“Um país só pode discutir a eutanásia se der cuidados paliativos a 100% da população”

“Um país só pode discutir a eutanásia se der cuidados paliativos a 100% da população”

Médica geriatra formada pela Universidade de São Paulo, no Brasil, tem dedicado a sua vida profissional a investigar e a aliviar o sofrimento de doentes terminais e a resgatar as suas biografias. Há dois anos, a fundadora da Casa do Cuidar fez duas visitas a Portugal para uma série de palestras gratuitas e mantém uma estreita colaboração com profissionais de saúde no nosso país. Aos 52 anos, é mundialmente conhecida por suas formações e seus livros. Em Histórias Lindas de Morrer (Oficina do Livro), apresenta casos que acompanhou com o intuito de dar a conhecer o que a morte nos ensina sobre a vida e o amor. A nossa entrevista virtual teve lugar duas horas depois do previsto, em virtude de uma ação formativa de última hora a médicos na frente de combate à pandemia. Depois, iria a casa de uma doente oncológica para iniciar a sedação paliativa. Ao longo de 50 minutos de conversa, falou sem reservas de um assunto que toca a todos, mas que ainda permanece um tabu.

O que a levou a enveredar pelos cuidados paliativos?
Os médicos tendem a perder-se na resolução de problemas técnicos – controlar os níveis de potássio, reduzir um tumor –, mas deveriam ter como horizonte proporcionar bem-estar ao corpo e levar o paciente a sentir que vale a pena viver. Após a minha formação em Medicina, eu não compreendia porque os profissionais de saúde se distanciavam do alívio do sofrimento das pessoas, quando elas tinham uma doença que ameaçava a continuidade da vida, e fiz uma pós-graduação nessa área, fora do meu país. Por serem menos de 20% as faculdades brasileiras com acesso a este conhecimento, fundei a Casa do Cuidar, uma organização não-governamental para formar profissionais de saúde.

O que mudou desde o seu bestseller (A Morte É Um Dia que Vale A Pena Viver, 2016)?
Com a situação calamitosa que vivemos no Brasil, ganhou-se outra consciência da importância dos cuidados paliativos. Há pouco, estive a ensinar médicos da urgência a administrarem morfina a doentes que não têm acesso a ventiladores e estão em agonia: ao fazerem-no, aliviam a falta de ar e estabilizam a pessoa, ganhando tempo até poderem transferir doentes.

Lidamos mal com a morte e o luto. Como se lida com tantas mortes na pandemia?
Neste ano, acordo, ligo o telemóvel e as notícias que recebo mostram que o hoje é pior do que o ontem. Quando me perguntam como estou, não consigo dizer que está tudo mal, pois amanhã pode ser pior. Dizer que está tudo bem é negar o que está a acontecer, de facto. A minha resposta agora é “estou viva”. Neste processo de luto coletivo, quem está saudável deve ajudar. É o que tento fazer, diariamente, também com colegas portugueses. Não estamos de mãos dadas, mas de vozes dadas para cuidar, sobretudo agora que o Brasil é o pior país para se morrer e onde o vírus mata mais depressa.

Os médicos tendem a perder-se na resolução de problemas técnicos – controlar os níveis de potássio, reduzir um tumor –, mas deveriam ter como horizonte proporcionar bem–estar ao corpo e levar o paciente a sentir que vale a pena viver

De que projeto se trata?
É uma parceria multidisciplinar, que resultou no podcast Pílulas de Saber e de Sabedoria, e visa dar suporte a médicos e a outros profissionais de saúde. São episódios curtos com conteúdos técnicos, apoio emocional, musicoterapia, mas também poesia e meditação guiada. Começou no início da pandemia e tem tido um grande impacto, sobretudo agora.

O que fazer para não ir abaixo num cenário equivalente a uma guerra?
Só se consegue estar na realidade pela arte: continuo de pé porque tenho aulas de canto, leio e escrevo poesia. Um profissional de saúde é um artista, um guia de turismo, um músico, um professor de História, e nenhum deles é especializado em doenças.

Como ter um bom final de vida, dada a escassez de meios e a tanta perda de vidas?
Não é impossível. O meu amigo e professor de arte com quem frequentava cinco aulas semanais de pintura teve Covid-19. Foi internado e entrou na Unidade de Cuidados Intensivos em estado grave. Enviei-lhe um WhatsApp dizendo-lhe que ele era corajoso e que eu estava muito orgulhosa dele. No mesmo dia, pediram-me para ajudar a mãe, desamparada e em desespero. Disse-lhe: “Se tem esperança de que ele vai melhorar, não gaste a sua energia a chorar; caso ele sobreviva, vai precisar muito de uma mãe inteira ao lado dele.” Pedi-lhe para se organizar e gravar uma mensagem de áudio, que eu faria chegar ao ouvido dele. Falar com alguém aflito a partir de um lugar de verdade proporciona vida, em vez de desespero, a quem ainda não morreu. No dia seguinte, ele retribuiu com um emoji de um coração a pulsar. Ouvir a mãe e receber mensagens de familiares e de amigos deu-lhe uma perceção de que não estava sozinho e de que era amado. Morrer cedo e antes dos pais é a pornografia do sofrimento: às vezes, a morte é obscena e cruel mas, mesmo nessa dor terrível, é possível encontrar esperança e fazer algo que depende de nós.

É nesse sentido que se aplica o título do seu novo livro, Histórias Lindas de Morrer?
Inspirei-me nas expressões que usamos no quotidiano: “Morro de saudades de ti” ou “Estavas linda de morrer”. Falamos assim num contexto que representa o ponto mais alto de alguma coisa. No livro, há histórias de morte, mas são lindas. As pessoas emocionam-se, não pela tristeza da morte mas pela beleza da vida até ao momento em que partem, ou depois dele.

Uma dessas histórias é a dos seus pais. Apesar dos dilemas que enfrentou, afirma no livro que a morte da sua mãe foi a mais linda que conheceu.
Foi há cinco anos, num Domingo de Ramos. Ela sempre quis que eu fosse à missa de Páscoa. Nesse ano, fui e senti-a a sorrir, como quem diz: “Tens de ir a esta, nem que seja a do sétimo dia da minha morte!” O nascimento vem povoado de sonhos dos nossos pais e de expectativas do mundo, mas a nossa morte é a coisa mais pura que vamos viver, é a nossa biografia. A sorte é lançada, fizemos as nossas apostas e morremos com esses momentos.

Todas as histórias que apresenta ilustram o que entende por uma “boa morte”. O que é?
As histórias são entremeadas por excertos, em itálico, de momentos, alguns com humor. Podemos sair de uma história e ficar em lágrimas e, logo a seguir, ver também a beleza. É um convite à vida feita de dilemas humanos para os quais é preciso encontrar significado: o homem que enfrenta a traição, a mulher que rejeitou a filha que cuidou dela depois. Não mudamos as histórias de vida, mas podemos olhar para o amor que há dentro delas. Foi o caso do sem-abrigo, que nunca teve nada e, no final da vida, pediu a minha amizade.

Quais as principais necessidades de quem está em fim de vida e dos seus familiares?
O respeito pelas dimensões do sofrimento. A dor física, própria da doença, a dor emocional, a mágoa e a raiva não devem ser minimizadas. Os cuidadores até podem identificar-se com essas dores e medos, mas sem transferir para o outro a incumbência de resolvê-los ou substituir-se a ele nas decisões a tomar. O luto começa quando nos damos conta de uma perda que vai ser real e irreparável, mas que nos dá coragem para ter conversas sinceras sobre o fim.

Em momentos duros, os profissionais de saúde devem esconder as suas emoções?
Tendem a proteger-se ao colocar uma barreira para não perderem a postura, mas não impedem que os pacientes sintam isso. Se me perguntarem “vou morrer?”, eu devolvo: “Porque pergunta?” Não é preciso mentir nem ser cruel, basta estar disponível para falar sobre isso. Se a resposta for “estou com medo de ter muita dor”, há espaço para dizer “eu vou tratar dessa dor; tem mais algum medo?” Disseram-me coisas como: “Tenho medo do depois, porque cometi erros que não têm perdão”. A abordagem aqui foi: “Se fosse Deus, perdoava?” O paciente replicou que “sim, não foi de propósito”, abrindo uma nova dimensão para deixar de se sentir só no meio do seu sofrimento, mesmo além da morte.

Se for um ateu, pode ser mais difícil lidar com isso?
De todo, porque não existe o depois e o durante foi vivido de forma mais intensa e verdadeira face a muitos religiosos. O sofrimento espiritual do ateu é o sentido da vida dele, o seu legado, o amor e a gratidão por aquilo que teve.

Como se superam situações em que não é possível despedir-se de quem morre?
Reconstruindo pistas da relação, a partir daquilo que foi possível fazer naquelas circunstâncias. Uma auxiliar de enfermagem que perdeu a mãe na pandemia e não pôde vê-la enviou uma mensagem de áudio e confessou-me, sete meses depois: “O que mais me traz paz é saber que ela ouviu a minha voz a dizer que a amava.” As ligações existentes permitem manter intacta a integridade do amor que existiu até aquele dia.

O que dizer sobre a eutanásia, se a questão partir do paciente?
Aí, o que ele diz é que não admite ter consciência de um processo de adoecer que lhe retire a dignidade: para uns, ela pode significar não usar fraldas, para outros é ter lucidez ou mobilidade. Trata-se de um parâmetro individual que precisa de ser partilhado. No Brasil, a eutanásia é proibida. Respeito quem faz e quem pede, não julgo o peso do fardo que não carrego, mas uma coisa é muito óbvia: um país só pode discutir a eutanásia se der cuidados paliativos a 100% da população. Sem essas condições, não há maturidade para essa discussão, porque vai oferecer a morte como alternativa ao sofrimento em vez de uma alternativa ao cuidar do sofrimento. O orgasmo, o sono e a morte só acontecem quando se abre mão do controlo. A eutanásia é uma escolha que procura controlar o que seria o auge da experiência humana de entrega e plenitude.

Como consegue gerir tanta intensidade e entrega, enquanto médica, no plano pessoal?
Pela arte. Apreciar a Sonata ao Luar, de Beethoven, que compôs algo com tanta beleza sendo surdo, é a minha oração neste caos. Posso contar o que se passou comigo quando fui ver um velho amigo a Fortaleza que ia ser submetido a um procedimento de risco com indução de sedação profunda para mudar o ventilador: ele abriu muito os olhos, como se fosse morrer. Pensei: “Não vais fazer isso.” A frequência cardíaca baixou ao ponto de ter uma paragem cardíaca e precisar de reanimação. Naqueles quatro longos minutos, pensei em sair por não aguentar ver, mas não o fiz. Não é da minha conta acreditar, ou não, na vida depois da morte, embora existam relatos de experiências em que a pessoa se vê fora do corpo. Só posso dizer que senti a mão dele no meu ombro, assustei-me e disse, chamando-o pelo nome: “Se não for a tua hora, volta, por favor!” Ele voltou. Contei isto ao grupo de alunos da faculdade e fiz saber: “Não autorizo que morram à minha frente. É um grau de intimidade muito intenso, o mais íntimo que se pode ter com alguém, não é dar um beijo na boca ou fazer amor, é morrer na presença de alguém.” O que aprendi como médica devo aos meus pacientes e tenho isso em mente em cada cuidado que presto. São essas histórias que me fazem ser quem sou.

Depois desta partilha, deseja dizer mais alguma coisa, algo que projete para o futuro?
[Pausa.] Esta pandemia convida-nos a não deixar para depois a oportunidade de revelar o quanto amamos: não guardem segredo sobre o amor. Quanto ao futuro… comecei a escrever sobre o envelhecimento e terá um título do tipo “livro para quem não quer morrer cedo”.

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