Do emprego à saúde, da administração pública às empresas, a Inteligência Artificial (IA) está a provocar uma revolução tecnológica que “terá um impacto transversal em toda a sociedade”, diz Diogo Miranda, manager da LTPlabs, consultora para a Inteligência Artificial, e professor na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.
Segundo este especialista, existem profissões que poderão “deixar de existir ou perder alguma relevância” sobretudo as que estão associadas a tarefas mais repetitivas, mas, em contrapartida, outras irão ser criadas, em especial em áreas de supervisão da própria Inteligência Artificial. Na sua opinião, o sistema de ensino deveria começar desde já a lidar com esta nova realidade. Pelo trabalho que tem desenvolvido, Diogo Miranda admite que em Portugal o grande problema para acelerar a adoção da IA é a escassez de capital, sobretudo nas empresas de menor dimensão.
A IA está neste momento ao alcance de todos e promete mudar a sociedade tal como a conhecemos. Estamos perante a maior revolução tecnológica da História da Humanidade?
É difícil fazer essa análise. No entanto, posso dizer que, na minha opinião, a revolução provocada pela internet, pela world wide web, foi mais transformacional para a sociedade.
Porquê?
Porque foi uma tecnologia totalmente disruptiva face ao que existia anteriormente. Deu-nos um veículo novo para obter informação, a qualquer momento e em qualquer lugar.
A IA não é tão transformadora como a internet?
Não quero minorar o aspeto revolucionário que temos vindo a assistir ao longo dos últimos anos, mas, do ponto de vista tecnológico, o salto anterior foi maior, porque estávamos num estado mais embrionário. A IA consegue compilar e integrar a informação já existente, revolucionando a forma como interagimos com ela. E, desse ponto de vista, poderá mudar muito mais os nossos hábitos do dia a dia do que o que fez a internet.
Mas os seus efeitos afetarão toda a sociedade?
Sim. Disso não há dúvida. Algumas atividades poderão ser mais afetadas do que outras, mas será uma mudança transversal. Há profissões que poderão deixar de existir ou perder alguma relevância, mas, em contrapartida, outras irão ganhar maior protagonismo. Estamos a assistir a uma mudança da forma como as empresas interagem com os seus clientes e até com as outras empresas.
Esta será uma transformação rápida ou será prolongada no tempo?
Acho que vamos ter uma curva mais acentuada, agora no início, que tenderá a desvanecer-se ao longo dos anos.
Porquê?
Porque agora tudo é novidade. As pessoas estão a perceber como podem integrar esta nova tecnologia nas suas atividades, mas, com base no que conhecemos atualmente, a disrupção poderá ser um pouco atenuada daqui para a frente. A não ser que surja, entretanto, uma grande novidade que permita dar um novo salto tecnológico.
Agora que falou nisso, tudo parece indicar que esse salto não será assim tão grande. Basta ver a relativa desilusão que foi o lançamento do ChatGPT-5, do qual se esperava grandes novidades…
Isso acontece porque a expectativa das pessoas em relação à IA está muito elevada. Ao princípio respondia a meia dúzia de perguntas, depois permitiu a colocação de imagens, a partilha de ficheiros e foi mudando a forma como interagimos com ela. A partir de agora, que já temos estes elementos todos, fica mais difícil dar um salto grande para uma progressão seguinte. Além disso, não podemos esquecer-nos de que muitas das evoluções na IA poderão não ser notórias para o utilizador comum, mas poderão ser muito úteis para algumas aplicações ou para a forma como as empresas usam esta tecnologia.
Por falar em expectativas elevadas, Sam Altman, CEO da Open AI, criadora do ChatGPT, admitiu recentemente que existe uma “excitação exacerbada” em relação à IA. Na sua opinião, existe uma bolha?
Acredito que sim. É aquele efeito “uau!”, quando surge uma coisa muito disruptiva que as pessoas acham que vai resolver os problemas todos da Humanidade. Criou-se uma expectativa muito elevada. Há algumas aplicações que são efetivamente muito transformacionais. Creio que, à medida que tudo isto vai evoluindo, vamos reparar que há coisas em que a IA não traz melhorias assim tão grandes. Esta tecnologia pode ajudar, mas, por si só, não irá resolver tudo.
Já se consegue perceber os principais impactos que a IA terá na transformação da sociedade, ou ainda é cedo?
Se falarmos num sentido mais global da sociedade, acredito que ainda seja um bocadinho cedo. No entanto, há algumas áreas onde a transformação é já notória.
Como, por exemplo…?
Na área da saúde estamos a assistir a uma mudança mais rápida, porque a IA é complementar à tecnologia que já estava a ser desenvolvida. Noutras áreas, acredito que possa demorar mais tempo, desde logo na educação.
Por alguma razão em especial?
Ainda existe uma grande incerteza sobre a forma como o sistema de ensino irá lidar com esta tecnologia. Creio que muitos docentes consideram que o seu uso é quase uma “batota”. Na minha opinião, deveríamos tentar moldar o ensino para proporcionar a utilização da Inteligência Artificial como uma nova ferramenta facilitadora, tal como aconteceu com a calculadora.
Deve ser vista como um instrumento de apoio a educação?
Tal como aconteceu com os computadores quando foram integrados nas atividades de ensino. Temos de ensinar aos jovens a melhor forma de utilizar a tecnologia como uma ferramenta facilitadora e não como uma solucionadora. Assim podemos manter a capacidade cognitiva e o pensamento crítico usando a IA. Caso contrário, é quase como continuar a fazer cálculos complicados sem usar a calculadora. É o mesmo com a IA. Porque é que eu hei de andar a procurar imensas fontes quando posso, com duas ou três perguntas, fazer um apanhado de toda essa informação de que necessito?
Deveria haver uma formação logo a partir da escola para que as novas gerações aprendam a lidar com a Inteligência Artificial?
O que defendo é que, do ponto de vista educacional, não podemos vê-la como um inimigo. Há uma clara diferença comportamental na forma como os mais jovens usam a IA, porque parte do seu ensino já aconteceu com esta tecnologia disponível.
Ao longo dos tempos, as grandes revoluções tecnológicas reproduziam os processos produtivos, o que resultava na redução dos empregos menos qualificados. A IA por seu turno, tenta replicar o raciocínio humano. Isto quer dizer que os empregos que requerem mais qualificações também estão ameaçados ?
Um estudo recente, feito com base em inquéritos, admitia que as profissões mais em risco com esta tecnologia eram as mais qualificadas. Achei uma perspetiva interessante e, de certa forma, até concordo. Mas não sou tão extremista. Creio que há posições qualificadas que podem estar seriamente em risco.
Serão substituídas pela IA?
Não serão substituídas na totalidade, mas algumas pessoas vão ter de fazer uma mudança para outro tipo de trabalho onde, efetivamente, acrescentem valor.
Nalgum tipo de profissão em especial?
Isto acontecerá essencialmente em funções que exercem tarefas mais repetitivas. Mas não quer dizer que as menos qualificadas não serão também atingidas. Desde logo, em funções como, por exemplo, de atendimento ao cliente, onde já existe muita tecnologia focada em substituir esse trabalho por IA.
Mas, em contrapartida, outras profissões poderão ser criadas com a massificação da IA?
Sim, talvez não tanto novas profissões, mas mais empregos em determinadas funções. E uma das áreas onde irá surgir é na supervisão destes próprios algoritmos.
Pode explicar?
Por exemplo, uma pessoa que estava no atendimento ao cliente e que perdeu o seu lugar pode agora passar a supervisionar aquilo que os modelos de IA estão a fazer nesse mesmo atendimento. Esta será uma função onde iremos possivelmente assistir a uma grande requalificação de postos de trabalho.
Nos últimos três anos, as grandes empresas tecnológicas entraram numa onda de despedimentos sem precedentes, justificando-os com a IA. Mas muitos desses layoffs não estão a ser feitos devido à sobrecontratação que foi feita na altura da Covid-19?
Acho que existem as duas razões. Por um lado, houve um excesso de recrutamento nessa altura e as empresas começaram a perceber que tinham pessoas a mais e, por outro, a IA começou a reproduzir processos que agora já não precisam de apoio humano. Se daqui para a frente continuarmos a ver essa redução de pessoal, aí poderemos concluir que os despedimentos se devem ao facto de as empresas estarem a conseguir tirar o melhor partido da IA para automatizar os seus processos.
Uma vez que está no terreno, junto com o tecido empresarial e com a administração pública, como é que está a ser a adoção desta tecnologia em Portugal?
Sinto que existe muita vontade por parte dos decisores, mas falta capital para proporcionar esse investimento de forma mais célere. No caso das empresas, temos duas realidades: existem as que estão a proceder bem na forma como integram esta nova tecnologia nos seus processos e as que estão a investir na IA porque está na moda, apesar de não conseguirem extrair qualquer valor acrescentado.
Quer dizer que muitas delas estão a usar a IA de forma errada?
Existe uma quantidade considerável de situações em que a solução que está a ser usada não é a mais adequada. Há empresas que têm orçamento específico para a IA e têm de usar esse dinheiro e, por vezes, tomam decisões erradas que não acrescentam valor. Tenho visto muitos casos destes. Na LTPlabs temos tido um papel quase de evangelizador em relação à IA, demonstrando quais os melhores caminhos a seguir para atingir um determinado objetivo.
A adoção da IA está a acontecer nas grandes empresas ou está também a chegar às pequenas, que representam mais de 90% do nosso tecido empresarial?
As pequenas e muitas das médias empresas enfrentam um grande desafio quando querem aplicar esta tecnologia. Na maioria das vezes, a sua estrutura e os seus processos são bastante elementares para alimentar estes motores de Inteligência Artificial. Ou seja, se a empresa não tiver a informação bem estruturada, se não tiver os dados bem consolidados, esta tecnologia não pode ser usada no dia a dia. E existem ainda os casos de empresas que são tão pequenas e com processos tão simples que o valor acrescentado que a IA poderia proporcionar não é significativo.
Mas nas grandes empresas o avanço está a ser maior?
Sim. Existe uma maior disponibilidade de capital e, como têm mais postos de trabalho, as reestruturações proporcionadas pela IA são mais relevantes do ponto de vista financeiro.
Mas isso poderá criar uma ainda maior clivagem entre grandes e pequenas empresas?
As pequenas empresas estão mais focadas em sobreviver ou em escalar um pouco mais o seu negócio. As grandes preocupam-se em conseguir formas de crescer num curto espaço de tempo e olham para esta tecnologia como uma nova ferramenta que lhes permitirá dar esse salto mais rapidamente.
Na sua perceção, os resultados das empresas que integraram mais cedo estes novos processos já são visíveis?
Nos casos em que esta tecnologia foi bem aplicada, os resultados são bons. Um dos maiores focos do uso da Inteligência Artificial, por parte das empresas, tem sido a interação com os seus clientes. E, nessa perspetiva, o resultado, de uma forma geral, é muito positivo, pois os problemas estão a ser resolvidos mais rapidamente do que acontecia com os processos anteriores. Mas as pessoas têm de estar conscientes de que a IA não vai resolver tudo. Em muitos casos, teremos investimentos que não produzirão os resultados esperados.
Nesta primeira fase, quais as tarefas que estão a ser substituídas nas empresas?
Essencialmente, aquelas de maior repetição, nas quais o ser humano não está, com a sua capacidade cognitiva, a acrescentar valor. Por exemplo, no apoio ao cliente, como falámos atrás, a IA já consegue, na primeira fase da interação, resolver praticamente tudo.
E como é que a tecnologia gere os casos mais complexos?
O próprio sistema direciona para a intervenção humana.
Isso quer dizer que estamos ainda na primeira fase da revolução da Inteligência Artificial?
Podemos dizer que estamos na franja mais fácil da resolução dos problemas. O grande desafio será quando passarmos para a resolução de processos mais complexos sem a intervenção humana.
E na administração pública, quer central, quer local, já estão a ser dados passos para que a tecnologia seja usada ao serviço das populações?
Sim, mas ainda são passos pequenos. Existe uma consciencialização por parte da administração pública de que existe uma tecnologia que pode ajudar, mas são áreas da sociedade que são difíceis de mudar de um dia para o outro.
Porquê?
Porque têm uma estrutura muito consolidada. Mudar um simples processo, apesar de parecer uma tarefa simples, pode implicar muitas interações e envolver várias entidades. Não é fácil.
Mas a administração pública tem muitas das chamadas tarefas repetitivas, ou seja, é um campo fértil para que a IA possa ser usada para melhorar o serviço ao cidadão?
Sim. Existem muitas tarefas que poderiam beneficiar bastante desta tecnologia. Mas depois podemos estar a criar outro problema. A substituição das pessoas poderia levar ao despedimento ou à deslocação para outros trabalhos, o que obrigaria a ter um esforço de formação para requalificar esses quadros públicos para poderem executar outro tipo de função. Acho que essa é uma das principais razões de não estarmos a assistir a uma maior disrupção na administração pública. No seu conjunto, é um processo muito desafiante.
Mas a LTPlabs tem estado a trabalhar com o poder autárquico em matéria de Inteligência Artificial. Criaram o programa LEME, com a Câmara Municipal do Porto, e o Vitral, com a de Braga. Em que consistem estes projetos?
Estas autarquias perceberam que havia muita informação sobre o seu município que estava espalhada por vários departamentos e, sem essa informação compilada, por vezes as tomadas de decisão poderiam não ser as melhores. E o desafio que nos lançaram foi o de consolidar toda a informação disponível existente, quer produzida pelo próprio município, quer por fontes externas, numa única plataforma. Desse modo, os decisores conseguem ter uma melhor perceção de como está a evoluir a autarquia nos vários planos, económico, saúde, turismo, habitação, etc. Permite ainda perceber as diferenças entre os vários concelhos, de faixas etárias, atividades profissionais, entre outras, para ter mais e melhor informação para as tomadas de decisão.
Tanto a câmara do Porto como a de Braga perceberam o valor acrescentado deste trabalho. Foi, para nós, um desafio muito interessante, bastante diferente daquilo que estávamos habituados a fazer.
Qual o futuro da Inteligência Artificial?
Em primeiro lugar, devo dizer que, na minha opinião, terá de existir um trade-off, ou seja, terá de ser estabelecido um compromisso entre o que se investe em IA e o retorno que vamos obter desse investimento. Se toda a gente começar a apostar nesta tecnologia a um ritmo frenético, o mundo vai precisar de uma infraestrutura muito superior à que existe atualmente para fazer face a toda essa utilização. Agora, do ponto de vista das empresas, aquelas que já tiveram a oportunidade de conseguir investir nesta tecnologia resolveram alguns dos seus problemas, mas, como disse anteriormente, apenas estão na franja mais fácil. Os desafios reais começam na tentativa de solucionar as camadas seguintes. E aí pode surgir um sentimento de desapontamento com uma tecnologia que já resolveu um problema, mas não consegue solucionar os seguintes.
E para o cidadão comum?
Acho que teremos de ser nós, cada um de nós, a perceber como é que esta tecnologia nos ajuda e como pode prejudicar-nos. E dou um exemplo: fui de férias e usei a IA como guia para conhecer uma cidade. Foi uma interação muito prática, simples e eficaz. No entanto, senti que perdi um pouco o lado humano da experiência de pesquisar e analisar o percurso. E acho que isso é algo que não deveríamos descurar. Temos de preservar este lado humano para garantir que daqui a uns anos o conteúdo não é todo gerado artificialmente.