No consultório, situado na Avenida de Roma, em Lisboa, destacam-se várias gravuras emolduradas, feitas com tinta da china. Boa parte delas, da autoria do pai, convivem com desenhos oferecidos por pacientes. “É uma forma de reconhecimento”, esclarece o anfitrião, oferecendo a sua cadeira e sentando-se numa das outras, dispostas em círculo. O sotaque açoriano e o apelido sugerem uma ligação, que confirma, ao escritor João de Melo, presente no lançamento do novo livro: “O avô dele era primo do meu avô.”
Em Lugares Escondidos da Mente – Do mais sombrio ao mais luminoso da natureza humana (Bertrand, 208 págs., €16,60), o coordenador do Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria no Hospital Fernando Fonseca aborda as muitas facetas que nos definem enquanto humanos e convida os leitores a percorrerem os lugares mais recônditos e obscuros da psique. João Carlos Melo tem marcado presença em podcasts de saúde mental e, como na palestra sobre a cura pelo amor na personalidade borderline (TEDxLisboa), realizada no início deste ano, volta a sublinhar a função transformadora dos afetos e da esperança em tempos de brumas e de incertezas várias.
Após décadas de experiência clínica, que mudanças assinala na relação entre médico e doente?
Desde 2004 que estou no Hospital de Dia (do Amadora-Sintra), mas regressei ao Internamento durante a pandemia e notei grandes diferenças. O papel deu lugar ao computador e muitas pessoas queixam-se, porque o médico não olha para elas. O tipo de patologia também mudou. Em Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo, há mais doentes graves. As urgências e os internamentos em Psiquiatria estão cheios, até nos hospitais privados. As pessoas sentem-se mais sozinhas, a vida é mais stressante e, com as redes sociais, tem-se a ilusão de comunicar em rede, mas falta contacto humano.
No novo livro, aborda as nossas facetas luminosa e sombria como se estivesse a conversar à mesa de um café. Qual é a sua técnica?
Procuro não me repetir na forma de escrita e nos temas que me interessam. Grande parte do meu dia é a atender pessoas e, quando tenho alguma pausa, vou juntando fragmentos e ideias, tomo notas, faço um índice provisório e, mais tarde, vem o texto corrido: escrevo, revejo, emendo, deixo de lado, volto lá. Neste livro, quis abordar o outro lado das coisas: o consciente e o inconsciente, o sadismo e o masoquismo, a bondade e a maldade, as questões do corpo e da mente e, ainda, quantos lados tinha a solidão. Como esse capítulo ficou maior do que os outros – e esse período coincidiu com a pandemia –, decidi transformá-lo numa obra autónoma [Uma Luz na Noite Escura]. Só então retomei o que estava em standby, sobre os mecanismos que estão por detrás da aparência.
Como explica a nossa faceta sombria e violenta?
No reino animal, há espécies que matam os seus – os suricatas, os veados e as gazelas e os primatas –, mas nenhuma o faz com gozo e sadismo como a humana. Um modelo que ajuda a explicar isso refere que, há seis milhões de anos, havia uma população de símios semelhantes a alguns chimpanzés, numa zona de África que compreende o atual Congo e a Etiópia. Fenómenos geológicos profundos separaram a população em duas: uma evoluiu até chegar a nós, a outra conduziu ao chimpanzé comum, descoberto há 400 anos, e ao bonobo, há cem. Estes, mais parecidos connosco em elegância e empatia, têm uma comunidade matriarcal e resolvem problemas com sexo. Os outros, guerreiros, hierárquicos e pouco empáticos, matam os da sua espécie. Temos um pouco de cada um deles.
Por que razão a psicopatia não está classificada como uma doença mental?
Classicamente, não se considera doença, mas não é normal. Na doença mental, a pessoa não tem responsabilidade sobre o seu comportamento ou sintomas, da mesma forma que não escolhe ter febre ou dores. A psicopatia é uma perturbação do caráter que se manifesta num funcionamento social, que não é harmonioso nem saudável. Porém, se sabe o que está a fazer, a pessoa deve ser responsabilizada por isso.
O que distingue um psicopata de um psicótico, já que os termos, parecidos, se prestam a confusão?
Um psicótico tem alucinações e delírios que o afastam da realidade. Um criminoso comete atos pelos quais pode ser preso. Alguns psicopatas não cometem crimes, mesmo que seja à custa de estudar o Código Penal, sabem o que fazer, ou não, para evitar serem apanhados, mas muitos serial killers são psicopatas, porque não têm empatia. Uma pessoa com síndrome de Asperger também não a tem, é capaz de chegar ao pé de alguém e dizer “estás tão gordo!” por lhe faltarem neurónios-espelho, sem perceber que pode magoar o outro e deixá-lo triste. Se lhe explicarem isso, pode comportar-se de outra forma, mas um psicopata não respeita nem tem sentimentos pelos outros, eles são um meio para ele obter o que quer.
Esse tipo de funcionamento é fomentado pelo ambiente?
Se houver predisposição, circunstâncias como a falta de valores e princípios e de educação, a competitividade, a rivalidade ou a necessidade de poder podem favorecer atos psicopáticos.
Já se cruzou com alguém assim, na clínica ou na vida pessoal?
Tive doentes com algumas características psicopáticas. Um psicólogo francês construiu uma escala – mais usada em contexto forense – e, se a pontuação for superior a 30, pode dizer-se que a pessoa é psicopata, mas há que levar em conta os gradientes entre zero e trinta. Estima-se que existam 2% da população com estas características, mas não as identificamos se nos cruzarmos com indivíduos que as têm. Alguns são mais sedutores, mais fascinantes ou com mais carisma.
Quase se confundem com o perfil do narcisista.
Um indivíduo com características narcísicas que não tenha empatia, compaixão, culpa ou remorso também é um psicopata. Dou-lhe um exemplo: um homem que tem sentimentos de grande inferioridade, baixíssima autoestima e uma masculinidade devastadora, se for mais neurótico – mais normal –, isto manifesta-se de determinada maneira, porque tem consciência de que não vale nada, fica angustiado e a mente arranja forma de transformar isto em sintomas como a disfunção erétil ou ejaculação precoce. Quem é perverso não sente essa inferioridade, que se manifesta em comportamentos. Por exemplo, ir a escolas, abrir a gabardina e mostrar o pénis, que dá a ilusão de ter um poder fálico.
Como lida com psicopatas que recorrem à terapia?
Quem é psicopata não tem propriamente uma doença e não pede ajuda. Pode fazê-lo se estiver deprimido, ansioso ou com insónia – e falo no masculino, porque a maioria são homens – mas, assim que o problema fica resolvido, deixa de vir às consultas. Ou então faz falsos pedidos de psicoterapia: aparece porque a mulher lhe fez um ultimato e ele não quer perder a pessoa para evitar a perda. Nesses casos, digo que não vale a pena, pois, se não admite que quer mudar, o tratamento seria uma farsa.
Pode explicar o que quer dizer quando fala em violência com máscara de sanidade?
O psicopata tem uma imagem confiante e dele se diz “é um grande líder”, “é autoritário mas tem de ser” e coisas do género, mas quem lida com ele queixa-se: humilha sem dó nem piedade, faz bullying e assédio e tem atitudes que enlouquecem os outros. Se lhe perguntam “porque me humilha?” vai negar e dizer “está a precisar de umas férias”, invalidando o que o outro sente. O abuso de poder também acontece em privado. Nas relações amorosas, escolhe a vítima, dá-lhe o que precisa para se fazer necessário e ligar-se a ela, e depois seduz quem está à volta.
A sociedade que temos está a atravessar um período mais negro?
Há fenómenos cíclicos e uma tendência para as sociedades e culturas se autorregularem. Assistimos ao avanço dos populismos e da direita radical, mas há também grandes grupos que resistem e têm influência para mudar esse rumo. O caminho faz-se entre a luz e as trevas.
Critica-se os media por só darem más notícias, levando a mais ansiedade e descrença. É assim?
O cérebro humano está programado para destacar as notícias que têm sangue e estimulam a curiosidade. Por exemplo, “sabias que fulano, que é diretor, bate na mulher?” De um modo geral, os jornalistas querem transmitir factos e acredito que muitos gostariam de divulgar coisas boas, mas, se alguns decidirem fazer isso, podem ser engolidos pelos que apostam nas notícias bombásticas. As boas também existem e há media que as divulgam. Costumo ouvir uma rubrica na Antena 1, Histórias com Final Feliz, mas o que vende é o Cristiano Ronaldo que falhou o penálti e o outro que o criticou.
Há um século, o lema era transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum. E hoje?
Hoje, assiste-se à ditadura de ter de ser feliz. Ao mesmo tempo, há movimentos de oposição a isso. Ocorre-me o livro A Arte Subtil de Saber Dizer Que Se F*da [Mark Manson], que vendeu muito por ser um manifesto contra esta tendência. Aceitar a imperfeição é mais realista e saudável, pois quem se submete a uma fasquia criada por si e influenciada pelo meio social, centrado na felicidade, sente-se um falhado.
A proximidade dos clínicos com os seus públicos – nas redes sociais e número de seguidores, por exemplo – comporta riscos?
Na minha formação, aprende-se que o psicoterapeuta não deve falar de si nem expor coisas da sua vida, mas também é verdade que os pacientes mais graves apreciam ver a face humana dos seus terapeutas e se sentem orgulhosos por eles terem visibilidade.
Era um jovem no 25 de Abril. A democracia está na crise da meia-idade?
Eu tinha 13 anos e estava no liceu. Mandaram-nos para casa, por estar a haver uma revolução. Pensei que era uma coisa má, porque essa era a palavra que o meu pai usava quando chegava a casa e via os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Mais tarde, ouvia os colegas do liceu a dizer “o professor tal é fascista” e assim fui ganhando outra visão dos acontecimentos. Lembro-me de, na escola primária, todos vestirem a farda da Mocidade Portuguesa no 10 de Junho e de o meu pai não deixar que isso acontecesse, porque éramos diferentes dos outros, e ninguém nos fez mal por causa disso. Dessa experiência retirei a coragem dele e o caráter pacífico daquela sociedade, que era pobre e com atraso a muitos níveis.
Mas voltando à democracia…
Não senti a crise da meia-idade e prefiro falar em maturidade, em que há lugar para desilusões e, também, entusiasmos. Noto a mesma coisa na sociedade: pode não haver aquele fascínio, a revelação do que foi a liberdade, mas ver o espírito de festa e tantos jovens nos 50 anos do 25 de Abril é um exemplo desse entusiasmo.
Há razões para ter esperança na Humanidade e admitir que há, mesmo, almoços grátis?
Acredito na capacidade de autorregulação e de renovação das sociedades. Sendo realista e baseando-me na minha experiência, posso concluir que, para algumas pessoas, não há almoços grátis, porque nunca dão ponto sem nó e, se dão alguma coisa, cobram mais tarde, mas outras fazem-no sem estar à espera de receber, e isso é um almoço grátis. As pessoas que têm apresentado os meus livros, nada tinham a ganhar com isso, fizeram-no por generosidade, e estou grato.
Portanto, que os lados bons não sejam apagados pelos maus, que chamam mais a atenção. É isso?
É. As coisas negativas da natureza humana destacam-se mais, mas as partes boas, luminosas e brilhantes existem e devemos agarrar-nos a elas.