“Se olharmos para o tempo da União Soviética e para o papel que teve na independência de alguns países africanos, vemos que a kalashnikov é um verdadeiro símbolo de descolonização”

FOTO: Marcos Borga

“Se olharmos para o tempo da União Soviética e para o papel que teve na independência de alguns países africanos, vemos que a kalashnikov é um verdadeiro símbolo de descolonização”

Foi a vontade de ver a “negritude” da Europa in loco, as suas comunidades e tradições, que levou Johny Pitts a fazer uma viagem de comboio, durante cinco meses, por sete países (França, Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Suécia, Rússia e Portugal). Aos 38 anos, este filho de pai afro-americano e mãe inglesa quis saber se a sua vida num subúrbio multicultural de Sheffield, em Inglaterra, tinha semelhanças e eco noutras cidades europeias. Afropeu: A Diáspora Negra na Europa (Temas e Debates, 440 págs., €19,90) – vencedor do Prémio Europeu de Ensaio 2021 e, também, dos prémios Leipzig Book Award for European Understanding 2021, Jhalak Prize 2020 e Bread and Roses Award for Radical Publishing em 2020 – chega, agora, a Portugal e é o resultado de uma bricolage de experiências nas periferias do Velho Continente, onde vivem os europeus de ascendência africana. Um doc livro sobre a identidade e a multiculturalidade.

Depois desta entrevista, Pitts tinha um almoço combinado num restaurante de um amigo de um amigo na Rua do Poço dos Negros, em Lisboa. O nome chamou-lhe a atenção.

De onde vem o termo “afropeu” e o que é que o atraiu nele?
O termo surgiu no início nos anos 1990, quando David Byrne, dos Talking Heads, viajava pela Europa e conheceu um grupo belgo-congolês chamado Zap Mama. Ele ouviu a música e disse: “Isto é belga, mas não é esta a Bélgica de que eu oiço falar, aquela que é exportada.” Viu que naquele estilo de melodia havia uma fusão dos ritmos polifónicos do Congo com o estilo musical europeu. Então, David Byrne e a vocalista dos Zap Mama, Marie Daulne, cunharam aquele estilo como afropeu [junção de africano e europeu]. Tiraram o hífen das palavras e uniram-nas, deixou de ser negro e mais isto ou metade disto e metade daquilo, é uma só identidade.

No livro escreve: “Afropeu encorajou-me a pensar em mim mesmo como um todo e sem hífen.” Pode explicar melhor?
A palavra afropeu procura lidar com uma certa dualidade ou um pluralismo que existe quando se é posto de parte culturalmente. Sou europeu, falo uma língua europeia, passaporte europeu já não tenho desde que o Reino Unido deixou de fazer parte da União Europeia… [Risos.] Fui educado e sou parte desta cultura, mas também sou outra coisa, e não quero ter de estar constantemente a escolher se sou de um lado ou do outro. Quero que estas duas culturas se unam. Afropeu, para mim, é essa ideia utópica, um espaço imaginário onde posso ligar duas identidades.

Quando o termo surgiu, parecia catalogar apenas um certo tipo de pessoas, como estilistas ou fotógrafos de moda negros. Foi em busca do seu verdadeiro significado?
É uma boa maneira de o descrever, nunca tinha pensado dessa forma. No início, afropeu “significava” pessoas bonitas e de sucesso, mas, assim que comecei a viagem, pensei que, se aquilo era o que afropeu queria dizer, estava a excluir as pessoas que via no Eurostar [comboio que faz a ligação Londres-Paris], como os seguranças e funcionários da limpeza, ou, simplesmente, todos aqueles que levam os filhos à escola diariamente ou eu mesmo, que não venho de um mundo glamoroso. Para a palavra afropeu poder funcionar tinha de ser de forma a não envolver estilistas ou diretores de moda, mas aplicada às pessoas do quotidiano, aos cidadãos negros que vivem na Europa. A minha ideia de afropeu partiu-se e desfez-se em mil bocados ao longo dos anos e o objetivo deste livro foi juntar todos esses pedaços, aceitando que eles nunca vão estar unidos de forma perfeita. Há um mosaico de experiências, não é um mundo monolítico.

O que significa ser “um cidadão negro a viver na Europa”?
Significa, no sentido figurativo, viver na periferia das grandes cidades, e também à margem da identidade nacional. Afropeu é uma oportunidade de reconsiderar este conceito e pensar: a) como é que, hoje, os negros vivem na Europa?; b) entender que os negros vivem na Europa, porque a Europa esteve em África. Um pouco como “nós estamos aqui porque vocês estiveram lá”.

O que o levou a fazer esta viagem pela Europa negra?
Não sei como é em Portugal – aliás, sei, ou tenho um palpite pelo que me dizem –, mas nunca me contaram a história colonial e como eram os colonos britânicos, falam sempre sobre os grandes navegadores e descobridores e claro que isso não era bem assim, aliás, não era de todo, havia muita subjugação. Queria perceber o meu próprio contexto, mas também porque, durante a crise financeira de 2008, houve um racismo crescente. Comecei a ver algumas fraturas a aparecer, através de pessoas que conhecia de diferentes países, como Iémen, Jamaica ou Somália, e essas divisões surgem quando se tem menos dinheiro. Dei comigo a pensar como é antiga esta interessante relação entre o multiculturalismo ser atacado a seguir a uma crise financeira e o imperialismo ocidental. O multiculturalismo começou na Europa por causa do colonialismo e este novo colonialismo, que se pode descrever como novo capitalismo liberal, também criou multiculturalismo. Nessa altura, depois da crise financeira, as pessoas começaram a atacar os sintomas e não o vírus. O vírus é o sistema financeiro global que tem levado ao fracasso de muitos, e este, e mais os que estão no topo da sua pirâmide, não foram atacados, mas sim os seus sintomas, que são o multiculturalismo, ou seja, as pessoas que trabalham nesse sistema e que vêm de todo o lado. Foi depois da crise de 2008 que comecei a encaixar as peças para fazer a viagem e o livro.

Viajou para escrever o livro ou a ideia do livro veio depois?
Viajei para o escrever. Fiz a viagem em 2011, mas ninguém se interessou pela minha ideia, disseram que era muito de nicho de mercado. Só depois de o escrever, em 2018, é que uma editora o comprou.

Comprou um bilhete de interrail para fazer a viagem. Porque escolheu o comboio?
Este livro é sobre liminaridade, o espaço entre os espaços. De comboio vê-se, de forma gradual, uma cultura a transformar-se noutra. Quando cheguei ao destino do primeiro comboio que apanhei, todos os passageiros saíram disparados para as suas casas ou hotéis. Eu fiquei sentado no meu lugar algum tempo e vi chegarem dois senegaleses que entraram e começaram a limpar. Este é o mundo invisível do trabalho negro que não está bem documentado. Passam por ali milhares de pessoas, mas não pensam naquelas que mantêm as coisas no sítio, os que limpam ou fazem a segurança. Fica-se num hotel – as empregadas da limpeza deste onde estou, em Lisboa, são todas negras –, vai-se a um bar ou a um restaurante e não se olha para quem está entre estes espaços, e é aí que estão os africanos europeus. O comboio é como uma metáfora disto.

Em todos os sítios em que estive reconheci um toque europeu, prédios altos e blocos de apartamentos, mas a Cova da Moura foi o único que, remotamente, pode ser comparado à favela Rocinha, no Rio de Janeiro

Porque foi a cidades que não têm grandes comunidades negras, como Moscovo?
Quando pensei no livro, era obrigatório vir a Portugal, ir a França ou ao Reino Unido, mas havia outras histórias que também me interessavam. A Rússia pode não ter uma grande comunidade negra, mas se olharmos para o tempo da União Soviética e para o papel que teve na independência de alguns países africanos… A kalashnikov é um verdadeiro símbolo da descolonização. A União Soviética teve relações amigáveis com países africanos na fase da descolonização, havia pilotos e engenheiros a estudar nas suas universidades. Houve uma espécie de futuro alternativo que nunca emergiu e isso interessou-me.

O livro é uma tentativa de se ligar a pessoas que tiveram uma experiência de vida semelhante à sua?
Sim, completamente. Estava à procura de uma espécie de tribo, uma origem cultural que achava que faltava. Cresci numa área muito multicultural da classe trabalhadora de Sheffield [Inglaterra] e, quando a cidade aparece nas notícias ou quando se pergunta como imaginam o sítio, a minha zona nunca é mencionada. A minha ideia era que o mesmo devia acontecer pela Europa fora. Quando se olha para os guias de Lisboa, não se vê lá a Cova da Moura.

Onde foi buscar a ideia – tola, como escreve no livro – de ler Comboio Noturno para Lisboa, de Pascal Mercier, na viagem para Lisboa?
[Risos.] Uma das poucas coisas que sabia é que a minha viagem iria terminar em Gibraltar e que a última grande cidade seria Lisboa. Antes de começar, quando estava já na estação de comboios, andava à procura de um livro para ler e encontrei esse. Carreguei-o o tempo todo e só o li no Lusitânia Comboio Hotel, o comboio noturno para Lisboa.

O nome do capítulo sobre Lisboa é Uma favela europeia. Porquê?
Em todos os sítios em que estive reconheci um toque europeu, prédios altos e blocos de apartamentos, mas a Cova da Moura foi o único que remotamente pode ser comparado à favela Rocinha, no Rio de Janeiro. Este bairro é na Europa, mas a imagem com que ficamos quando o vemos é mais parecida com uma favela brasileira ou uma township [bairro de lata] da África do Sul. Quis dizer especificamente que na Europa também existem estes locais, não são uma coisa exótica.

Porque escolheu ir à Cova da Moura?
Quando estava a fazer pesquisa sobre os sítios a visitar, o que mais me interessava era a História, não no sentido clássico do termo, das datas, dos factos e desse tipo de coisas, mas os ecos da História, o que se estava a passar agora e porque é que os acontecimentos anteriores foram importantes. Fui aconselhado por pessoas que escreveram no site afropean.com a visitar a Cova da Moura por vários motivos, desde a rivalidade entre as comunidades angolana e cabo-verdiana à história do colonialismo português.

Sobre a Cova da Moura, escreve que “a vibração era estranha e diferente de tudo o que tinha experimentado”. O que encontrou?
Quando estava com o Jacaré, que foi quem me guiou no bairro, ele virou-se para mim e perguntou: “Olha à tua volta, o que vês?” Eu via as ruas, senhoras a assar chouriços e casas feitas “à mão”. Ele insistiu, “mas o que vês?” Depois reparei que os carros eram todos topos de gama da Mercedes ou BMW e fiquei surpreendido com esta disjunção entre aquilo que as pessoas querem mostrar quando passeiam pelas ruas de Lisboa e o facto de o sítio onde vivem não ser tão extravagante quanto o carro que conduzem. Isto é muito interessante. Não quero especular sobre as questões do tráfico de droga, muitas vezes o carro é uma maneira de mostrar um certo poder dos traficantes, foco-me mais naquilo que representa um carro para a comunidade negra, que é a noção de liberdade. Meter-se no automóvel e ir para qualquer lado, mesmo quando não há um destino certo.

O que mais o surpreendeu em Lisboa?
[Pausa.] Li que, certa vez, Salazar disse que “os países felizes não têm História”, um líder eremita queria transformar Portugal num país eremita. Fico espantado que o primeiro e último país colonizador seja tão pouco falado neste aspeto, a falta de informação sobre o colonialismo português surpreende-me.

Acha que a História do nosso colonialismo está um pouco escondida do mundo?
Sim, sim. Existe uma História fascinante e longa. Lisboa é um dos locais mais importantes do meu livro, por causa do legado do colonialismo. É importante falar neste assunto, não digo que será uma discussão fácil, haverá traumas com que lidar, mas tem de ser feita. Para avançarmos, temos de ser honestos sobre a nossa História. Salazar estava errado, claro, os países felizes têm História e devem reconciliar-se com ela e ser verdadeiros.

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