Há cerca de 15 anos, Mariana Albuquerque Teixeira de Carvalho largou o Direito Internacional e passou a dedicar-se à arte contemporânea. Trabalhou em galerias internacionais, em São Paulo, em Nova Iorque e em Londres. Aos 46 anos, assume a presidência da Albuquerque Foundation, que vai acolher a coleção do seu avô, o engenheiro e empresário brasileiro Renato de Albuquerque, colecionador de porcelana chinesa de exportação, dinastias Ming e Quing, e porcelana imperial. A partir de fevereiro de 2025, em Sintra, tudo estará à disposição do público português (e não só).
O seu avô, que fará 97 anos no final do ano, mantém-se a par dos negócios e da coleção de cerâmica?
Sim, completamente, além de ser um exemplo de vida, é um exemplo de longevidade bastante inspirador.
Provavelmente, em grande medida, também é o trabalho que o mantém vivo.
Exatamente. A pandemia mexeu muito com ele, porque não podia sair de casa e todos tinham de estar muito resguardados. Agora, que tudo isso acabou, continua a ir diariamente ao escritório, no Brasil, onde passa a maior parte do tempo. Apesar de serem apenas sete minutos a partir de sua casa, acho que é uma loucura. E também acho que é uma irresponsabilidade da parte do técnico que lhe aprovou a renovação da carta de condução… [risos]. Mas, sim, o meu avô continua muito ativo, continua com projetos no Brasil e em Portugal, continua a adquirir novas peças para a coleção.
Também está por dentro do projeto Albuquerque Foundation, que vai abrir em Sintra, em fevereiro do próximo ano?
Embora não tenha sido uma ideia sua, o meu avô está completamente por dentro da fundação. No princípio, ele não queria envolver-se, dizia que não sabia como ia ser, se ia estar por aqui… Além disso, ele tem uma grande aversão a isto ser visto como um projeto de ego, como um legado. Fica incomodado com essa associação muito próxima, não sente necessidade de mostrar o que fez, de se afirmar em vida, muito menos em morte…
E a questão do ego é, justamente, um dos aspetos dos colecionadores.
Não sei, no mundo contemporâneo, sim, as pessoas querem ser reconhecidas por aquilo que têm e, de preferência, em vida. Com o meu avô, foram pequenas batalhas, até o próprio nome da fundação… Mas, pronto, agora está muito entusiasmado. E, na verdade, estava cheio de vontade de voltar a reencontrar-se com as peças em depósito. No princípio, também não queria envolver-se com a construção, mas depois acabou por participar, do princípio ao fim. Enfim, ele é um construtor, um engenheiro e, por isso, não dá muito para competir com um grande patriarca no seu próprio habitat [risos].
Como a coleção começou, há 60 anos?
Em certo sentido, a coleção é muito caseira. O meu avô não começou a colecionar com a ambição de criar uma grande coleção, a maior do mundo dentro desta especialidade ou qualquer coisa do género. A cerâmica sempre foi uma paixão que foi crescendo, e o que o orientou foi, sobretudo, o seu gosto pessoal. Foi-se especializando, estudando, melhorando a qualidade dos objetos que comprava… Coleciona desde os 30 e poucos anos. E é completamente self-made man, não tinha dinheiro de família, não tinha esse tipo de educação em casa, acabou por comprar à medida que foi progredindo na carreira, foi tendo cada vez mais tempo, foi conhecendo mais pessoas, visitando outras coleções, inspirando-se… Nem a família sabia quão relevante tudo isto era.
E, ao longo do tempo, foi estabelecendo uma rede de contactos?
Eu sou do contemporâneo [do meio da arte contemporânea] e [no meu mundo] é verdade que as pessoas gostam de fazer parte de uma comunidade, colecionadores, galeristas, mercado… No caso do meu avô, ele não participa em nada disso. Sempre lidou com dealers, com casas de leilões, mas nunca gostou muito do lado social, da ideia de “clube”. Quando vai a Maastricht, à TEFAF, uma feira de antiguidades de que ele sempre gostou muito, evita as inaugurações…
De certa maneira, é uma coleção que esteve escondida?
Escondida não digo, porque ele nunca teve intenção de a esconder, mas na verdade sempre foi uma coleção pouco dividida. Quando chegámos à conclusão de que se trata de uma coleção de extrema relevância, histórica, cultural e académica, verificámos que grande parte dessa relevância reside no facto de as peças estarem reunidas. Individualmente, são objetos incríveis, mas uma grande parte do valor da coleção está no conjunto. Por exemplo: existem milhares de histórias, pares de candelabros que estavam separados e que ele juntou, terrinas que todos achavam que tinham naufragado numa grande remessa e que, 150 anos depois, apareceram numa coleção que ninguém conhecia… A ideia do projeto é, justamente, disponibilizar uma riqueza que é privada. E fazê-lo da melhor forma possível. Antes de chegarmos aqui, vislumbrámos outras possibilidades, grandes instituições, mas depois chegámos à conclusão de que, por vários motivos, tínhamos de ser nós a fazer isso.
Tem dito que o projeto da Albuquerque Foundation não é apenas o de criar um museu. Quer explicar melhor do que se trata?
A ideia nunca foi criar um lugar de estagnação, um mausoléu, para a coleção, a ideia é bastante ambiciosa e passa por criar um espaço dinâmico. A coleção ancora o projeto, mas este também quer chegar, por exemplo, à cerâmica contemporânea. Vamos ter um programa paralelo de exposições temporárias, de artistas visuais ou ceramistas, mas também de artistas históricos, não vivos. Outro dos pilares do projeto tem que ver com o programa de residências, de residências artísticas, mas não só, também está direcionado para académicos, investigadores, estudantes de mestrado e de doutoramento.
Podemos dizer que, atualmente, existe uma revisitação da cerâmica?
Sim, e a ideia é criar um dinamismo que permita aproveitar esse momento em que a cerâmica está a ser revisitada, sobretudo na arte contemporânea. A cerâmica existe desde que nos conhecemos como espécie, atravessou várias fases, mas sempre foi muito mais utilitária para uso doméstico. Só depois começou a ser usada como arte, como design, como objeto decorativo. As grandes instituições que detêm coleções de cerâmica costumam colocar a cerâmica nas artes decorativas, europeias, orientais, asiáticas… Mas, hoje, há uma linha cinzenta entre artesanato e fine arts (que não quer dizer exatamente belas-artes), e a cerâmica está a ser considerada muito mais fine arts do que artesanato… Os produtores deixaram de ser artesãos e passaram a ser vistos, essencialmente, como artistas. Julgo que este momento é muito interessante e traz-nos inúmeras possibilidades (mais do que uma confusão, gosto de olhar para tudo isto como uma oportunidade, um redirecionamento).
Porque decidiram trazer a coleção para Portugal?
Por vários motivos, mas sobretudo por causa da relação que o meu avô tem com o País, desde os anos 80 que ele tem negócios em Portugal. No princípio dos anos 90, também adquirimos essa propriedade em Sintra: é uma quinta do século XVIII, mas que agora permanece e vai ser revitalizada. Tudo isto também corresponde a um projeto de família: começou numa geração e está a ser desenvolvido por outra, dentro da mesma família. Há ainda um conceito que permeia muita coisa deste projeto: a união entre o velho/o antigo e o novo. Precisamos de respeitar o que passou, de dar valor ao que já tem grande valor e, ao mesmo tempo, transmitir todas essas ideias ao público, que já não é o público daquela geração, mas que é também o público da minha geração e da geração seguinte.
Conhece a coleção do Museu do Oriente?
Falámos muito por alto, mas a ideia também é criar uma rede de troca. Com o Museu do Oriente e com a Fundação Calouste Gulbenkian, porque eles também têm uma coleção de cerâmica importante, de outra época, mas igualmente relevante.
Em Portugal, já existe um público para a cerâmica?
A nossa ideia é expandir esse interesse, porque, na verdade, acho que o público conhecedor, provavelmente, já sabe ou já ouviu falar da nossa coleção…
Mas nunca a viu, uma vez que ela foi muito pouco exibida.
Sim, é praticamente inédita. Houve duas exposições internacionais: uma no Metropolitan, em Nova Iorque, em 2016, e outra, no início de 2020, no princípio da pandemia, em Milão. A questão é que o público habitual da cerâmica, de certa forma, está ganho. O nosso desafio é criar um interesse do público que, em princípio, não se interessaria por uma coleção deste estilo. Então, quais são os artifícios que eu vou usar para que isto seja um êxito? Que elementos externos podemos usar para cativar esse tipo de público, para que a coleção possa ser vista por outros olhos, para que esse museu não seja óbvio, para que o nosso display não seja o esperado? Queremos fazer tudo com muito rigor, muita precisão, muita sofisticação, muito conhecimento por detrás, mas também queremos que a coleção seja esteticamente atraente.
Portugal atravessa um momento particular, em termos de turismo e de investimento estrangeiro. Isso também foi tido em conta na vossa opção pelo País?
Foi, tudo isso foi considerado e, nomeadamente, a ideia de que Portugal se está a tornar um país muito internacional, com muitos expatriados, muitos estrangeiros e uma comunidade artística de portugueses e de estrangeiros cada vez mais forte. Portugal passou a ser olhado de outra forma.
Não pensaram no Brasil?
Pensámos, sim, mas a relação da coleção com o Brasil é apenas o facto de a família ser brasileira. Faz muito mais sentido começar este projeto num lugar onde já exista algum interesse por parte do público. A nossa ideia também é a de ter sempre uma ponte com o Brasil.
De que maneira uma advogada especialista em Direito Internacional vai parar ao mundo da arte? A advocacia já ficou arrumada na sua vida?
Uma vez advogado, sempre advogado, não é?
Portanto, olha sempre para todos os contratos…
Leio todos. Sou uma cliente muito chata [risos]
Mas deixou de exercer?
Deixei. Mudei de carreira mais ou menos em 2009. Acho, aliás, que o grande responsável por isso foi o meu avô. Por causa dele, comecei a frequentar feiras de arte, a ir a Maastricht, foi aí que ele começou a pensar em catalogar a coleção… Acabou por ser uma transição muito orgânica, a partir de certa altura passei a interessar-me mais pela arte do que pelo trabalho que fazia durante o dia. Sempre tive um apreço muito grande por arte contemporânea, por artistas vivos, pela produção autoral, pela mensagem da arte contemporânea. São esses os artistas que me inspiram. Na verdade, eu também coleciono…
A arte aproxima as pessoas?
Sim, acho que sim. Não sei se todos pensam como eu, espero que sim… Mais do que interesse, julgo que temos a obrigação de fazer com que uma riqueza histórica deste porte não fique guardada a sete chaves, não fique trancada no quintal de uma casa… É uma riqueza para ser dividida, é uma obrigação que temos para com o público.
Tornar visível um património que é propriedade da família e, assim, partilhá-lo com os outros?
É, isso leva-nos àquela discussão que se tem sobre a arte… Nunca se é dono da arte em si, somos apenas custodians, fiéis depositários. Os artistas são os grandes produtores, os idealizadores. Os colecionadores não passam de cuidadores dessa riqueza.