Falámos com o historiador britânico a propósito do seu livro A História do Mundo, do Big Bang até aos Dias de Hoje (edição Crítica) – um ambicioso projeto que tenta explicar vários momentos fundamentais da história humana à luz das mudanças ambientais e climáticas, e que serve de aviso para o período crítico que vivemos hoje. “A Humanidade pode sobreviver, mas as lições do passado são que a incapacidade de se adaptar e lidar com a pressão é catastrófica e pode ter efeitos que duram centenas de anos.”
A História é quase sempre encarada como um processo definido por decisões humanas. O seu livro dá uma perspetiva diferente. Porque é que o clima costuma ser esquecido ou menosprezado enquanto motor da História?
Boa pergunta. No passado, o clima e o mundo natural eram absolutamente centrais na forma como as pessoas pensavam sobre o passado, o presente e o futuro: há quase 3 mil anos, estudiosos gregos alertavam para o que acontece se trabalharmos demasiado o solo, ou se os rios ficarem poluídos; encontramos sociedades primitivas preocupadas com secas ou chuvas terríveis – pense, por exemplo, nas inundações às quais Noé sobreviveu construindo uma arca! E essa história, tornada famosa não só pelo Antigo Testamento e pelo Alcorão mas também conhecida por fontes mesopotâmicas e egípcias, não é apenas sobre eventos climáticos extremos, é também sobre a importância da biodiversidade: Noé não embarca sozinho no seu navio, mas sim com dois animais de cada espécie da Terra. Nos tempos modernos, talvez estejamos tão habituados às descobertas científicas e às melhorias nas nossas vidas que nos esquecemos de pensar no mundo natural. Mas uma outra razão é que a História passou a ser ensinada como uma forma de ensinar aos jovens (quase sempre rapazes) como se tornarem bons líderes: por isso preenchemos as aulas de História com histórias sobre grandes heróis do passado, ao lado de terríveis vilões. Isso tornou a História mais parecida com a Netflix do que com uma disciplina que revela o que é realmente importante.
Um dos eventos que descreve no livro e melhor ilustra a importância do clima no curso da História é como a chuva na Mongólia ajudou Genghis Khan nas suas guerras de conquista, e que, por sua vez, redundou na Peste Negra. Que outros elege como tendo tido maiores consequências?
Bom, qualquer evento que leve à mortalidade em massa é um bom ponto de partida. A Peste Negra, por exemplo, matou cerca de 40% da população da Europa, do Médio Oriente e também de outras regiões. Curiosamente, porém, acontecimentos terríveis como este podem ter consequências inesperadas: devido à morte de tantas pessoas, o preço dos alimentos caiu – especialmente o da carne. Como a proteína é importante para o desenvolvimento do cérebro, isto ajudou a tornar os jovens mais saudáveis e inteligentes. Morreram tantas pessoas que, pelo menos durante uma geração, os salários dos pobres aumentaram dramaticamente à medida que conseguiam negociar melhores acordos para o seu trabalho – e assim a desigualdade melhorou; morreram tantas pessoas que houve outras reações – como decidir gastar em vez de poupar, ou fazer mais sexo: as taxas de casamento dispararam após o fim da pandemia, provavelmente porque as pessoas não queriam esperar para se ligarem umas às outras. As guerras funcionam de forma semelhante – a I Guerra Mundial matou milhões, mas ajudou a libertar as mulheres devido às liberdades conquistadas pela possibilidade de trabalhar e de participar na força de trabalho.
Temos um bom currículo no que respeita a adaptarmo-nos a mudanças no clima?
A resposta curta: sim. Há mais pessoas vivas hoje do que em qualquer época da História, e, melhor ainda, temos uma maior esperança média de vida do que qualquer outro ser humano que já viveu. A Humanidade tem uma forte história de resiliência e adaptabilidade. No entanto, alguns dos indicadores neste momento são tão extremos que deveríamos pensar com calma e profundamente sobre o que nos espera – a tempestade não está apenas a chegar, já aqui está. Mais de 1 500 peregrinos morreram em Meca devido ao calor; 33 milhões de pessoas foram afetadas pelas inundações no Paquistão; um em cada cinco americanos vive em condições que representam risco de vida devido à temperatura; escolas fechadas nas Filipinas porque é perigoso estar ao ar livre; cidades do mundo a declararem o estado de emergência; ou a Gronelândia a perder 20 milhões de toneladas de gelo por hora… Tudo isto nos devia fazer questionar até que ponto estamos preparados para a realidade que nos rodeia. Espero que nos saiamos bem. Mas receio que estejamos a fazer muito pouco e demasiado tarde neste momento.
Que lições podemos tirar de alguns desses períodos para o mundo atual, para as alterações climáticas que estamos a viver?
A primeira lição é que grande parte da história humana é um fracasso. Não é de surpreender que tenhamos a tendência de nos concentrar em coisas que tiveram sucesso e que funcionaram ao longo do tempo. Mas, muitas vezes, as coisas entram em colapso, quebram, desaparecem… Há uma razão pela qual as grandes cidades do mundo já não estão em Nínive, Uruk ou Ur; uma razão pela qual os grandes impérios romano, otomano ou omíada desapareceram. Uma das minhas funções como historiador é explicar como isso aconteceu, e embora o clima muitas vezes não seja a principal causa da mudança e do declínio, é sempre um fator. E, porque o mundo está a mudar tão rapidamente à nossa volta, essas fragilidades são hoje extremamente importantes.
A História da Humanidade tem sido moldada pelo clima, mas também tem moldado o clima. O exemplo máximo são as alterações climáticas atuais. No passado, onde é que a mão humana mais impactou a Natureza?
Suponho que na forma como transformamos os ecossistemas para fornecer o que queremos e precisamos. Isso nem sempre é mau – permite-nos ter dietas variadas, ter produtos baratos e criar empregos. Mas, sem restrições, leva à desflorestação e ao esgotamento dos recursos. Encontramos governantes preocupados com estas coisas há milhares de anos – e a aprovar leis para proteger as árvores, não apenas por razões ambientais, mas porque a estabilidade do Estado dependia da capacidade de ter reservas e recursos suficientes. O grande líder Ashoka, no Sul da Ásia, tornou-se vegetariano para garantir que os stocks de animais não se esgotassem e também para garantir que as florestas e o abastecimento de madeira fossem cuidadosamente regulamentados e protegidos. Muitos outros fizeram o mesmo.
Concorda que o seu livro dá uma perspetiva histórica e social ao conceito darwinista de que são os mais aptos a adaptarem-se ao seu ambiente que sobrevivem e se multiplicam?
É muito fácil esquecer que os humanos são animais. Portanto, sim, a sobrevivência é uma manifestação disso – assim como a adaptação também, claro. Mas nem todos nascemos iguais neste mundo. As pessoas que vivem em climas tropicais, em locais que são vítimas de tempestades, erupções vulcânicas ou estão expostas à seca, estão numa posição mais difícil e perigosa do que aquelas que vivem em ecossistemas mais amenos. A boa notícia é que temos todos os tipos de ferramentas e tecnologias que nos permitem mudar o nosso ambiente, como o ar condicionado. Mas não são distribuídos igualmente por todos, o que significa que as nossas hipóteses de sobrevivermos e nos multiplicarmos não se baseiam nas nossas capacidades biológicas, mas sim nos nossos recursos económicos.
Se não fosse o meteorito que matou os dinossauros, nós não estaríamos cá. Do mesmo modo, uma das razões pelas quais ganhámos a corrida contra os neandertais também se deveu, em parte, à nossa capacidade de adaptação. Significa isto que houve momentos em que também fomos beneficiados por fenómenos extremos ou destrutivos?
Sim! Na verdade, durante a maior parte da história da Terra, a nossa espécie não teria sido viável. Temos a sorte de ter o trabalho da lotaria ecológica a nosso favor. Mas, se as coisas correrem mal, será uma má notícia para nós. Claro, é uma boa notícia para outros animais. Um mundo em aquecimento, como acontece em 98% da superfície do planeta (pela primeira vez), é muito mau para os humanos. Mas é ótimo para mosquitos ou algas.
Diria que as alterações climáticas atuais estão entre os períodos mais perigosos para o Homem?
Extremamente perigoso – porque somos muitos e devido ao ritmo das mudanças. Nos últimos anos, vimos recordes climáticos não apenas serem batidos, mas totalmente destruídos. Em dezembro de 2023, o Hemisfério Norte passou cerca de uma semana não 1° C ou 2° C acima do normal, mas 20°C acima. Outra coisa importante: as alterações climáticas do passado foram o resultado de fenómenos naturais, de alterações nos complexos sistemas climáticos mundiais, mas muitas das mudanças atuais devem-se à atividade humana. Mas talvez se possa também dizer que, se os problemas estão a ser causados ou agravados pelos humanos, então certamente podem ser resolvidos ou melhorados pelos humanos. Essa é a melhor maneira de ver as coisas.
A Humanidade sobreviveu a outros períodos de desastres climáticos. Isso deveria descansar–nos ou a História demonstra que esta época pode ser absolutamente trágica para o nosso modo de vida?
De certa forma, é verdade: a Humanidade sobreviveu. Por outro lado, precisámos de estar no sítio certo no momento certo. Ou, dito de outra forma, estar no sítio errado no momento errado é um desastre. Na pior das hipóteses, pode significar o colapso total. Mesmo em casos leves, os problemas são graves. Vejamos a queda do lado ocidental do Império Romano, por volta dos anos 400: a produção de metal na Europa não foi recuperada durante mil anos, os níveis de alfabetização entraram em colapso, as pessoas pararam de construir em pedra, os horizontes raramente ficavam a mais de alguns quilómetros de casa. Uma sociedade cívica com uma cultura vibrante tornou-se uma sociedade camponesa que levou centenas de anos a renascer – e, quando o fez, foi dominada por senhores feudais. Pelo que sim, a Humanidade pode sobreviver, mas as lições do passado são que a incapacidade de se adaptar e lidar com a pressão é catastrófica e pode ter efeitos que duram centenas de anos.
Em vários momentos, a lição que o livro parece transmitir é que, muitas vezes, a diferença não é tanto os eventos extremos em si mas sim a forma como a sociedade ou os líderes respondem a esses fenómenos. Como avalia a resposta que estamos a dar às alterações climáticas?
É difícil dar uma resposta encorajadora a essa pergunta. No ano passado, a ONU chamou o consumo global de água de “vampírico” e observou que metade da população mundial sofre de escassez extrema de água pelo menos durante um mês do ano, encontramos microplásticos nas placentas dos recém-nascidos, a qualidade do ar é tão má que, em Portugal, mata quatro vezes mais pessoas do que os acidentes de viação. O modo como tratamos o lugar onde vivemos é horrível – e bastante estúpida. Como é que alguém pode pensar que viver de maneiras que encurtam as nossas próprias vidas é uma boa ideia? Tenho esperança de que possamos reconhecer a forma como consumimos 1,6 vezes os recursos naturais da Terra todos os anos. Mas também estou consciente de que estamos a deixar a nossa própria cegueira atrapalhar.
As mudanças climáticas ou meteorológicas não são necessariamente o único fator, e talvez nem o principal, em muitos conflitos que tiveram consequências dramáticas. Mas podem ser, e têm sido, a última gota?
Na História, podemos ver que pequenas mudanças nas temperaturas afetam as estações de cultivo e o rendimento das colheitas. Podemos associar isso ao aumento da perseguição às minorias e a fenómenos como o antissemitismo. O mundo natural é muito importante – mas pensamos tão pouco nele. Não tenho a certeza sobre a “gota de água”, pois normalmente não é assim que penso como historiador: sempre procurarei múltiplos fatores e explicações, pois fazê-lo é ao mesmo tempo mais interessante e mais plausível. Mas, sim, porque vivemos múltiplas revoluções – políticas, económicas, tecnológicas, digitais, etc. –, os riscos são muito maiores, porque estamos todos intimamente ligados uns aos outros. Veja como um único morcego em Wuhan mudou o mundo.
Alguém dizia que o problema do mundo atual é que a Humanidade já está suficientemente avançada para ter um impacto destrutivo e global no planeta, mas ainda não o suficiente para resolver os problemas que causa. Concorda com esta afirmação?
Inventámos sistemas de armas que podem matar-nos a todos. Alguns chamam-lhe progresso. Prefiro olhar para as grandes obras de literatura e arte, para as sinfonias e músicas, para as formas que encontrámos de mostrar caridade e bondade uns para com os outros como marcas do que há de bom na nossa espécie. As humanidades são frequentemente encaradas pelos políticos como um luxo, mas estas são as formas de ajudar a resolver problemas. A Ciência por si só não é suficiente, precisamos de narrativas que nos encorajem a cooperar, que nos alertem sobre o que acontecerá se não o fizermos, e que encontremos um terreno comum para que todos tornem a nossa casa uma casa que as gerações futuras possam desfrutar como nós.