“Ninguém tem boa saúde mental com dificuldades económicas, com precariedade escolar, com desemprego, com pouca qualidade na alimentação, sem exercício físico… “

“Ninguém tem boa saúde mental com dificuldades económicas, com precariedade escolar, com desemprego, com pouca qualidade na alimentação, sem exercício físico… “

Mulher de esquerda, defensora do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a psiquiatra Ana Matos Pires, 59 anos, faz parte da equipa da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, na dependência do Ministério da Saúde, mas não hesita em apontar ao Governo o que ainda tem muito para fazer nesta área. Acredita que “não podemos só andar a dizer mal e não contribuir”. Por isso, há dez anos, a lisboeta foi para Beja criar o primeiro serviço de internamento de psiquiatria da única capital de distrito que não tinha uma ala destas. Diz que não gosta da patologização e que o estigma perante os doentes mentais não ficou no passado.

Foi aprovada a nova Lei da Saúde Mental, em agosto, que, entre outras coisas, acaba com o internamento perpétuo dos inimputáveis, mas já estão no terreno as respostas adequadas para quem deixa as instituições prisionais ou hospitalares?
A alteração da lei era necessária – tinha 22 anos e já não estava adequada a vários compromissos que Portugal tinha assinado com a Europa, nomeadamente em matéria de direitos humanos. A mudança do internamento compulsivo para involuntário não é só uma questão de léxico; era inevitável pôr fim à injustiça monstruosa traduzida no facto de os doentes inimputáveis serem os únicos presos que podiam ser sujeitos a prisão perpétua. Um dos investimentos do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] na saúde mental destina-se ao sistema forense, especificamente aos três serviços prisionais (Lisboa, Porto e Coimbra). Do lado da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, tudo o que é papelada para preparar a desinstitucionalização está entregue. Agora, esperamos que aquilo que está previsto no PRR traga as respostas necessárias. A 20 de agosto [data de entrada em vigor da Lei da Saúde Mental], isso não estava completado, porque infelizmente o PRR está com atrasos em todas as áreas, mas há uma ‘troika’, constituída pelos ministérios da Saúde, da Segurança Social e da Justiça, a delinear esta integração. Se me pergunta se estou contente que as respostas ainda não estejam no terreno? Não, não estou.

O PRR atribuiu 88 milhões de euros à saúde mental. Este montante resolve a falta de investimento crónica na área?
Não. Para uma área em que a última vez que tinha ouvido falar em milhões de euros – cinco – tinha sido em 2010, 88 milhões é absolutamente fantástico. Foi coisa nunca antes vista, mas também é preciso dizer que todo o investimento do PRR destina-se a infraestruturas, vai para tijolos, não para recursos humanos.

E o SNS tem um grande défice de profissionais na área da saúde mental…
Exatamente. A saúde mental tem carências objetivas de recursos humanos. Quando a nossa matéria-prima são os recursos humanos, somos pessoas a trabalhar para pessoas. Não necessitamos de grandes investimentos em maquinarias e tecnologias de ponta.

Nos últimos dois anos, agravou-se a fuga de psiquiatras para o privado.
Sim, e isso nota-se de forma mais evidente na área da psiquiatria da infância e da adolescência. Portugal tem um problema sério na pedopsiquiatria. Formam-se poucos pedopsiquiatras por ano e, sobretudo a seguir à pandemia, houve um grande investimento privado nestas consultas; os pais desesperados optaram por pagar e pronto. E os médicos, por questões sobejamente conhecidas, têm fugido para o privado.

Mas nem todas as pessoas poderão pagar uma consulta no privado e no SNS as listas de espera são longas. Concorda que há um problema de acesso na saúde mental?
Sim, o acesso é difícil. A reforma da saúde mental, que está em curso – começou do ponto de vista legal com o Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro, que reorganiza os serviços, e acaba agora com a Lei da Saúde Mental, que tenta tornar as respostas mais próximas e mais integradas –, só vai ter bons resultados se os recursos humanos existirem. Senão, obviamente o acesso continuará a ser muito difícil.

Apostar mais na prevenção pode ser uma forma de moderar a procura? O sistema deveria estar mais virado para a promoção da saúde mental?
Uma boa saúde mental não depende só da saúde. Ninguém tem boa saúde mental com dificuldades económicas, com precariedade escolar, com desemprego, com pouca qualidade na alimentação, sem exercício físico… Temos de ter uma visão mais abrangente. Mas, obviamente, a prevenção faz-se com estratégias mais dirigidas e da responsabilidade da saúde. Quanto mais conseguirmos promover a prevenção da doença – investir no diagnóstico precoce e no tratamento adequado –, melhor será a qualidade da saúde.

Um país como Portugal, onde os salários são baixos, onde as pessoas têm dificuldade em pagar a casa e, às vezes, até a conta do supermercado, está em maior risco?
Está. Aliás, o estudo epidemiológico que foi feito há dez anos demonstra exatamente isso. Portugal parte de uma situação mais precária do que outros países da União Europeia.

E como se torna a saúde mental transversal a todas as políticas?
Com vontade política. Está tudo dito, escrito e feito. Basta pegar nos bons documentos que a Organização Mundial da Saúde tem elaborado. Nesta resposta, têm de ser envolvidos diferentes ministérios, desde o da Educação ao da Justiça, passando pelo do Trabalho e da Segurança Social, da Ciência e da Tecnologia. Este último é muito importante também, porque precisamos de criar bons estudos para delinear boas políticas. Costumo dizer que não vale a pena estar a fazer o investimento de prevenção do suicídio na linha férrea do Alentejo, onde não passam comboios. Para intervir, preciso de conhecer a realidade. E, no caso do suicídio, é uma das áreas em que nós não somos muito felizes. Mais uma vez, por falta de investimento.

A prevenção do suicídio está sob a sua alçada, no âmbito da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental. É por não haver investigação suficiente que não se têm delineado mais estratégias preventivas?
Os dados epidemiológicos sobre esta realidade são muito maus, em Portugal. São pouco fiáveis. É absolutamente urgente fazer um investimento sério numa estratégia para a prevenção do suicídio, pelo menos até 2030. O suicídio não é uma doença, é um comportamento, e não se mudam comportamentos num ano.

Em Portugal, ainda se acha que quem não tem uma doença não precisa de se preocupar com a sua saúde mental?
Sou uma psiquiatra que não gosta de patologizar a vida. A doença psiquiátrica é algo devastador, para o doente e para a família deste, para que nós, de repente, estejamos a baralhar o que é uma reação ajustada depressiva com o que é uma depressão ou um diagnóstico de uma perturbação ansiosa.

O ‘burnout’ não passou a existir agora; a síndrome é muito antiga… Mal comparado, é como o aumento da violência doméstica: tenho a certeza de que a violência doméstica não aumentou, a consciencialização e as queixas é que felizmente aumentaram

Há estigma, hoje, por se pedir ajuda a um psicólogo ou a um psiquiatra?
Há, não tenho dúvida nenhuma. Se é verdade que avançámos um bocadinho na diminuição do estigma face à saúde mental, o estigma face à doença mental grave é ainda muitíssimo importante na população em geral, mas também entre os próprios profissionais de saúde e até nos profissionais de saúde mental. Há uns anos, pedi a um amigo que trabalhava na Assembleia da República para pesquisar, no pré-1974 e no pós-1974, da direita até à esquerda, a utilização de diagnósticos psiquiátricos com caráter ofensivo nos discursos dos deputados. E ninguém se safou, comeu tudo pela mesma medida, da esquerda à direita. Não passa pela cabeça de ninguém, para ofender o senhor da bancada do lado, dizer “seu grande insuficiente renal”, mas passa pela cabeça chamar esquizofrénico, bipolar ou autista. E isto continua nos dias de hoje. Acho que se fosse refazer o estudo iria obter resultados iguais ou semelhantes. É uma batalha que não está ganha e só uma literacia em saúde de muita qualidade é que pode mudar isto.

Cada vez que é publicado um estudo sobre saúde mental, os números são impactantes: os últimos dizem-nos que mais de metade dos portugueses já teve uma depressão e mais de metade dos trabalhadores já teve um esgotamento ou sintomas de pré-burnout; dizem-nos que os pedidos de ajuda entre os jovens dispararam… Estes indicadores são uma avalancha a que não conseguimos dar resposta?
Por um lado, a diminuição do estigma face à saúde mental contribui, naturalmente, para que as pessoas estejam mais despertas para esta temática e, depois, como referi há pouco, há alguma facilidade para patologizar e uma grande mistura do que é uma reação e do que é uma doença. Felizmente, somos muito mais resilientes do que imaginamos e a pandemia veio mostrar-nos isto. Eu não quero perder o direito de ficar triste quando alguma coisa má me acontece, sem que isso determine um diagnóstico de depressão. Como também não quero deixar de ficar contente quando me acontece alguma coisa boa, sem que isso signifique que eu tenha uma mania. A normalidade é suficientemente lata para cabermos lá todos. Está-se a hiperusar o diagnóstico para situações que não configuram doenças mentais. O burnout não passou a existir agora; a síndrome é muito antiga… Mal comparado, é um bocado como o aumento da violência doméstica: tenho a certeza de que a violência doméstica não aumentou, a consciencialização e as queixas é que felizmente aumentaram.

Dedicou a sua vida à psiquiatria e, há dez anos, aceitou ir para o Alentejo abrir o primeiro serviço de internamento da especialidade, em Beja. O que a fez aceitar este desafio?
A minha primeira dúvida existencial foi no nono ano de escolaridade: não sabia se queria ser jornalista ou médica. Decidi optar pelas ciências exatas, porque achei que, enquanto médica, ainda podia fazer umas incursões na escrita. Nasci e cresci em Lisboa e fui para o Porto fazer o curso no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, acabei a escolher psiquiatria por fazer a ponte entre as ciências humanas e as puras. E não tenho nenhum arrependimento. Em 2010, fui para o Algarve ajudar a abrir a Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve e, passado um tempo, ligou-me o então coordenador nacional do programa para a saúde mental, Álvaro de Carvalho, a dizer-me: “A Ana é suficientemente maluca para aceitar este desafio.”

Aceitou logo?
Fui lá ver as instalações, eram fantásticas. Foram construídas com fundos europeus, mas o internamento estava fechado e só havia um psiquiatra, uma pedopsiquiatra e uma colega com uma prestação de serviços de 16 horas. Era a única capital de distrito que não tinha serviço de internamento. As pessoas, quando precisavam, tinham de ir para o Júlio de Matos, em Lisboa. Estava perto dos 50 anos e achei que construir um serviço era uma oportunidade única. Isto não é só andarmos a dizer mal e não contribuirmos. Eu sou uma mulher de instituição, de esquerda, defensora do SNS e achei que podia fazer a diferença ali. Ia para o Alentejo à quarta, quinta, sexta e fazia um fim de semana de urgência. Começámos a trabalhar em 2013 e, em 2015, abrimos as portas do internamento. Hoje, já somos seis e, em contracorrente com os outros serviços, estamos a crescer.

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