houve uma procura por propriedades mais afastadas dos grandes centros, no Douro, Centro, Costa Vicentina, Alentejo, interior do Algarve. E é interessante ver que os portugueses estão a descobrir destinos que habitualmente eram mais procurados por estrangeiros. As novas aberturas de alojamento local que tivemos em julho e agosto, 40% foram fora de Faro, Lisboa e Porto.
E quantas foram nesse período?
Tivemos 2300 aberturas em agosto a nível nacional, mas com um peso pequeno em Lisboa (87) e Porto (270). Depois, há mais 40% no Algarve… O que significa que metade das aberturas saíu do circuito mais tradicional das aberturas do AL. Isto é uma transformação importante. Nesta altura do ano, os destinos tradicionais representariam cerca de 70 a 80% das aberturas. Por exemplo, Lisboa cidade registou 87 aberturas e fora de Lisboa, no distrito, somaram-se mais 238. É a primeira vez que isto acontece. No Porto aconteceu o mesmo. O que é bom e saudável. É muito provável que seja gente que já tinha uma casa de férias no interior e achou que a altura era interessante para fazer a abertura dessas casas, aproveitando o interesse maior por este tipo de oferta – casas mais isoladas no interior, nas aldeias, etc…
Tem uma estimativa do número de pessoas que já deixaram esta atividade desde que começou a pandemia?
O setor tem cerca de 55 mil pessoas a nível nacional, entre particulares e micro-empresas, que dependem hoje do AL como fonte principal ou uma parte muito importante do seu rendimento. Todas essas famílias estão sendo afetadas, tirando algumas exceções com é o caso das pessoas que têm propriedades do interior, por exemplo, mas essas representam não mais de 4 ou 5%. Portanto, a maior parte das famílias está numa situação muito complicada.
E depois existe toda uma panóplia de fornecedores, prestadores de serviços em volta, o pessoal da limpeza, quem fazia os serviços de check in e check out (e que nos centros urbanos eram importantíssimos), enfim, tudo isso está parado. O AL conseguia dar-lhes rendimento e para alguns esse era mesmo o único rendimento que tinham. Portanto, estamos s falar de milhares de pessoas em vários pontos do país, de uma diversidade enorme, desde jovens a pessoas já mais maduras. E é ainda importante lembrar que um turista quando vem para cá gasta 25% no alojamento, depois tem outros 25% em transportes e os outros 50% é gasto em restaurantes, centros comerciais, museus, lojas, actividades culturais, animação turística… Tudo isso está paralisado, é um efeito gigantesco na economia… Estimamos que desses 55 mil cerca de 50 mil estão a passar por uma situação bastante difícil, com quebras de 70% ou 80% no seu rendimento.
Com as cidades vazias e com o impacto económico que acabou de referir, o que diria a quem diabolizou o turismo?
Não sou a favor de criar mais polémica e conflitualidade num momento que já é difícil, mas acho que isso mostra o quão superficial e cego era esse discurso. Nós temos uma vocação natural para o Turismo. O Turismo foi aquilo que deu certo no país. Portugal não ganhou por preço nos últimos anos, ganhou porque é um destino de topo. E Portugal foi um dos poucos países que conseguiu abraçar o AL como uma tendência turística e enquadrá-lo na legislação, na regulamentação fiscal, trazê-lo para a legalidade, criar postos de trabalho, pagar impostos – foi o sector que mais cresceu em termos de impostos – portanto até reagiu de uma forma inovadora e inteligente, apesar de todas as guerrinhas internas. Sim, havia algumas questões para se corrigir, mas as pessoas confundem gerir e corrigir situações pontuais com querer destruir o sector. Isso fazia parte de um debate muito polarizado, muito ideológico, muito radicalizado onde as pessoas se tornam cegas, onde não há soluções inteligentes. Portugal tem todas as condições para ser líder em AL e noutras áreas do Turismo. Este é um setor que deu certo!
Que apoios necessita o setor para conseguir resistir à pandemia?
O layoff, numa primeira fase e para as estruturas mais profissionais, foi a salvação. Mas agora, olhando para o futuro, diria que vão ser necessárias mais intervenções e mais profundas. O novo lay off não se adapta ao Turismo porque trabalha em contraciclo com a sazonalidade do setor, ou seja, esta retoma progressiva pressupõe que a atividade vai retomar positivamente mas estamos num setor que ao entrar nos meses de Inverno e com a falta de movimentação turística, vai ser um dos mais penalizados por esta crise. Aliás, o que nós estamos a ver é que muitos não estão a optar pela continuidade do layoff. E isso não é um bom sinal. É sinal de que fizeram as contas e que vão ter que tomar medidas mais drásticas porque o layoff não é suficiente.
A segunda dimensão é a questão dos apoios. Com o aprofundar da crise – estamos a falar de uma crise que vai demorar nove meses ou um ano no setor do Turismo – é impossível a continuidade da atividade através de empréstimos, ficaríamos endividados até ao final da vida! Esperamos que os novos apoios tenham uma componente a fundo perdido.
E o terceiro ponto é a questão da segurança social e a forma de garantir que os empresários em nome individual do nosso setor não sejam excluídos e recebam esse apoio.