Ao fim de 15 anos de muita música e conversas na rádio Radar, Inês Meneses, 48 anos, deu o salto. E aterrou em casa, num confinamento obrigatório que acabou por lhe saber muito bem. O programa de entrevistas Fala Com Ela (que, em 2015, recebeu o prémio da SPA para melhor programa de rádio) está agora na Antena 1, em que Inês mantém as conversas com o psiquiatra Júlio Machado Vaz (O Amor É) e com Pedro Mexia (PBX, uma parceria Expresso/Antena 1). Nas livrarias está, agora, o seu Caderno de Encargos Sentimentais (com a marca da Contraponto, depois de uma primeira edição de autor), no qual reuniu reflexões, frases e pensamentos que foi espalhando pelo Facebook nos últimos anos (quase sempre com uma música a acompanhar). Na lista de ideias a concretizar, tem agora um projeto de ficção literária que não quer adiar mais (“Uma espécie de puzzle, um PBX gigante, um Magnólia, uma coisa a que vou dedicar-me”). Falámos com ela.
Sente que está no lado errado nesta conversa? A entrevistadora entrevistada?
Mais ou menos. As pessoas é que se habituaram a que eu fosse a pessoa que pergunta, que diz “conta-me…”. Eu tenho sempre uma sede natural por conversas; tudo me interessa, tudo dá para esticar a conversa. Portanto, tanto faz o lado em que estou, gosto de pormenores, de ouvir contar, de contar eu também…
Nos formulários, o que escreve no espaço reservado à “profissão”?
Passei a escrever “comunicadora”. Antes era “radialista”, mas percebi que o importante para mim era comunicar. É essa a minha ideia principal. Mesmo pensando na rádio… O meu gosto especial não é “fazer rádio”, isso por si só não me atrai; eu quero é poder comunicar. Por isso é que, mesmo nas entrevistas do Fala Com Ela, eu acabo por contar também muitas coisas minhas.
Já fez tantas entrevistas, só no formato Fala Com Ela devem ser mesmo muitas…
Para aí umas 400. Em 15 anos… são muitas, sim.
E claro que umas correm melhor e outras pior. O que é um mau entrevistado?
O mau entrevistado é aquele que já traz uma cassete preparada e vem à defesa. É alguém que, por mais que eu tente, nunca me vai dar nada mais do que já disse e do que vai dizendo noutras entrevistas. Isso deixa-me sempre um bocadinho frustrada, mesmo sabendo que o problema não é meu. Resumo muito essa questão dos entrevistados à disponibilidade. Se eles estiverem disponíveis para conversar, para darem alguma coisa, fico muito contente. Agora, há pouco tempo tive uma entrevista com a Maria João, a cantora, e foi uma coisa absolutamente espantosa…
Olha que duas…
Sim, ela também gosta muito de conversar, vinha cheia de vontade de contar coisas, e isso, para mim, é quase alimento – sempre na base do “a sério?!”, “ai foi?!”. Quando as pessoas vêm muito compostas, sem quererem estragar a sua moldura, percebo que nem vale a pena ir por aí. E isso já me aconteceu por várias vezes, sim.
E o melhor entrevistado?
É o que diz tudo. A Rita Blanco, na primeira vez que lá foi, sentou-se, atirou com não sei quê que trazia e começou logo: “Eu nem devia estar aqui! Esperei não sei quantos anos para ser convidada!”. O bom convidado é o que não tem problemas em falar, que não está ali a escolher as melhores palavras, a pensar se o que diz vai ser recordado da melhor forma…
No prefácio do escritor Valter Hugo Mãe ao Caderno de Encargos Sentimentais, ele fala da “menina das notícias” que ele conheceu quando ambos trabalhavam numa rádio de Vila do Conde, aos 16 anos… Foi aí que tudo começou como comunicadora?
Sim, lembro-me de que ficava muito atrapalhada quando entrava no estúdio e estava lá muita gente. Lembro-me perfeitamente da aflição que senti ao ler um noticiário, quando tive de dizer a palavra “Massachusetts” e não conseguia sair dali… Foi aí que fui parar à rádio. O meu irmão [o jornalista João Paulo Meneses] deu-me um empurrão, dizia que eu tinha muito boa voz. Lá está… Só passamos a ter consciência do que somos muito mais tarde. A maneira como nos vemos nessa altura não é nada bem definida. Eu não sabia se era bonita ou feia, ou como era a minha voz… Só conseguimos encontrar-nos depois, sempre com um certo delay. E lembro-me da timidez do Valter na escola; ele escondia-se nos cantos com as suas luvinhas cortadas, porque ele gostava muito do Michael Jackson. Era alguém que quase pedia para não se reparar nele… E estivemos os dois na Rádio Vila do Conde, que depois passou a chamar-se Rádio Linear e que ainda existe. Antes, na rádio rival, a Foz do Ave, já tinha tido um programa só de música portuguesa com o [músico] Paulo Praça, chamado Europeus Modernos…
Faz parte de uma geração que ainda pertenceu a esse mundo analógico, das rádios piratas, por exemplo, ou das máquinas de escrever, mas que se adaptou totalmente ao mundo digital, aos smartphones, às redes sociais, a um modo totalmente diferente de funcionar…
Sim… Lembro-me de que, quando propus ao Pedro Mexia o nome PBX, ele me disse, muito preocupado, que tinha uns primos mais novos que não faziam ideia do que era o PBX. E eu disse, “ótimo, é isso mesmo”. Já somos olhados pelos mais novos, às vezes, como uma aberração, por não conseguirmos fazer coisas que, para eles, são básicas, como ampliar imagens no ecrã com os dedos. Mas adoro o nosso lastro dos anos 80. E confesso que até há coisas novas a que ofereço alguma resistência…
Está a pensar em quê?
Sei lá… Alguns fenómenos musicais que explodem e conseguem milhões de visualizações. Coisas que, para mim, nem são música. Se calhar é injusto dizer isto… Aliás, nunca pensei que, alguma vez, eu dissesse “isso para mim não é música!”, mas dou por mim a dizê-lo. Não vou referir nomes… [risos]. E não queria nada ter esta conversa saudosista!
É curioso que este seu livro junta esses dois mundos: não existiria sem as redes sociais, no caso o Facebook, onde tudo isto foi escrito primeiro. São posts que saltaram para o papel, do efémero para o perene…
Sim, limitei-me a ir à minha timeline e a selecionar textos. O que me preocupava mais, como são posts de vários anos, era pensar “esta ainda sou eu ou não?”. E era. Sempre. Não eram coisas de um instante, de um impulso, sentimentos só daquele momento.
O que é o Facebook para si?
Estou lá desde 2008. Para mim, hoje, é um sítio onde as pessoas destilam imenso ódio, onde escrevem as suas frustrações. É difícil encontrar lá coisas positivas…
Mas como uma ferramenta sua, serve para quê?
Eu hoje uso muito pouco o Faceboook, cada vez menos. Agora, prefiro, de longe, o Instagram, por exemplo. Mas, nestes 12 anos, o Facebook foi como uma montra, sim, e também uma ferramenta que me permitia perceber que conseguia formatar determinados sentimentos numa escrita para uma rede social – alguns até podiam ter dado um conto… Para mim, era um exercício, e era estimulante por isso. Não tinha qualquer obrigação de fazê-lo, mas dava-me prazer pensar: “Olha, isto pode ser uma história bonita, escrita em seis frases.”
Era uma espécie de bloco de notas a que outras pessoas tinham acesso…
Exatamente isso. Sendo que, nalguns casos, essas frases estavam acompanhadas de música ou duma imagem. Algumas histórias nasciam durante a emissão de rádio, outras em casa, mas quando estava a ouvir determinada música…
Neste mesmo livro recorda este post: “Não é pelo facto de o Facebook ser um quintal a céu aberto que o vamos transformar num aterro sanitário.” Já denota alguma desilusão…
Pois. Nem posso realmente dizer que me tenha desiludido, porque não acredito nestas coisas grátis. Nunca me iludi. Por um lado, o Facebook é uma empresa, e quem está à frente dela ia acabar por aproveitar-se de nós, da nossa privacidade, dos nossos dados… Mas, por outro, a haver uma desilusão, é com as próprias pessoas. Coisas perfeitamente inocentes conseguem espoletar uma grande cadência de comentários negativos. O Facebook tornou-se um gatilho, e há sempre um dedo que está disposto a disparar. Por isso, está a ficar cada vez mais tóxico. Mas a grande desilusão no Facebook é o próprio ser humano. No fundo, quem nos desilude são sempre as pessoas que aproveitam aquela montra para revelarem o seu carácter… E o que move, hoje, a maior parte das pessoas no Facebook é a frustração.
Tenho de assumir que adorei o confinamento… Para quem pôde, foi um tempo e estreitamento de laços – noutros casos, terá sido de rutura total
A distância, o lado virtual, ajuda muito a tudo isso. Dizem-se coisas que nunca se diriam numa mesa de café, olhos nos olhos.
Eu tenho um grupo fiel de amigos no Facebook que vou acompanhando e, mesmo aí, às vezes, espanto-me. Um fenómeno como o André Ventura, por exemplo, está a dividir mundos; das pessoas mais inesperadas podemos esperar um comentário surpreendente… Uma coisa que aconteceu durante décadas em Portugal é que as pessoas de direita pareciam ter vergonha em assumir que eram de direita. Quando Trump ganha as eleições, os Salvinis desta vida, os Bolsonaros… muitas pessoas sentiram-se reforçadas. O medo diluiu-se e a direita saiu do armário com estes fenómenos. Fenómenos que foram alimentados nas redes sociais…
Neste livro que é uma mistura aforismos, pequenas crónicas, até poesia, como nota Valter Hugo Mãe, não há também um certo lado de autoajuda? Por exemplo, em frases inspiradoras como: “Não tememos ruas sem sentido, nós é que damos sentido à rua.”
Bom, a minha ideia não é empoderar pessoas enfraquecidas… São coisas que eu sinto, mesmo. Se o Obama dissesse essas frases era genial; como fui eu, sou acusada de escrever um livro de autoajuda [risos]! Mas lembro-me de que, quando compilei os meus posts e os reli, acabei por tirar dois ou três por achar que eram negativos. Não queria nada de negativo neste livro. Seria como dar voz a pessoas que, para mim, não merecem ter voz, por fomentarem o ódio, a discriminação, a xenofobia.
Fala da necessidade de mudarmos a nossa cadeira favorita de sítio, todos os anos, para vermos as coisas de modo diferente. Este ano, não foi preciso mudar nada para vermos as coisas de outro modo… Como tem vivido este 2020?
Com muitas mudanças. Parece que, com a minha saída da Radar, provoquei uma pandemia no mundo [risos]… Foi incrível, porque saí de um trabalho em que estava há 15 anos e tive mesmo de ficar em casa. Foram três meses, para mim, excelentes. Trabalho desde os 16 anos e nunca tinha tido um período tão longo sem fazer nada. Nunca dormi tanto na vida. Consegui desligar mesmo. Adoro esta coisa de não ter horários para almoçar ou jantar; ouvimos música, cantámos, dediquei-me à cozinha, namorámos, fiz aquelas playlists no Spotify… Tenho de assumir que adorei o confinamento. Para quem pôde, foi um tempo de estreitamento de laços – noutros casos, terá sido de rutura total. Veio sublinhar o que era bom e o que era péssimo. Para mim, foi ótimo. Isto sem desvalorizar as dores do mundo, claro.
Há quem acredite que o mundo vai melhorar depois de passar esta fase de doença global, por termos olhado para o que andávamos a fazer mal, por querermos corrigir erros na relação com o ambiente, a economia… Acredita nisso?
No início, cheguei a ter essa ilusão, até porque precisava que essa esperança fosse, também, o meu motor. Neste momento, não acredito muito nisso. Não há segundas ou terceiras vagas, há um tsunâmi gigante em que estamos submersos e não há solução à vista. Nestas alturas, lembro-me de Júlio Machado Vaz a quem perguntei, quando foi a crise financeira de 2008-2009, “não acha que, com tudo isto, vamos mudar e ser mais zelosos em relação às nossas vidas?”. E ele respondeu: “Não, filha, vai tudo voltar rapidamente ao mesmo.” Receio que, agora, isso também seja verdade. Veremos.