O tempo não volta para trás. Em todas as etapas do desenvolvimento da identidade, da gestação ao pós-morte, passando pela infância, adolescência, idade adulta, meia-idade e os chamados “anos dourados”, a pegada digital caminha connosco. Elaine Kasket investiga a interface entre a psicologia e a tecnologia há duas décadas. No livro Reboot, Reclaiming Your Life in a Tech-Obsessed World [Reinício: recuperando a sua vida num mundo obcecado por tecnologia, editado pela Elliott & Thompson Limited], que será lançado a 31 de agosto e que foi escrito a partir do trabalho de campo com entrevistas, casos clínicos e observações de cariz pessoal, propõe-nos reiniciar a forma de lidar com o big data. Como? Moldando os relacionamentos mediados pelos “amigos” digitais de modo consciente. O lema desta psicóloga inglesa dá que pensar: “Que eu tenha serenidade para aceitar o que não posso mudar na tecnologia, a coragem para mudar a forma como a uso e, sempre que possível, a sabedoria para saber a diferença.”
Como surgiu a ideia de escrever sobre o mundo digital ao longo do ciclo de vida?
Tenho 53 anos e uma filha com 13 – estou na crise da meia-idade e ela, na da adolescência. Ainda me lembro de quando tinha essa idade, testemunho os desafios dos meus pais (na casa dos 80) e também acompanho casais com teenagers e pessoas mais velhas. No livro anterior [All the Ghosts in the Machine], sobre o que acontece aos nossos dados digitais quando morremos, descobri que o eu digital surgia antes do nascimento, pela partilha online de dados do feto. Sendo a tecnologia indissociável do quotidiano, quis investigar se as oito fases do desenvolvimento psicossocial – do modelo de Erik Erikson, nos anos 50, que inclui oito etapas e as suas crises – se mantinham na era digital.
E mantêm-se?
Cada uma traz uma crise psicossocial, em que é preciso fazer escolhas. Atualizei o modelo, que ficou com nove etapas, tendo agregado duas, da infância, e adicionado outras duas: a gestação digital e a vida digital após a morte. No seu último trabalho, The Life Cycle Completed, Erikson acrescentou uma nova etapa, com a visão retrospetiva de todas as outras. A identidade é socialmente construída e evolui com os relacionamentos, mediados pela tecnologia, para o bem e para o mal. Apurei quais eram as tecnologias mais relevantes em cada etapa. Na primeira, a gestação digital, abordo a partilha de material nas redes sociais: vídeos, sonogramas e festas de revelação do género da criança antes de ela nascer, que se tornaram virais e trouxeram dissabores a quem as faz. Na fase da infância, tropecei num mundo que desconhecia, como os wearables para bebés: meias inteligentes capazes de quantificar e enviar parâmetros como níveis de oxigénio ou ritmo cardíaco, durante 24 horas, para o smartphone dos pais, ou dispositivos que detetam diferentes tipos de choro. Estes auxiliares da parentalidade têm um impacto psicológico considerável.
E tem-se noção desse impacto?
É muito baixa! A maioria das pessoas fica hipnotizada e normaliza a vigilância e a divulgação de dados, na crença de que o recurso à tecnologia se traduz em mais segurança.
Quais os riscos do sharenting e dos dispositivos de vigilância?
Quando os pais começam a divulgar informações sobre a identidade dos filhos e os sonhos e expectativas que projetam neles – até porque toda a gente o faz –, isso torna-se a regra; é difícil parar, mas a monitorização constante, que acalma os adultos, tem custos. Há um estudo clássico da psicologia, que envolve a interação entre mães e filhos pequenos, em que, a certa altura, se pede [às mães] que não tenham expressões faciais (still face): as crianças ficam agitadas e protestam, no esforço de captar atenção. Não é diferente quando se tem o bebé ao colo e se passa o tempo com os olhos no ecrã. A tecnologia tende a assumir o lugar dos pais e a ser um entrave à criação de vínculos, com implicações no desenvolvimento neurobiológico, psicológico e social de uma geração. Até eu, no início da maternidade, cairia nessa armadilha se tivesse a oferta que há hoje, com gadgets e apps desenhados para reduzir a ansiedade.
Os pais confiam demasiado nos recursos de monitorização?
Claro. Mas tecnologias de vigilância, desenhadas para reduzir a ansiedade, tendem a agravá-la. Os pais ficam viciados no bebé cyborg do ecrã e o bebé real fica em segundo plano, perdido, sem a atenção devida. Na investigação que fiz, percebi que, quanto mais cedo se for exposto à cultura de vigilância, mais provável é considerar certos comportamentos normais na idade adulta, das práticas de cyberstalking à monitorização da atividade online ou do telemóvel de terceiros. Isto é a regra para as novas gerações, e percebe-se porquê. Cresceram com os pais em cima deles: “Onde é que andas? Estou a ver que estás no McDonald’s!” Ficam com a ideia de que é assim que as pessoas se tratam umas às outras e que não há muito a fazer acerca disso.
A partilha online de dados infantis é um dado adquirido, mas não devia ser?
Deixei de partilhar informação relativa à minha filha depois de lhe perguntar, aos 9 anos, o que achava disso. Ela manifestou desconforto, mas não me disse nada, por achar que não era tida nem achada e, apesar de não gostar, acreditava que eu não ia deixar de fazê-lo. Mesmo que se pergunte a uma criança se concorda, ela não tem idade nem poder para dar consentimento informado sobre os seus dados. Por isso, apaguei tudo o que tinha, incluindo imagens de aniversários, e parei as partilhas, de um modo geral.
Que implicações teve para si?
A editora e a equipa de marketing do meu livro temiam que os pais se sentissem julgados, mas é uma questão de ética. Ninguém sabe ao certo quais as consequências; porém, sabe-se que os dados pessoais das crianças são valiosos para as empresas que lidam com os comportamentos dos futuros consumidores, que as alimentam. Tirei um peso de cima e, sempre que tinha o impulso de partilhar, passei a questionar-me sobre os motivos: por estar sozinha, precisar de validação, pertença, reconhecimento? Concluí que só tinha que ver comigo, e não era aceitável preencher necessidades nas redes sociais à custa da minha filha.
As leis da proteção de dados e as medidas adicionais de privacidade não bastam?
Sabemos que os dados digitais de alguém falecido que permanecem online podem afetar a fortuna dos descendentes. E que a informação destes que circula na internet os torna mais vulneráveis a situações como falsificação de identidade e fraudes financeiras, se cair nas mãos de pessoas com más intenções, sobretudo agora, com as tecnologias de deepfake e de reconhecimento facial. No Reino Unido, houve problemas com hackers que entraram no sistema informático da escola e pediram resgates, ameaçando divulgar os dados online dos alunos. Essa informação estava ligada a outras plataformas que envolviam avaliação social de comportamentos, e nunca vamos saber quem pode vir a aceder a ela no futuro.
De todas as etapas do ciclo de vida, qual é a que coloca maiores desafios digitais?
A idade adulta. A maior parte dos casais que acompanho tem sérias dificuldades em falar das expectativas sobre a relação e dos limites de privacidade na esfera sexual e afetiva, por insegurança e medo da rejeição. Dizer ao outro “vamos falar, sinto isto ou aquilo” traz ansiedade e desconforto, é duro e exige coragem. Se os telemóveis nos “salvam” do tédio e da tristeza e nos distraem de coisas de que não gostamos, é mais fácil não expor esses medos e aceder à informação do telefone ou da conta digital e ser espião, em vez de crescer e comunicar melhor.
Como dar a volta a esses dilemas?
É muito difícil. A tentação de aceder à localização, a emails e a tudo o que está disponível online é muita. Com frequência, não encontram pistas sobre o que temem ou ficam a saber algo que não procuravam, mas não podem esclarecer isso às claras, pois o outro ficaria a saber que violaram a privacidade. Um jornal inglês publicou recentemente uma notícia sobre um casal famoso ter estabelecido um acordo na terapia em que podiam exigir ver os telefones um do outro. Mas isso também não é solução: os parceiros ficam numa relação de pai-criança ou de carcereiro-prisioneiro. Este é mais um exemplo de como, muitas vezes, usamos a tecnologia contra nós, em vez de pôr mãos à obra e preservar uma ligação. Porém, temos escolha, podemos comunicar melhor e crescer – sublinho isso nas sessões.
Revela, no livro, que teve um burnout. A que se deveu?
Coincidiu com a pandemia, a aceleração digital, o trabalho remoto e o aumento da vigilância e da Inteligência Artificial (IA). De um momento para o outro, pessoal hospitalar, criativos, designers, escritores, professores e terapeutas que estavam seguros de que o seu trabalho nunca seria posto em causa pela automação ficaram sem chão, até no auge da carreira, na etapa generativa das suas vidas. Não sou imune e deixei de ter certezas. É um sentimento estranho. O meu marido tem 58 anos e trabalha na Ford desde os 20, mas pode ter de se reformar antes do tempo, porque a sua área vai ser extinta. Na meia-idade, a personalidade atinge um pico de estabilidade, e nem sempre se tem o grau de flexibilidade necessária para adaptações de monta. Além disso, há receios, legítimos, de que a IA leve à redução de custos para as empresas.
Na velhice, a IA parece promissora. Até que ponto?
Essa etapa do desenvolvimento está muito ligada à memória biográfica e à consolidação da identidade, e a tecnologia permite manter competências cognitivas e envelhecer melhor na comunidade local, sem sair do seu ambiente. Há coisas fascinantes a acontecer nesta altura: gerações mais jovens descobrem segredos familiares através dos testes de genealogia genética e viram do avesso todo o percurso e narrativa de vida das mais velhas. A genealogia floresce, e isso tem que ver com o nosso desejo de acreditar que somos especiais. Por outro lado, é perturbador o número de fraudes envolvendo idosos vulneráveis, testes de ADN e companhias de seguros, nos Estados Unidos da América.
Hologramas, uso da voz de quem morreu em novos produtos audiovisuais, contacto virtual durante o luto… Onde vamos parar?
Todos estamos vulneráveis a isso, pelo volume de despojos digitais. A identidade dos mortos permanece viva online e pode assombrar-nos. Durante a pandemia, muitas das aulas que dei foram gravadas, e tenho livros e vídeos no YouTube. Basta recorrer a um software de IA com base no meu conhecimento, crenças e opiniões, e, em teoria, o deep learning faz o resto: depois de morrer, posso continuar a dar aulas e a fazer psicoterapia, sabe Deus por quanto tempo e para quem! Estaremos a falar da Guerra das Estrelas ou de Marilyn Monroe como ideal de mulher daqui a 50 anos? Os legados digitais que se conservam e reciclam podem reter a evolução artística e cultural da sociedade.
Como vai lidar com o seu lastro digital?
Vou acautelar a segurança dos meus dados pessoais, para evitar que sejam alvo de oportunismos e tornem a vida dos herdeiros um inferno, mas nada mais. O luto é um facto da vida, não uma doença a curar ou um problema que precisa de ser resolvido. Quero apenas deixar esta mensagem: perdemos muito tempo com histórias que contamos a nós mesmos sobre os males da tecnologia, mas temos mais poder do que pensamos. Somos capazes de fazer escolhas refletidas e conscientes, e está na altura de o assumir.