Natural de Wuppertal, na Alemanha, vive e trabalha na Suíça, onde dirige o departamento de neuropsicologia da universidade de Zurique. O novo projeto de investigação da sua equipa, sobre o impacto da música no cérebro, publicado em janeiro no Journal of Neuroscience, mostra como a perícia musical molda as redes funcionais e estruturais do cérebro, reforçando e ampliando as conexões neuronais, mais pronunciadas em músicos do que em leigos. As implicações deste trabalho também são úteis para o cidadão comum, e Jäncke explica porquê: a nossa cabeça é uma máquina que aprende ao longo da vida e que possui plasticidade cerebral, mas essa capacidade tende a perder-se, a menos que se comece a estimulá-la desde cedo e que se invista tempo suficiente na prática. Só assim é possível tirar partido dos ganhos da música no desenvolvimento das funções sensoriais, de controlo e de memória. Além do prazer que proporciona, a audição, execução e composição de melodias desempenham um papel crucial na nossa espécie, nomeadamente no estabelecimento de vínculos, na indução de estados emocionais e na reabilitação de condições neurológicas e psiquiátricas. Aos 63 anos, e casado com uma colega de profissão, o cientista deixa pistas para explorar este potencial e fala-nos da própria ligação com as notas.
“A música é a tua única amiga até ao fim”, cantava Jim Morrison, da banda The Doors. Esta afirmação é cientificamente verdadeira?É uma banda com a qual cresci e de que gosto muito. Iniciei a minha carreira como investigador da música por acaso, nos anos 90 do século passado, a estudar o cérebro de músicos com recurso a ressonâncias magnéticas, que eram técnicas novas naquela altura. A ideia era avaliar como a música moldava a individualidade e se a prática precoce era relevante.
Como se explica que a música seja uma experiência tão gratificante?
O facto de ter uma função importante na evolução da espécie e de ser uma força motriz que nos liga uns aos outros. Sabia que, há 40 mil anos, os nossos antepassados construíram uma flauta com três orifícios? É um instrumento relativamente silencioso. Imagino que estariam motivados a tocar melodias à volta da fogueira e a sincronizar emoções e movimentos pelo ritmo. Este registo de comunicação, pré-verbal, permite sincronizar grupos em diferentes registos emocionais, positivos e negativos. Na guerra, por exemplo, as tropas marchavam a um certo ritmo e com propósitos agressivos.
O que mostra o seu estudo sobre as ligações entre a música e o cérebro?
Os músicos profissionais têm mais ligações anatómicas e funcionais: os circuitos cerebrais apresentam uma maior robustez e disparam de forma sincronizada. Quanto mais cedo se iniciar o treino musical, maior tenderá a ser essa conectividade.
Há fases críticas para desenvolver competências musicais?
Não diria que elas existem como sucede no reino animal, mas a plasticidade, de facto, é maior em idades mais jovens. Alguns músicos da amostra começaram aos 5 anos e fizeram-no até aos 50, durante oito horas por dia, em média. O efeito cumulativo da prática molda o cérebro e é decisivo para se aprender competências, sejam elas línguas, xadrez ou golfe, pela forte correlação entre desempenho e tempo de treino.
Quando se deve começar para se tirar partido da plasticidade neuronal?
Os últimos 25 anos de investigação permitem afirmar que, se não usarmos a plasticidade cerebral que temos, perdemo-la, porque há funções que deixam de estar disponíveis e as ligações neurais diminuem. Os pais devem saber isto: o que os vossos filhos fizerem, ou não, durante a puberdade, ou antes dela, vai moldar o cérebro deles. Aprender uma atividade que implique autocontrolo ou estar sentado a olhar para ecrãs tem resultados distintos. Aquilo que fizermos na adolescência e o tempo que investirmos nisso serão determinantes na construção das reservas cognitivas e anatómicas do cérebro e na forma como ele envelhece.
Ficar privado de atividades durante a pandemia inibe esses efeitos?
Se tiver autodisciplina, pode exercitar o corpo, aprender coisas novas e dedicar-lhes tempo. Porém, as medidas de combate à pandemia limitam a dimensão presencial, e não estamos biologicamente programados para estar sós. Há estudos que mostram que a solidão aumenta o risco de degenerescência cerebral, e isso é um pouco assustador pelos efeitos a longo prazo.
O que se sabe sobre a interação entre a experiência e o talento?
Para ser um génio musical, é preciso ter talento, que tem uma componente genética, e praticar. Estudei dezenas de músicos talentosos, e todos tinham em comum o treino intensivo. Prática sem talento, mesmo que seja muita, não torna alguém num exímio profissional. Porém, o talento não existe sem prática, como mostram os exemplos do tenista Rafael Nadal ou do golfista Tiger Woods. Pessoas que não têm esta vantagem, mas que estão altamente motivadas para aprenderem a tocar um instrumento na idade adulta, podem alcançar resultados muito satisfatórios em alguns anos.
É de admitir que isso seja viável na reforma, com mais tempo livre?
A investigação mostra que é possível moldar o cérebro em idades tardias, pela estimulação das funções executivas, que incluem a coordenação audiomotora, a memória, a atenção e a autodisciplina. Se as usar, não as perderá e pode mesmo fortalecê-las e aumentá-las. Estudámos oito pessoas reformadas que nunca tinham pegado num instrumento e contratámos um professor, durante meio ano, para ensiná-las. Cinco anos depois, dei uma entrevista num programa de rádio e uma dessas pessoas – tinha 65 anos – deu um concerto de clarinete. Foi fantástico e até me deu arrepios!
Numa Ted Talk, falou desses arrepios. Como se explicam cientificamente?
É uma sensação muito boa, que percorre a nossa coluna vertebral e se deve às muitas emoções e memórias que a música desencadeia no corpo humano. Se eu ouvir Rolling Stones, ou Jim Morrison, lembro-me, de forma vívida, de episódios da minha juventude, isso é inevitável. Chamo-lhe música sentimental. Há também aquela que envolve um tema. Na composição Pedro e o Lobo, por exemplo, cada personagem tem o “seu” tom e velocidade. Ouvir a melodia ativa a imagem dela no cérebro, como num filme.
Antecipar a ida a um concerto ou trautear canções no duche altera a arquitetura cerebral?
Tudo o que fazemos, com frequência e de forma repetida, molda o cérebro. Trautear a mesma canção no duche ou imaginar uma melodia, várias vezes, é uma forma de exercício que nos distingue dos outros animais.
“Diz-me o que ouves, dir-te-ei quem és.” Os estilos musicais influenciam a conduta?
Ouvir deliberadamente certas melodias induz memórias e emoções específicas que nos ajudam no quotidiano, seja alterando um estado depressivo ou como forma de se motivar antes de uma competição.
O que é o tom [pitch, em inglês] perfeito?
Quem tem ouvido absoluto consegue identificar tons sem usar uma nota de referência; sabe logo que é um dó ou um si bemol, por exemplo. Mozart tinha essa capacidade. Nos anos 1990, avaliámos músicos talentosos com ouvido absoluto, e foi uma surpresa constatar que tinham uma organização cerebral semelhante aos outros.
O que pensa das descobertas do neurologista Oliver Sacks (apresentadas no livro Musicofilia)?
Conheci-o pessoalmente! Quando a minha equipa publicou o primeiro artigo sobre o cérebro dos músicos, na revista Science, em 1995, ele respondeu, notando que alguns dos seus pacientes autistas tinham ouvido absoluto e as mesmas peculiaridades anatómicas no cérebro, o que resultou numa frutuosa colaboração transcontinental.
Em pessoas que sofreram um AVC, a estimulação passiva com música permite manter vivas as áreas do cérebro onde há tecidos que vão morrer. A musicoterapia estimula funções cognitivas e emocionais em doentes neurológicos
Estudaram também as alucinações auditivas?
Ele citou-nos, algumas vezes, no livro, ao referir-se à sinestesia auditiva, uma espécie de dupla perceção partilhada por cerca de 30% dos músicos profissionais: uma nota é associada a uma cor quando é processada no córtex auditivo. Pessoas com competências musicais desenvolvidas têm uma conectividade semântica comum a quem sofre de alucinações auditivas por perdas de audição. As áreas da memória ativam-se espontaneamente e, na rede de memórias, no córtex temporal, surgem melodias sem que consigam inibi-las. Ao interpretar os sintomas dos seus pacientes, Sacks chegou à mesma conclusão do que nós.
O cantor Bobby McFerrin demonstrou o efeito contagiante da escala pentatónica. Como o explica?
As estruturas harmónicas geram alterações fisiológicas, sincronizando a respiração, o movimento e os batimentos cardíacos. Sou de Colónia, conhecida pelas músicas de Carnaval, que são um bocado estúpidas. Após algumas cervejas, começamos a mover-nos ao ritmo delas. É inato: ao captarmos esses sinais auditivos, eles modelam o nosso comportamento motor e… não resistimos!
Há estudos com música nos cuidados intensivos. Pode falar-se na sua aplicação clínica?
Pacientes em coma respondem à música, no plano corporal, de forma inconsciente. Artigos publicados em revistas científicas, como a Nature ou a Lancet, permitem admitir que pode e deve ser usada na reabilitação neurológica e psiquiátrica. Em pessoas que sofreram um AVC, a estimulação passiva com música permite manter vivas as áreas do cérebro onde há tecidos que vão morrer. A musicoterapia estimula funções cognitivas e emocionais em doentes neurológicos.
Também pode ser utilizada em contextos não clínicos, como os lares?
Traz sempre efeitos benéficos. Há cada vez mais comunidades de pessoas idosas que organizam iniciativas com música para esse fim. Pacientes com Alzheimer em fase avançada conseguem lembrar-se de coisas de que há muito tinham esquecido.
Como a ex-bailarina espanhola do New York Ballet, com Alzheimer, que movimentava os braços ao som d’ O Lago dos Cisnes.
É um exemplo fantástico. Ela praticou os movimentos da peça de Tchaikovsky durante toda a sua vida e, apesar de não identificar a música, o corpo reagia a esta pela programação motora instalada no cérebro. A terapia de entonação melódica é usada na cura da afasia de Broca [perturbação neurológica em que há dificuldade em expressar-se por palavras]. Estes pacientes não conseguem falar mas, ao entoarem melodias simples, como “lá-lá-lá-lá”, depois “tou-tou-tou-tou”, a certa altura começam a cantar “eu estou bem, sim”, ou seja, incorporam os fonemas desta forma. No passado, esta terapia não teve grande êxito, mas ilustra o potencial da música na promoção de efeitos terapêuticos.
Tantos anos a estudar os efeitos da música no cérebro mudaram-no?
Eu era um iletrado nesta área e fã de bandas como Roxy Music, Bryan Ferry… Quando comecei a estudar o cérebro de músicos profissionais, eles iam ao laboratório com frequência. Passei a apreciar o que faziam e tornei-me, também, um fã de música clássica. Isso mudou, de facto, a minha vida. Há dois anos, decidi iniciar-me no piano, a fim de avaliar como o meu cérebro muda. Desde então, sou um sujeito experimental e posso dizer-lhe isto: há muita coisa a acontecer aqui! [Aponta para a cabeça e solta uma gargalhada.]