“A democracia não aguenta tantas disparidades”

“A democracia não aguenta tantas disparidades”

Como é a pandemia irá mudar o capitalismo? É a essa pergunta que Grace Blakeley tenta responder no livro O Choque do Coronavírus (Gradiva). Em entrevista à VISÃO, a economista e comentadora britânica apresenta o seu olhar sobre a crise, mostrando-se cética acerca da estratégia económica usada para a superar. Antecipa um ressurgimento do ativismo no pós-Covid-19 e defende reformas profundas para combater as alterações climáticas que não sejam “pedir para reciclarem palhinhas de plástico”.

Há muito tempo que ouvimos que o capitalismo está a atingir o seu limite. Por que razão será diferente desta vez?
Historicamente, tivemos mudanças na natureza do capitalismo. No meu primeiro livro [Stolen: How to Save the World from Financialisation], olho para como ele mudou após a II Guerra Mundial, com um modelo mais keynesiano, seguido pela viragem neoliberal. Agora estamos a entrar num limiar entre esse neoliberalismo e o que vem a seguir. O que temos de nos perguntar não é se há problemas com o capitalismo. Claramente, há. Nem se podemos continuar como nos últimos 40 anos sem causar problemas profundos. Basta olhar para as alterações climáticas. A questão a colocar é que forma irá esta nova adaptação tomar. Um dos caminhos é o capitalismo adaptar-se a esta crise e proteger os interesses da classe dominante. Já estamos a ver isso, com uma concentração maior de empresas, maior colaboração entre grandes grupos, e entre grandes bancos e os Estados, para controlar aquilo que acontece em sistemas com mercados supostamente livres e para garantir que as implicações políticas não se tornam muito desestabilizadoras. Existe outra forma de nos adaptarmos a esta crise e de nos focarmos nos interesses da classe trabalhadora e da maioria.

O desenvolvimento da vacina para a Covid-19 não mostra que a combinação de financiamento público e interesse dos privados em desenvolvê-la nos permitiu ter vacinas num tempo recorde?
Certamente, para o mundo rico. O problema é que há milhões de pessoas que terão de esperar muitos anos ou que nunca terão acesso a esta vacina. Sim, é possível governos ricos trabalharem com enormes multinacionais para nos darem coisas que sirvam o bem comum. Sabemos disso há muito tempo. Foi esse o modelo de capitalismo do pós-II Guerra Mundial. Foi o que nos deu a internet e tantas outras tecnologias. Mas, se esses benefícios ficam apenas no mundo rico e não são bem distribuídos, temos um grande problema.

Parte deste livro foi escrito em plena crise. Mudou de ideias em relação a algum ponto? Por exemplo, no início antecipou-se um recuo da globalização, que agora há mais dúvidas que venha a ocorrer.
Estamos a assistir a uma desglobalização nalgumas áreas desde a crise financeira de 2008. A globalização financeira claramente recuou. Não será uma grande rutura, mas pode ser uma tendência de longo prazo. Mas a grande mudança têm sido as diferentes experiências em diferentes setores da economia. Inicialmente, diria que haveria um grande choque que afetaria toda a gente e levaria a uma longa e profunda recessão. Hoje, ainda acho que as implicações económicas serão sentidas por muito tempo, mas, em vez de uma redução universal de atividade económica, vamos assistir à criação de uma economia altamente dividida, em que um grupo de profissionais, que podem trabalhar de casa com salário completo, vão continuar a fazê-lo, com segurança no emprego, poupanças acumuladas, podendo pagar as suas dívidas…

… Uma recuperação em K.
Sim. Depois, há a outra metade da população, que continuou a trabalhar, outros perderam o emprego, os que ainda têm poupanças dependem delas, estão muito endividados… Para eles, acho que as coisas vão continuar a piorar. As instituições democráticas normalmente não representam um desses grupos. Por vários motivos: a dinâmica de representação partidária, a natureza das instituições ou, simplesmente, porque muitas dessas pessoas não votam, por não verem possibilidades de mudança real. Isso cria problemas muito profundos, não apenas ao capitalismo, mas à democracia. A democracia não aguenta disparidades tão grandes. As pessoas tiram o seu apoio ao sistema e a legitimidade erode-se. Vejo muitos jovens a dizer que não acreditam na democracia, no capitalismo ou no liberalismo.

Essas pessoas estão a encontrar representação noutros partidos?
Será um grande, grande problema. Principalmente na extrema-direita. A maior parte dos partidos centristas fez um mau trabalho de adaptação às mudanças sociais e a níveis mais altos de polarização. Os partidos mais bem-sucedidos à direita tornaram-se mais populistas. Os conservadores britânicos são um bom exemplo, tal como os republicanos de Donald Trump. À esquerda, não vimos o mesmo nível de sucesso com o populismo.

À esquerda, muitos acham que a resposta que o setor público está a dar à crise é um passo na direção certa face à crise anterior, com uma expansão dos poderes económicos do Estado. É cética sobre essa possibilidade. Porquê?
Basicamente, porque sou uma marxista, não uma keynesiana. E Marx era cético sobre a capacidade de um Estado capitalista reformar profundamente o capitalismo. Durante uma crise, é do interesse da elite ter uma maior intervenção do Estado na economia. É do interesse de todos os salários subirem, para que a procura continue alta. Mas não é necessariamente do interesse de todos pagar mais aos trabalhadores, portanto o Estado intervém para criar as condições para isso. Enquanto a natureza dessa intervenção for na direção dos interesses de grandes grupos, as condições que deram origem à crise não vão mudar. Por isso é que me foco tanto na democracia. Isso também significa dar voz às pessoas nos processos de tomada de decisão.

Na última crise, países como Portugal suportaram níveis profundos de austeridade. Esta viragem para um keynesianismo não é um bom desenvolvimento?
Depende. É essencial para o capitalismo continuar a existir. As implicações de os governos não gastarem mais teriam sido totalmente catastróficas, com enormes implicações políticas. A questão é de que forma esse poder orçamental está a ser usado. No Reino Unido, milhões de libras têm ido para grandes empresas, muitas das quais distribuíram dinheiro para os acionistas e despediram trabalhadores, enquanto pessoas com apoios sociais quase não conseguem sobreviver ou pagar a renda de casa. E isso torna-se mais importante quando temos uma política monetária expansionista, que está a puxar pelo preço dos ativos e a gerar enorme desigualdade de riqueza. A segunda pergunta é: o que acontece depois? Toda a gente acha que se deve gastar mais durante uma crise. Mas… e depois? Voltamos à austeridade? No Reino Unido, vários políticos já sugeriram que é algo a que querem voltar. Não nos livrámos dessa ideologia, essa ideia de que o Estado é como uma família e que só pode gastar aquilo que recebe.

Depois de um ano com Estados tão interventivos e apoios sociais tão relevantes, os eleitores serão mais exigentes em relação àquilo que os governos podem fazer?
Esse é o potencial positivo. Se as pessoas se conseguirem organizar e reagir contra essa narrativa de que o governo só pode gastar o que tem, reconstruir um movimento laboral, começar a reconstruir as instituições democráticas e se disserem que não vão tolerar mais cortes… O que me preocupa é que os partidos continuarão a governar para os interesses dos setores mais ativos do eleitorado, os mais velhos e com mais dinheiro. Podemos acabar por ver uma coisa parecida com a crise anterior: vamos proteger a vossa pensão e o preço das vossas casas através da política monetária, mas vamos também cortar os gastos com educação, saúde, apoios sociais… Acabando por não apoiar os mais pobres que, de qualquer forma, não votam.

No seu livro questiona se este sistema ainda é de mercados livres, notando que a mão invisível foi substituída pelo punho de ferro. O setor privado está viciado em apoios públicos?
Isso é verdade. Se tomar como exemplo o quantitative easing [compra de dívida e outros ativos pelo banco central], o capitalismo não conseguiria sobreviver se os grandes bancos centrais começassem a diminuir os seus balanços.

Parte dos problemas poderiam ser resolvidos com uma revolução fiscal, por exemplo ao criar impostos sobre a riqueza.
Seria importante. Mesmo que seja liberal, há muitos argumentos a favor de um imposto sobre a riqueza num tempo de quantitative easing. Muita daquela riqueza tem sido gerada pelos bancos centrais. É muito injusto o top 1% absorvê-la sem pagar impostos, quando enfermeiras e médicos têm de aceitar cortes. Além disso, vamos tributar essa riqueza para financiar a infraestrutura que vai apoiar a transição para uma economia de neutralidade carbónica. Não é preciso ser socialista para achar que é razoável fazê-lo. Não estou otimista sobre a possibilidade de um imposto sobre a riqueza, mas é algo que a esquerda, e até os liberais, deveriam defender.

Entrámos numa nova fase de confinamento. Que lições aprendemos com as restrições de março e abril?
Temos de garantir que as pessoas que devem ficar em casa podem ficar em casa. Que estão a receber parte do seu salário, que aquelas que perdem o seu emprego são apoiadas e podem pagar as contas, evitar uma onda de despejos como vimos nos EUA, assegurar uma segurança social forte o suficiente para proteger quem tem dificuldades em sobreviver e avançar com níveis altos de investimento no sistema de saúde e no setor social. Provavelmente, vamos ver algumas dessas coisas, mas muito do apoio continuará a ir para grandes empresas e para o setor financeiro. Além disso, os que trabalham na gig economy, com contratos de zero horas, recibos verdes e os desempregados não conseguem aceder a estes apoios. É a realidade de milhões de pessoas.

A União Europeia (UE) tem um programa de recuperação comum, a administração Biden deverá também apresentar um programa de estímulos. Estamos a olhar para as prioridades certas?
O que me preocupa no programa de estímulos dos EUA é que, embora seja absolutamente necessário, a forma como os cheques são enviados não ajuda a combater as desigualdades. Os mais pobres usam-no para comprar bens essenciais, os mais ricos para pagar dívidas ou para investir na bolsa. Deveríamos também olhar para pacotes “verdes” de recuperação que permitam criar empregos. Mas não vi nada muito convincente de nenhum governo.

Nem da UE?
Se puder ser implementado rapidamente, sem grandes cedências, pode ser um passo na direção certa. A proposta de Biden também. Veremos se são implementados. Há mais apetite para algo na linha de um Green New Deal. Se acontece ou não, não depende do que os economistas acham, mas da organização das pessoas para lutarem por isso.

Mesmo num ano de confinamento, com a atividade económica quase parada, houve pouca variação na concentração de CO2 na atmosfera. O que é que isso nos diz?
Mostra que uma adaptação às alterações climáticas através da limitação da atividade económica não é uma boa estratégia, nem será justa. A transição vai exigir algo que não temos ainda: uma enorme mudança nas infraestruturas. Faz sentido investir nessas fontes de energia alternativas. Isso fará diferença, tal como reformas nos transportes, com os carros a deixarem de estar no centro da economia. Permitirá que não tenhamos de dizer a pessoas já em dificuldades que terão de ter e fazer menos. Facilitar a vida de todos e não pedir para reciclarem palhinhas de plástico.

O seu livro parece mais um mapa do que gostaria que acontecesse. Acha que o capitalismo vai mesmo mudar?
A crise de 1929, também por causa da II Guerra Mundial, trouxe grandes mudanças sociais que facilitaram uma transição para um capitalismo mais justo em regiões mais ricas. A crise pandémica pode ser o equivalente a um grande conflito ou a um desastre que definirá uma era, na forma como as pessoas entendem o mundo. Temos de construir um movimento com poder político para pressionar os responsáveis a ouvirem as pessoas. Acho que vamos conseguir. Assim que for possível, haverá uma onda de protesto e ativismo. Basta olhar para o movimento Black Lives Matter.

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