Anil Seth: ” Precisamos de ter a noção de que se um grande modelo de linguagem for equivalente a nós, em vez de uma ferramenta, isso só nos diminui, porque somos muito mais do que máquinas”

Anil Seth: ” Precisamos de ter a noção de que se um grande modelo de linguagem for equivalente a nós, em vez de uma ferramenta, isso só nos diminui, porque somos muito mais do que máquinas”

O que significa ter um Eu, ou ser-se humano? Há mais de duas décadas que o investigador inglês se dedica a decifrar as bases cerebrais da consciência e a divulgá-las em livros e revistas científicas e para o grande público, o que levou a Royal Society a atribuir-lhe o Prémio Michael Faraday, no ano passado.

Em A Criação do Eu – A Nova Ciência da Consciência (Bertrand, 384 págs., €20,90), o cientista Anil Seth defende que a individualidade é um processo biológico que nos confere a sensação de estarmos vivos.

Eloquente nas suas palestras, surpreende as audiências com ideias como estas: a consciência tem mais que ver com o estar vivo do que com ser-se inteligente; somos animais-máquinas cujos cérebros preveem e controlam estados internos. A partir de Brighton, no Reino Unido, o autor falou com a VISÃO sobre temas complexos que fazem parte do quotidiano de todos nós.

Como está a correr a digressão?
Estou satisfeito com a reação das pessoas, que querem saber mais sobre si mesmas e os mistérios associados à natureza da consciência. Procuram responder a questões relevantes do tipo “temos, ou não, livre-arbítrio?” ou “quem sou eu?” e, ainda, “porque sou como sou e não outra pessoa qualquer?” Decifrar os mecanismos da consciência vai traduzir-se em crescentes aplicações com impacto na sociedade, a vários níveis.   

Por que razão estar vivo é mais relevante do que ser inteligente, em matéria de consciência?
Há muitas definições de consciência, desde a forma como se desenvolvem comportamentos à espiritualidade e estados meditativos. Porém, não é assim que eu a vejo. A anestesia é o melhor exemplo da definição da consciência a partir da sua ausência. Nas minhas palestras, costumo perguntar à audiência se está familiarizada com essa experiência. Quando estamos conscientes, estamos conscientes de quê? Boa parte do meu trabalho consiste em tentar compreender como experienciamos o mundo e o Self [Eu]. Ou por que motivo as coisas não são exatamente como nos parecem.

E como são? É possível defini-las?
São construções criadas pelo cérebro. Interpretações daquilo que acontece no mundo e no corpo. À luz da Neurociência e da Filosofia, o Eu é um processo que está sempre a mudar, o que é consistente com várias visões do Self.

Se cada um constrói a sua realidade, o Eu e aquilo de que se dá conta resumem-se a perceções?
No livro abordo esse tema. A perceção é uma espécie de alucinação controlada, porque nos revela o mundo, não como ele é mas de uma forma útil para nós, uma vez que não temos acesso direto à realidade tal como é. Isto não é novidade, os gregos já tinham lá chegado e Immanuel Kant também. A diferença é que agora estamos a decifrar a parte mais profunda da história: como funciona a consciência no plano biológico. Isto não quer dizer que nada é real ou que o mundo real não existe. 

Copérnico, Darwin, Freud… os avanços científicos têm-nos mostrado que o mundo não gira à volta do nosso ego. E a seguir?
A descentralização progressiva da Humanidade, a cada nova descoberta, não diminui a condição humana, antes a enriquece. Quanto mais sabemos sobre a natureza da consciência, fica mais claro que não estamos separados da Natureza e percebemos que somos parte dela.

Como é que as atividades elétrica e química, no cérebro, resultam numa experiência consciente?
A nossa espécie faz muita coisa que os animais não humanos são incapazes de fazer. Como o nosso cérebro se apoia em sinais sensoriais ambíguos e destituídos de rótulos, formula hipóteses sobre causas prováveis a partir desses sinais. A forma de resolver este problema – na Matemática dá pelo nome de inferência bayesiana – é estar constantemente a fazer previsões sobre o que é o corpo e o mundo. Elas vão sendo atualizadas e calibradas à medida que o cérebro recebe dados.

É por isso que cada um percebe o mundo à sua maneira?
O cérebro está sempre a tentar encontrar padrões e a fazer previsões. Num dia nublado, podemos ver rostos nas nuvens. Embora nos pareça que a perceção se faz de fora para dentro, é mais plausível que o processo ocorra no sentido inverso, de dentro para fora. Considero que o cérebro é uma máquina de fazer previsões e que está longe de ser como um computador. Daí que se tenha vindo a usar o termo “wetware”, em vez de “software”.

O que se passa na experiência de sentir-se fora do corpo, associada, até, a estados místicos?
Ter uma experiência fora do corpo não significa que a consciência exista fora dele e nem há evidências científicas sólidas que o confirmem, mas existe uma explicação possível: a mente visualiza-se numa dada localização, gerando uma perspetiva na primeira pessoa. Estas criações do cérebro devem ser levadas a sério, mas não literalmente.

Justifica-se o entusiasmo face ao uso medicinal dos psicadélicos?
Colaborei em alguns estudos e confirmo que há motivos para crer que estas substâncias podem ser eficazes do ponto de vista clínico, pois mudam a forma como o cérebro vive a experiência e permitem criar mais espaço e flexibilidade para reorganizar a forma de pensar e de sentir. Os psicadélicos estão em alta devido ao potencial demonstrado no tratamento de doenças psiquiátricas, mas não há poções mágicas e duvido que estes químicos sejam a exceção. É prudente evitar excessos e explorar outras formas de obter os efeitos pretendidos.

Conhece alguma que seja igualmente promissora?  
Estive envolvido num projeto experimental que consistia em induzir alucinações visuais pelo uso controlado da luz estroboscópica num ambiente seguro, em quatro cidades do Reino Unido. Este exercício criativo permitiu aceder a algo novo, de forma coletiva e única ao mesmo tempo, e a satisfazer a curiosidade sobre os mecanismos percetivos e da consciência que, de outra forma, talvez não se tivessem conhecido. Numa perspetiva neurocientífica, o Dream Machine permitiu-nos aprender algo mais acerca da variabilidade neuronal: numa dada situação, há diferenças percetivas assinaláveis, ou seja, a forma como eu vejo uma cor não será igual à sua. Uma das implicações é constatar que vivemos em câmaras de ressonância, como as das redes sociais. Outra é ver as experiências alheias com outra atitude, cultivando a humildade, a empatia e a compreensão.

Pensando nos estados delirantes, que refere no livro, o ambiente também pode desencadeá-los?
Mencionei o delírio induzido pelo hospital porque existe e aconteceu à minha mãe, mas os profissionais de Saúde pareciam mais focados na condição clínica dela do que neste estado alterado da consciência, comum em ambientes percebidos como inóspitos. Apesar de durar apenas algumas horas, estava realmente a afetar a perceção de quem a minha mãe era, naquele momento.

Quanto mais sabemos sobre a natureza da consciência, fica mais claro que não estamos separados da Natureza e percebemos que somos parte dela

Como se explicam as alucinações?
Tudo o que faz parte da experiência tem que ver com o equilíbrio entre o pensamento de baixo para cima e o seu oposto. De um lado, temos um rio de informação sensorial que chega ao corpo e ao cérebro; do outro, as previsões que ele faz desses sinais. Onde esse ponto de encontro se der vai afetar a experiência. Na psicose, por exemplo, ouvem-se e veem-se coisas que não estão lá, talvez porque as previsões – pensamento de cima para baixo – esmagam os dados sensoriais, perdendo o controlo sobre o mundo. As alucinações visuais também são comuns na doença de Parkinson e na síndrome de Charles Bonnet [doença oftalmológica que envolve diminuição da acuidade visual em pessoas mais velhas]. O desafio é descobrir se elas têm que ver com erros na forma como o cérebro faz previsões sensoriais.

Se a experiência do Eu resulta do encontro neurobiológico entre dados e cálculos, onde ficam a religião, a Filosofia e a psicanálise?
Não sou fã da psicanálise e suspeito que Freud queria ser neurobiólogo e talvez tivesse ficado frustrado por não ter os métodos que existem hoje. Contudo, a psicanálise não deixa de ser uma forma criativa de contar uma história, a partir de constructos, como o Ego ou o Id, que não são, no meu entender, as fundações do cérebro, da mente ou do Eu. Pode ser útil no contexto da terapia para algumas pessoas, mas parece-me ser interminável e de pouca utilidade para compreender o funcionamento cerebral.

A realidade virtual (RV) é eficaz no tratamento de doenças que envolvem alterações da consciência?
Os estudos que se fazem com RV, dando às pessoas mãos ou partes do corpo virtuais, por exemplo, dá-nos uma ideia de como o cérebro cria uma perceção do que é o corpo. Podemos manipular isso de forma experimental, mas é preciso cautela porque, nos ambientes virtuais, fica-se mais permeável a sugestões e a vivenciar o que desejamos. A RV pode ser útil para quem sofre de dor fantasma, por exemplo, sobretudo se as pessoas forem mais sugestionáveis.

E no caso da Inteligência Artificial (IA)? Estaremos a mitificar os seus poderes?
Há muito entusiasmo e medo. Só agora estamos a ter uma ideia do que fazer com os grandes modelos de linguagem (LLM), que não têm capacidade para pensar ou sentir seja o que for. Há muita confusão em torno da possibilidade de a IA se tornar consciente; é uma falácia que se apoia na velha ideia de que o cérebro é um computador e a mente o seu software. Vemos o mundo à nossa semelhança e projetamos nele qualidades que não tem. Por exemplo, pensamos que somos especiais e inteligentes e que as duas coisas se ligam através da linguagem. Perante um computador que a usa com fluência, atribuímos compreensão e consciência a estes sistemas e isso diz mais dos nossos vieses. O filósofo Thomas Nagel diz que há algo que define o que é ser eu, um morcego ou um canguru. Porém, não há algo que diga o que é ser um GPT-4, apesar do que possa dizer quando lhe fazem perguntas.

O que é, então, a consciência humana? E, ainda, faz-lhe sentido a ideia de expandi-la?
É de admitir que a consciência seja uma propriedade da vida, como o metabolismo ou a homeostase, e não uma propriedade dos processadores de informação. Estar vivo pode ser essencial para haver consciência. Cabe-nos cuidar do corpo e do cérebro pela nutrição, o exercício e práticas como a meditação. Quanto aos suplementos para aumentar o rendimento cognitivo, há poucas evidências sobre a sua eficácia.

Os “amigos” da IA têm voto na matéria?
Há uma tendência para acreditar que a interface entre cérebro e tecnologias nos vai proporcionar um futuro grandioso, na Medicina e noutras áreas. E imaginar, como Elon Musk, que todos teremos implantes para interagir diretamente com a IA e ficarmos superinteligentes e, talvez, viver para sempre. Essas narrativas não passam de utopias que distorcem os benefícios e custos, ou riscos, destas tecnologias.

A que riscos devemos estar atentos, ou melhor, como nos preparamos para o que aí vem?
Os dados pessoais que estamos a dar a grandes empresas são claramente um risco. Todos temos de pensar duas vezes antes de permitir-lhes o acesso ao que se passa dentro das nossas cabeças, sob pena de nos arrependermos, e muito, de ter permitido a invasão da nossa privacidade. Também precisamos de ter a noção de que se um grande modelo de linguagem for equivalente a nós, em vez de uma ferramenta, isso só nos diminui, porque somos muito mais do que máquinas e capazes de cultivar estados de consciência como a empatia, a compaixão e a eudemonia, o termo grego para bem-estar. Isso não tem que ver com Ciência, mas com a nossa humanidade.

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