“Nas gerações mais jovens, continuam a existir fortes expetativas ligadas à aparência. Basta ver o estilo rígido das expressões nas selfies”

Foto: Tom Oldham

“Nas gerações mais jovens, continuam a existir fortes expetativas ligadas à aparência. Basta ver o estilo rígido das expressões nas selfies”

Quem nunca se questionou se o seu corpo, a forma de pensar, de sentir ou de comportar-se é “normal” que atire a primeira pedra. Houve um tempo em que o “novo normal” andava nas bocas do mundo, para logo se falar em “normalizar” tudo e mais alguma coisa. Desde adolescente que Sarah Chaney sonhava em ser como as outras pessoas; a normalidade era um mundo estranho até ao dia em que a jovem adulta decidiu mergulhar no tema a fundo. Os estudos académicos levaram-na a descobrir a origem de uma obsessão que já dura há dois séculos e que partiu dos conceitos da matemática e da geometria, transpostos para os comportamentos humanos.

Aos 30 anos, a também gestora de exposições e eventos no Royal College of Nursing defende que o culto da norma é uma abstração com pés de barro e frequentemente colocada ao serviço de ideais que são, no mínimo, questionáveis. No livro As Pessoas Normais Não Existem ‒ A Obsessão pela Normalidade e por que Razão Ela não Existe (Presença, 303 págs., €19,90), a autora explica a razão do fascínio pelas medidas e testes, lançando alguma luz sobre um mito que nos influencia mais do que estamos prontos a admitir.

Este é o seu segundo livro. Após dissecar o tema da automutilação (Psyche on the Skin: a History of Self-Harm), explora o conceito da normalidade. O que motivou estas escolhas? 
O estudo da automutilação deveu-se a experiências pessoais que tive enquanto adolescente e jovem adulta e à necessidade de questionar ideias e atitudes que continuam a ser difundidas. Ainda não há muito tempo, a filha de uma amiga foi ao médico e ele, dando-se conta do comportamento autolesivo, comentou, de forma paternalista: “Porque é que fazes isso a ti mesma, sendo uma menina tão bonita?” O problema centra-se na aparência, sem reconhecer o que possa estar além dela. Explorei a história da psiquiatria e da saúde mental com base em registos hospitalares e, nos formulários de admissão, havia perguntas sobre a inclinação para a automutilação ou o suicídio. Estas evidências provam que o tema não se circunscreve aos anos 1980 e 1990, pois eram já conhecidas na era vitoriana. Costumam perguntar-me se este comportamento ocorria maioritariamente no feminino, mas, curiosamente, estas questões colocavam-se com mais frequência nos homens, que faziam cortes na pele, mas raramente o mencionavam.

O que concluiu sobre isso, uma vez que admite que a questão não se resume ao plano individual?
As ideias sobre os comportamentos autolesivos que eram difundidas pelos médicos no final do século XIX remetem para a castração. Na altura, presumia-se que essa prática era muito comum, mas os poucos registos encontrados permitiram apurar que eles foram inflacionados, já que não existiram assim tantos casos em rapazes e homens.

Que razões podem ter levado a isso?
Havia as questões sobre a masculinidade que estavam a mudar nessa altura, com preocupações médicas relativamente aos homens da classe média, a transitarem de profissões com uma componente mais física e manual para funções administrativas, em ambiente de escritório. No meio clínico, dominavam os receios em torno da masturbação, que ameaçava tornar os homens efeminados e levantava preocupações sobre a homossexualidade, que era ilegal. Era esta a visão, tornou-se proeminente nos círculos médicos: a Humanidade estava a degenerar e o foco de preocupação foi deslocado para os homens.

Porque abre cada capítulo do seu novo livro com um detalhe autobiográfico, descrevendo a sensação de estranheza de não ser como os outros?
Quando se fala destes assuntos numa perspetiva histórica, as pessoas tendem a questionar como é que aquilo que aconteceu há 200 anos pode relacionar-se com as suas vidas. É possível que pensem que se trata de algo muito distante, que pouco ou nada tenha que ver com elas. Quis remover essa barreira e optei por falar das implicações, na minha própria vida, de ideias do passado que hoje continuam a preocupar-nos e a influenciar os nossos comportamentos ou o que os outros possam esperar de nós.

Refere-se a coisas como a ideia de ser um patinho feio na escola ou o receio de ser alvo de bullying por ter determinada característica ou aparência?
Sim. Nas gerações mais jovens, continuam a existir fortes expetativas ligadas à aparência. Basta ver o tempo que passam no YouTube ou no TikTok, a fazer ou a visualizar tutoriais sobre maquilhagem, a fim de se parecerem com figuras que tomam como modelos, ou o estilo rígido das poses e expressões nas selfies que publicam. As redes sociais, que seriam uma via para abrir horizontes e partilhar uma gama de experiências e formas de estar, parecem ter o efeito oposto.

Estamos mais obcecados em corresponder a um ideal ou norma do que no passado? 
Hoje, questionam-se as expetativas sobre o que é isso de ser normal, mas menos do que entre 1950 e 1970. Na minha investigação constatei que houve muito debate nessa época. Por exemplo, nos textos médicos levantaram-se muitas dúvidas acerca do que deveria ser, ou não, entendido como normal. O mesmo se aplica aos livros sobre a infância e a parentalidade, mas aí os estudos não foram conclusivos.

Curiosamente, os jovens pais parecem mais informados mas menos seguros. Isto não é um tanto ou quanto contraditório?
Essa insegurança começou bem mais cedo do que se pensa, por volta dos anos 1930. Uma das pessoas com quem trabalho, no Queen Mary Centre for the History of Emotions, descobriu que nessa altura já era notório o progressivo aumento das orientações e expetativas depositadas nos pais. Essa tendência acentuou-se nas décadas seguintes, da mesma forma que o medo partilhado em certos círculos de pais por conta das teorias dos especialistas.

Pode dar um exemplo dessas teorias?
Na altura, emergiram os modelos da vinculação a partir de estudos na área da Psicologia, sugerindo que a ausência de experiências de ligação afetiva nos primeiros anos de vida dos filhos teria consequências nefastas nas suas vidas, quando atingissem a idade adulta.

O que significa ser normal e como é que a evolução do conceito tem impactado as nossas vidas?
Mergulhei no tema da normalidade porque ele esteve presente ao longo de grande parte da minha juventude. Foram muitas as vezes em que me perguntei “porque é que não consigo ser normal?”, sem interrogar o significado disso. A análise histórica de registos médicos permitiu-me perceber que o normal era definido pela sua ausência. Partia-se daquilo que não era comum e o normal era o que sobrava. Por isso, o conceito baseava-se em suposições.

É de admitir, então, que as suposições são a fonte de muitos sarilhos?
[Risos.] Na verdade, é um bocado mais sinistro do que isso. Com frequência, o normal é aquilo que os especialistas definem, estendendo esse padrão a terceiros. Muitas vezes, significa ser de raça branca e pertencer à classe média no mundo ocidental.

Fala do célebre acrónimo WEIRD (Western, Educated, Industrialized, Rich and Democratic), que cita em artigos científicos no livro?
Essa sigla é mais recente e foi proposta por alguns cientistas para descrever como boa parte dos estudos, sobretudo na Psicologia e na Medicina, se centram em determinado perfil de pessoas.

Qual a pertinência de indicadores que atestam se alguém tem peso a mais (Índice de Massa Corporal, IMC), é emocionalmente equilibrado, sexualmente são ou suficientemente inteligente, por exemplo?
No caso do IMC ou dos níveis médios da pressão arterial, eram usados no início do século XX nas seguradoras norte-americanas. Criou-se, nas classes média e alta – que tinham seguros – uma expetativa sobre o que era desejável ou saudável, e esses pressupostos, ou preconceitos, eram aplicados à generalidade da população. Os estudos com o intuito de encontrar o “homem médio” usavam amostras enviesadas.

Quem não encaixasse nesse ideal que resultava de cálculos, matemáticos ou estatísticos, era – ou ainda é – excluído?
Isso verificou-se num estudo que recolheu as medidas físicas de milhares de norte-americanos para encontrar a mulher e o homem típicos. Na sua maioria, elas eram caucasianas e com idades entre os 18 e os 25 anos. As estátuas que daí resultaram, Norma e Normman [concebidas pelo sexólogo Robert L. Dickinson e o escultor Abram Belskie, e doadas ao Museu da Saúde de Cleveland, nos Estados Unidos da América, em 1945], criaram a expetativa de que ter aquelas medidas era não a média mas o ideal de homem e de mulher. Isso excluía quem ficasse fora do padrão no qual se esperava que todos encaixassem num contexto cultural.

Quando se fala de padrões do “homem médio”, em que medida é que podem causar dano? 
Do ponto de vista científico, o foco era a população e não os indivíduos. No início do século XX, ficou claro como a criação de padrões normativos justificou o colonialismo e a emergência de políticas que definiam, por exemplo, quem podia, ou não, ter filhos, através das leis de esterilização nos EUA.

Tentar encaixar-se é algo muito enraizado: se for a uma loja de roupa experimentar uns jeans e vir que o seu tamanho não serve, tende a pensar que o problema é do corpo, não das medidas padronizadas

No limite, que utilidade tinham esses padrões, sem margem para a singularidade?
Na Europa Ocidental, estes estudos científicos em torno da normalidade serviram para difundir e legitimar a visão de uma hierarquia civilizacional.

Também era assim nas esferas emocional e social? Há um século, falava-se de histeria, mas também da fleuma no trato, sobretudo na cultura britânica. 
Os estudos de Thomas Dickson, por volta de 1840, mostraram que as emoções fortes eram para ser expressas, como chorar após receber uma má notícia ou por estar em stresse, mas depois isso mudou e a contenção emocional passou a ser considerada um comportamento civilizado. Essa noção parece vigorar ainda hoje na Grã-Bretanha.

A internet e a globalização poderiam contribuir para a diversidade e, contudo, parece haver uma estandardização crescente dos hábitos e costumes. Que leitura faz disso?
Embora as pessoas tenham ficado mais despertas para experiências, opiniões e expetativas diferentes, também se tornaram, em certa medida, mais lineares. Por exemplo, sabemos que existem várias formas de experienciar a mesma coisa, mas isso não significa que não se caia num pensamento dicotómico e que tem que ver com a forma como a sociedade funciona. Imagine o caso de uma criança neurodivergente: numa cultura menos medicalizada, o sistema educativo poderia ir ao encontro dessas necessidades sociais. Porém, para obter apoio estatal vai precisar de um diagnóstico e de um plano de tratamento específico.

Em que medida é que o mito do normal pode interferir nas políticas dos serviços de saúde públicos?
Pegando novamente no IMC, este indicador deixou recentemente de ser tão decisivo face a outras formas de avaliar o estado de saúde. Reconheceu-se que alguém pode estar na categoria de obeso, ter um risco mais elevado de desenvolver certas doenças e, apesar disso, ser saudável.

Alguma vez precisou de derrubar narrativas enviesadas que se revelaram problemáticas nas suas áreas de estudo?  
No caso da normalidade, não, mas no ativismo em torno dos comportamentos autolesivos, sim. Aconteceu quando foi proposta uma lei para criminalizar a partilha de informações nas redes sociais. Havia o risco de encorajar a automutilação ou incentivar o suicídio, mas, ao mesmo tempo, os adolescentes que falavam disso online, para procurar informação ou apoio e compreender melhor a sua saúde mental, também podiam ser criminalizados. É muito comum apontar o dedo às redes sociais, mas falta ver outros lados da questão.

Qual é o impacto da quantificação da vida na construção da identidade?
Apesar de muitos de nós questionarem as ideias de média e de normalidade, tentar encaixar-se é algo muito enraizado: se for a uma loja de roupa experimentar uns jeans e vir que o seu tamanho não serve, tende a pensar que o problema é do corpo, não das medidas padronizadas. Passa-se o mesmo que no caso da norma, fruto de uma média que passou a ser vista como uma medida universal.

No livro, fala do concurso feito por um jornal local, em que só 1% das candidatas se aproximava das medidas de norma. O que pode dizer sobre a clivagem entre corpo real e ideal, como o da Mulher-Maravilha? 
É fascinante pensar que o psicólogo que a criou [William Moulton Marston, nos anos 1920, quando já era célebre por inventar o polígrafo] tinha uma visão singular que não correspondia aos seus atos. Ele achava que as pessoas deviam evitar as emoções negativas por não serem normais. O caminho era promover as positivas, que advogava serem típicas das mulheres. Embora defendesse os ideais feministas, o criador da Mulher-Maravilha tinha acessos de raiva e ciúme, vivia com duas mulheres a quem passava as tarefas do lar e apoderou-se das ideias e do trabalho delas. Porém, o psicólogo via nessa figura a líder harmoniosa, capaz de resolver os conflitos do mundo causados pelos congéneres do sexo masculino.

Como encara os artigos do tipo “cinco formas de …” ou os livros com o subtítulo “para totós”, ou seja, pessoas normais?
Sim, é comum, sobretudo nos tabloides, partir do princípio de que é assim que se escreve para leigos, sem ter em conta em que medida é que isso se converte naquilo que as pessoas comuns se habituam a ler, o que não deixa de ser uma profecia autorrealizável.

Ser refém da normalidade pode converter-nos em normopatas, incapazes de pensar e de sentir como humanos?
Uma das coisas que mais me intriga é quão facilmente somos enganados por líderes que nos dizem que os nossos problemas se devem a um grupo específico, sendo nós os normais e eles não. Isso conduziu à eugenia [alusão ao cientista vitoriano Francis Galton, também conhecido pela “distribuição normal”] e outros fenómenos sombrios. Se me perguntassem, quando estava a escrever o livro, se era possível acontecer o que temos visto nos EUA, a minha resposta era não. Estava longe de pensar que coisas como a lei do aborto mudassem, o que mostra como são frágeis os nossos direitos e expetativas.

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