Aos 57 anos, a psicoterapeuta alemã tem dificuldade em eleger a sua memória de infância mais doce. O pai trabalhava na organização sem fins lucrativos Atlantik-Brücke, que tem como missão aprofundar as relações entre a Alemanha e os Estados Unidos da América. Stefanie Stahl recorda-se de as festas realizadas na casa da família, em Hamburgo, receberem ilustres convidados, como o ex-chanceler Helmut Schmidt ou o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger. A mãe era naturopata e interessava-se por psicoterapia, paixão que a filha herdou. Hoje, Stefanie Stahl vive na cidade de Trier, próximo da fronteira com o Luxemburgo, com o seu companheiro de há dez anos. Não têm filhos. Autora de mais de uma dezena de livros, vendeu cerca de 1,5 milhões de cópias, só na Alemanha, da obra Conhecer, amar e curar a sua criança interior (Lua de Papel), que chega agora a Portugal, depois de estar traduzida em 26 línguas. À VISÃO, explica o conceito de “criança-sombra”, que nos acompanha na vida adulta, e defende que é fundamental ter um olhar crítico sobre os pais para conseguir ultrapassar os traumas de infância. A psicóloga também estabelece uma relação entre a falta de autoestima, o perfecionismo e o burnout. Contudo, acredita que nunca é demasiado tarde para se resgatar uma infância feliz.
Por que razão a infância influencia tanto a vida adulta? Não é um pouco infantil ficar preso aos traumas dos primeiros anos de vida?
Não. Quando nascemos, só as funções básicas do cérebro estão em funcionamento. As emoções mais diferenciadas e a capacidade de reflexão só surgem mais tarde. Por isso, a forma como os nossos pais se comportam em relação a nós, e nos dão a sensação de sermos ou não amados, tem um impacto enorme na maneira como o nosso cérebro se desenvolve, é como se fosse o nosso software. Quando os pais estão sobrecarregados e stressados, e não dão atenção e amor aos filhos, as crianças não vão pensar: “Os meus pais estão assoberbados e deviam procurar ajuda terapêutica.” Em vez disso, pensam que não são suficientes, que são indesejadas, e essas crenças ficam profundamente enraizadas na sua autoestima.
A autoestima é o epicentro dos problemas de saúde mental. O que quer dizer com isso?
A autoestima é o epicentro de quase todos os problemas de saúde mental. Se desenvolvermos uma baixa autoestima, além de termos a sensação de que valemos menos do que os outros, sentimos que não temos impacto na nossa vida. E que as relações são algo que, simplesmente, temos de aguentar e sobre o qual não temos influência. Quando os pais são muito rígidos e têm falta de empatia, as crianças recebem a mensagem de que têm de ajustar o seu comportamento às necessidades dos pais. Por outro lado, se tivermos pais suficientemente bons – eles não precisam de ser perfeitos – ao ponto de suprirem as necessidades dos filhos, as crianças percebem que podem ajudar a moldar as relações e que os seus desejos também são importantes, não são só os dos outros.
De que forma a falta de autoestima influencia as nossas relações?
Quando cresço com este sentimento de que não sou suficiente, isso tem um tremendo impacto na forma como me perceciono. As outras pessoas são melhores e mais fortes do que eu e, por isso, tenho facilmente a perceção de que elas podem tornar-se inimigos. E isso tem uma grande influência na maneira como me comporto em relação a elas. Todos os problemas relacionais se devem a estes conceitos: apego e autonomia. O primeiro implica ser demasiado apegado e hiperadaptativo, ou seja, ser guiado pelo medo da perda, procurar ir ao encontro das expectativas do outro, ser ciumento… Em sentido contrário estão aqueles que, assim que a paixão acalma, sentem demasiada pressão para a intimidade e fogem porque dizem precisar de liberdade. Muitas pessoas estão em desequilíbrio em relação a estas duas necessidades básicas. Ou são demasiado apegadas ou são demasiado autónomas.
É por isso que sublinha a importância de os pais encontrarem um equilíbrio entre o apego e a autonomia, desde cedo? Como se consegue essa harmonia?
Na verdade, é muito fácil. Só têm de transmitir aos filhos a sensação de que são verdadeiramente amados. Para isso, têm de cuidar deles e cuidar deles também significa não os pôr demasiado cedo num infantário…
Poucas pessoas podem fazer isso…
Sim, nem todas as pessoas podem fazê-lo, mas é importante estar presente. Ligar-se aos sentimentos dos seus filhos. O primeiro passo é a criança perceber que os seus sentimentos são legítimos e que lhe é permitido ter a sua própria vontade. Não quer dizer que os pais cedam sempre, mas, às vezes, têm a hipótese de fazer o que os filhos querem e isso mostra-lhes que eles têm impacto na vida e que podem moldar as relações, em vez de simplesmente suportá-las.
Diz que nunca é demasiado tarde para ter uma infância feliz. O que quer dizer com isso? Soa demasiado otimista.
A forma como os nossos pais se comportam em relação a nós, e nos dão a sensação de sermos ou não amados, tem um impacto enorme na maneira como o nosso cérebro se desenvolve
Quero dizer que se tivermos tido o azar de crescermos com uns pais que não eram muito atenciosos e carinhosos, a coisa mais importante que devemos compreender é que crenças como “eu não sou suficiente” ou “eu não sou importante” não nos pertencem. Elas não dizem nada sobre o nosso valor enquanto pessoas. Elas só dizem algo acerca da nossa infância. Imensas pessoas identificam-se profundamente com a ideia de que não são suficientes e isso molda todas as suas decisões, mas, quando refletem sobre isso, percebem que se os seus pais tivessem sido diferentes, elas teriam um sistema de crenças completamente diferente. Imagine o alívio das pessoas que tiveram uma infância realmente traumática quando percebem que foi tudo completamente arbitrário. Os seus pais fizeram um péssimo trabalho, mas elas não tiveram culpa nenhuma, eram crianças absolutamente amáveis tal como eram.
Mas a culpa dessas crenças não é só dos nossos pais…
A ideia não é culpar os nossos pais e dizer que eles são totalmente responsáveis por quem somos. Os genes também têm impacto e, claro, as interações com outras pessoas. Agora, os nossos pais são muito importantes porque, habitualmente, são os nossos primeiros cuidadores. E o que acontece nos primeiros anos de vida é muito marcante. A minha mensagem é que se querem conhecer o vosso software, se querem saber o que vos foi inculcado no cérebro inconscientemente, têm de olhar para a vossa infância. Há muitos pais que fizeram um bom trabalho, mas se queremos viver a nossa vida autonomamente, é muito importante que nos desapeguemos deles de forma saudável. E desapegarmo-nos dos nossos pais não significa que já não os amamos, mas que refletimos sobre quais os valores que realmente nos pertencem e aqueles que fazem parte de um antigo sistema que, na verdade, já nada tem que ver com a realidade atual, mas apenas com a forma como fomos criados.
Mas é muito difícil criticarmos os nossos pais… Como podemos pacificar-nos com isso?
As crianças são muito leais aos seus pais. Por isso, quanto mais sentirmos resistência a criticar os nossos pais, mais isso nos diz que ainda estamos demasiado próximos dessa lealdade da infância. É importante conquistar um distanciamento saudável, de outra forma, vivemos a vida dos nossos pais e não a nossa própria vida. Se quisermos ver-nos livres das nossas crenças da infância temos de ter a coragem de as devolver aos nossos pais.
Cunhou os conceitos de criança-sol e criança-sombra, que nos acompanham na vida adulta. O que os distingue?
A criança-sombra é uma metáfora das marcas deixadas pela nossa infância azarada ou infeliz. Não existem pais ou infâncias perfeitas, toda a gente tem uma criança-sombra dentro de si, houve sempre alguma coisa que não correu assim tão bem. Já a criança-sol é sinónimo da nossa parte mais saudável, do que correu bem. Afinal, a maior parte dos pais faz muitas coisas bem. A criança-sol também inclui todas as coisas que podemos mudar agora que somos adultos. Quando já não me identifico com a minha criança-sombra, o que sobra de mim? Preciso de algo novo a que possa ligar-me e a criança-sol é muito útil para isso.
Como se pode aprender a ter autoestima?
O primeiro passo é o desapego. Esta revelação de que as nossas crenças internas não dizem nada sobre nós e a nossa realidade atual, nem sobre o nosso real valor, mas apenas sobre a forma como fomos educados. O seguinte é ter consciência de que esta criança-sombra existe dentro de nós e estabelecer uma conexão com ela. Somos muitas vezes guiados pela nossa criança-sombra, sem sequer nos darmos conta, porque estes mecanismos são essencialmente inconscientes. A seguir, devemos desenvolver a nossa criança-sol, ou seja, o nosso lado solar.
Escreve que um dos mecanismos de defesa das crianças-sombra é o perfecionismo, que tendemos a ver como uma qualidade…
São raros os casos em que o perfecionismo está ancorado numa verdadeira paixão por uma tarefa. Claro que existem mas, na maioria das vezes, o perfecionismo é uma estratégia de defesa contra o medo de ser magoado. Se eu for perfeito, não cometo erros e, se eu não cometer erros, ninguém me poderá criticar. É um meio para proteger a criança-sombra de ser rejeitada. O lado negro desta estratégia é que os perfecionistas querem satisfazer as necessidades de toda a gente. Por isso, têm muita dificuldade em dizer não. Isso leva-os a não terem consciência dos seus limites. Em última instância, pode conduzir ao burnout.
Como assim?
As pessoas que sofrem de burnout querem corresponder às expectativas, aprendem desde cedo que para serem amadas têm de se adaptar às necessidades dos outros, e as suas não são assim tão importantes. Tentam ser perfeitas no trabalho e dizem muitas vezes “sim”, apesar de, às vezes, ser muito melhor para elas dizer “não”. Ultrapassam os seus limites até o corpo quebrar e só nesse momento percebem que foi demasiado. Até essa altura, não tinham uma boa ligação com os seus próprios sentimentos. A sua consciência estava muito mais em sintonia com os outros do que consigo.
Como podemos restabelecer essa ligação com os nossos sentimentos?
Estando consciente deles. Para as pessoas hiperadaptativas, suprimir sentimentos é um reflexo automático. Assim que existe mais alguém na sala, começam inconscientemente a ajustar-se às suas necessidades. Por isso, têm de decidir, conscientemente, conectar-se com os seus próprios sentimentos. Aconselho-as a retirarem-se para o seu interior e a procurarem sentir quais são as suas necessidades naquele momento; isso não significa que possam satisfazê-las sempre, mas o primeiro passo é, pelo menos, ter noção delas. É preciso treinar este mecanismo como se fosse um desporto, para ganharmos consciência sobre como nos sentimos.
Uma coisa é reconhecer os nossos traumas, outra é agir em relação a eles. Como podemos mudar algo que faz parte de nós? Isso não implica uma mudança de personalidade?
Não, de todo. Um dos meus mantras é “encontra-te e muda”. Assim que compreendemos a nossa criança-sombra, temos de estar conscientes dela e impedi-la de se manifestar no dia a dia, dando prioridade à nossa criança-sol, o nosso lado mais saudável, ligado ao pensamento racional. Alguém criticar-nos pode espoletar o modo criança-sombra, mas temos de mudar para o olhar do adulto e recusar as nossas crenças da infância, porque elas nada dizem sobre o nosso real valor. É isso que temos de treinar.
Continuamos a não dar a devida importância à saúde mental?
Não conheço a realidade portuguesa, mas na Alemanha tem vindo a melhorar. Cada vez mais celebridades falam publicamente sobre terem sofrido de depressão ou de ataques de pânico. Na nossa sociedade, pelo menos no mundo ocidental, as pessoas estão cada vez mais abertas a mostrar que estão vulneráveis ou que em algum momento tiveram problemas.
E a pandemia pode contribuir para esses avanços?
Creio que sim, porque a pandemia causou muitos problemas psicológicos e, ao mesmo tempo, ajudou a normalizá-los. A vida implica crises ocasionais. Só o facto de morrermos no fim é insuportável…