Teresa Pizarro Beleza, 68 anos, é uma das vozes mais lúcidas da academia portuguesa. Professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que dirigiu, é especialista em Direito e processo penal, criminologia e direitos das mulheres e da igualdade social. Mas os seus interesses, e o seu olhar atento sobre a sociedade e o mundo, vão muito além destas áreas. Uma conversa a partir de Refoios do Lima, Alto Minho, com as tecnologias a atalhar a distância que a Covid-19 impõe.
Alguma vez pensou voltar a ver decretado o estado de emergência em Portugal?
Não, não havia razão para pensar nisso.
A democracia desajuda na contenção de uma pandemia como a de Covid-19?
Não. A democracia não desajuda, antes pelo contrário. As grandes crises de fome no mundo aconteceram em países não democráticos, como lembra num célebre texto o grande economista e filósofo Amartya Sen. A China atrasou a luta contra o vírus por ter ditatorialmente silenciado e perseguido o médico que o descobriu e que veio tragicamente a morrer infetado por ele.
Conhece bem Marcelo Rebelo de Sousa: como acha que ele se sentiu? Esteve bem na gestão desta crise?
Não faço qualquer comentário pessoal sobre o Presidente da República. Como cidadã, observei que houve um momento em que – ou assim me pareceu – Marcelo mostrou uma vulnerabilidade a que os portugueses não estavam habituados, mas que, creio, se mostrou mais “humano”, menos “super-homem que não dorme e tem inesgotável energia”. Talvez isso se tenha até tornado mais querido a muita gente. Mas em breve recuperou: a sua voz a anunciar as razões da declaração do estado de emergência era firme e serena, o que imagino que terá sossegado muitos.
António Costa disse que as pessoas não têm bem consciência do que significa estado de emergência. Concorda com ele?
É natural que não tenham, porque é algo a que, em Portugal, felizmente, as pessoas não estão habituadas. O ano de 1975 está já muito longe e, em qualquer caso, a situação e o contexto eram completamente diferentes dos atuais. Uma coisa me parece clara: muita gente não tem consciência do que significa a situação de perigo para a saúde pública (e, logicamente, de cada um) que levou à declaração do estado de emergência. Esta situação de separação entre as pessoas e de confinamento, em espaços tantas vezes totalmente inadequados, em conjunto com a preocupação com os nossos mais velhos e as nossas crianças pode ser dificilmente tolerável. É muito difícil manter o equilíbrio e a serenidade neste contexto tão complicado.
Que memórias tem do estado de emergência em 1975?
Apenas vagas e indiretas, porque não estava em Portugal. Vivia em Inglaterra. Mas recordo-me que uma das minhas irmãs estava à beira de dar à luz e partiu de Lisboa para o Porto para poder ter um parto um pouco menos complicado. Felizmente, correu tudo bem.
Por que razão as pessoas tendem a acreditar que as leis proibitivas são a cura para todos os males sociais, económicos, políticos?
Há múltiplas respostas a esta pergunta. O instinto de proibir, a crença no poder do Direito e das suas regras, a ilusão da centralidade dessas mesmas regras, o peso de um regime autoritário de longos 40 anos em Portugal que deixou marcas muito fundas no nosso país, a religiosidade que se associa à ideia de proibição, pecado ou punição, a vontade de vingança, a tentação de distinguir entre “nós”, os bons e obedientes cidadãos e “eles”, os prevaricadores… Precisaria de muitas páginas para, pelo menos, tentar dar uma explicação clara e verosímil…
A ilusão de que a declaração do estado de emergência resolve a pandemia ou pode esconjurar o inevitável colapso do mundo como o conhecíamos há algumas semanas é um risco. Não pode, nada pode
Existiu alguma divisão esquerda/direita no pedido inicial a esta medida. A direita a exigi-la mais cedo e a esquerda mais reticente. Como explica isto?
Se existiu – não medi –, a explicação parece relativamente simples, embora, mesmo em Portugal, nem a esquerda nem a direita sejam unitárias. Em termos gerais, a esquerda tenderá a recear a perda de liberdades e de direitos e a perpetuação tendencial dessa perda. A direita estará mais preocupada com a segurança do que com a liberdade (sobretudo uma parte da direita, é claro) e aceita mais naturalmente um regime mais autoritário, uma democracia mais “musculada”, para usar um eufemismo hoje de novo corrente.
A [primeira] versão que foi implementada pelo Governo é uma espécie de estado de emergência light?
Há, claro, graus possíveis de limitações aos direitos e liberdades quando se decreta uma qualquer variação de “estado de exceção”. O Governo terá tentado reunir condições que lhe pareceram importantes, ou mesmo essenciais, para controlar a pandemia e minorar o risco de colapso da economia. Também creio que terá ponderado, em termos táticos, a necessidade de atender a um certo clamor de autoridade gerado pelo muito compreensível medo e pela perceção de que muita gente não parece, ainda hoje [dia 23 de março], perceber a gravidade da situação e os verdadeiros e muito reais riscos de contágio, doença e morte.
E quais são os riscos de implementar uma medida destas?
Excessos de autoritarismos, tentação antidemocrática, reversão incontrolável de avanços sociais, erros de cálculo. A ilusão de que a declaração do estado de emergência resolve a pandemia ou pode esconjurar o inevitável colapso do mundo como o conhecíamos há algumas semanas é também um risco. Não pode, nada pode. George Orwell em 1984 ou Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo ficariam espantados connosco e com a nossa forma de viver, mesmo antes desta crise provocada por este ser minúsculo e invisível. Se nos vissem hoje, pensariam que, afinal, erraram por defeito…
O que teme mais?
O que escrevi num post do Facebook talvez já há cerca de um mês, segundo creio: temo que a democracia seja a primeira grande vítima do que estamos a viver. Da pandemia e do estado de emergência. A democracia é uma complicação, implica diálogo, negociação, paciência, ouvir atentamente os outros que pensam de modo diferente de nós, o respeito pelas minorias, compromissos entre pontos de vista tantas vezes opostos, liberdade de pensar, fazer, dizer o que quisermos e até o direito ao “disparate”. Com o limite da liberdade dos outros, como diria John Stuart Mill. Mas é a única maneira decente de se viver com os outros.
Que direitos conservam os jornalistas? Como vê que não possam entrar em Ovar, por exemplo? Como podem manter a liberdade de imprensa se não têm livre circulação?
Não podem.
Como se equilibra este conflito de direitos? Esta situação não ameaça seriamente a democracia?
Há situações-limite em que se podem admitir restrições à liberdade de imprensa, ou a outras liberdades. O contexto em que estamos poderá ser uma delas. A necessidade de compatibilizar direitos ou liberdades constitucionalmente protegidos em conflito, aquilo a que por vezes se chama descortinar ou encontrar a sua “concordância prática”, pode justificar a aceitação de exceções normalmente inaceitáveis. Por isso mesmo é, pelo menos, discutível que a declaração do estado de emergência, ainda que numa versão não muito extrema, seja a melhor decisão política, neste contexto. Os perigos para a democracia são reais. Mas também é verdade que todos os contactos evitáveis potenciam enormes riscos de agravamento da situação em termos de saúde pública e do direito à saúde de cada um de nós. Não é uma decisão fácil, não tenho a certeza de qual eu tomaria se estivesse na posição de ter de o fazer.
Qual o papel do Presidente da República como garante de que não existem abusos? O que pode, na prática, ele realmente fazer?
Pode e deve usar o que habitualmente se chama a sua “magistratura de influência”, coisa em que Marcelo Rebelo de Sousa se tem mostrado exímio. Será uma ajuda preciosa para muita gente que se sente apoiada pela sua maneira especial e característica de fazer política.
Os direitos das mulheres são uma das suas áreas favoritas. Como vê o estado da paridade nas famílias portuguesas? Serão elas as grandes penalizadas desta quarentena, com as famílias confinadas em casa?
O lugar mais perigoso para as mulheres, em termos de probabilidade estatística é, paradoxalmente, a casa. Confinadas em espaços pequenos e com poucos meios de “fuga”, algumas famílias tornar-se-ão espaços de inferno e violência de forma mais acentuada do que em tempos “normais”. Familiarity breeds contempt [familiaridade gera menosprezo], dizem os ingleses.
Como vamos conseguir, depois de tudo isto, voltar à normalidade?
Durante muito tempo, não vamos. Portugal e o mundo jamais serão como os conhecíamos há escassas semanas. Mas é bom lembrar que o inferno já existia – e continua a existir – em muitas partes do mundo, do Sudão ao Congo ou da Faixa de Gaza ao Afeganistão ou à Síria e “por aí fora”. Ou em geral nas zonas do globo onde a fome e as doenças evitáveis – além das guerras – matam muita gente todos os dias. É muito difícil, aliás, explicar a uma criança a razão pela qual metade do mundo morre de fome e a outra metade, de excesso de comida. E que as duas metades não são iguais.
A forma como foi feita a abordagem à Covid-19, sem qualquer solidariedade a nível europeu – a Itália foi vetada ao abandono no meio do caos – é a machadada final no projeto europeu, depois do Brexit e da gestão desastrosa da crise dos refugiados?
Provavelmente. Mas a esperança é mania humana que persiste em resistir. Um terreno arde e, na primavera seguinte, o verde teima em reaparecer vindo de debaixo das cinzas. Podem vir “transtornados”, mas até em Chernobyl aparecem seres vegetais novos depois do desastre. Quem sabe haverá lições de solidariedade e de compaixão que poderão atingir e fazer infletir caminho aos mais empedernidos ou distraídos “burocratas de Bruxelas”.
Yuval Harari escreveu, na semana passada, num texto publicado na VISÃO, que faltam líderes globais para combater esta crise. Concorda?
Olhando em volta, na verdade, não vejo grandes “líderes” a nível nacional ou regional. Vejo, aliás, vários que seria melhor que não estivessem lá. Há exceções, e António Costa, em Portugal, é certamente uma. Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, outra. Talvez Justin Trudeau, no Canadá. Ou mesmo Angela Merkel, para voltarmos à Europa. Mas não tenho a certeza de que a existência de “líderes globais” em sentido próprio seja ou fosse grande ideia. A menos que se esteja a falar de inspiração – e aí temos muita, em grandes poetas, músicos, escritores e pensadores. Artistas e criadores de todas as áreas em que os seres humanos se “excedem” na criação da beleza ou na desmontagem do desconcerto do mundo. Homens e mulheres, de todas as cores, feitios e nacionalidades, ou mesmo sem nenhuma. Talvez esteja na altura de mudar o nosso conceito de “líderes”. Lembro, em qualquer caso, que alguns dos maiores líderes políticos foram também (e não por acaso) grandes intelectuais, de Léopold Sédar Senghor e Agostinho Neto a Mitterrand ou Churchill. Ou Amílcar Cabral, ou o atual Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, de quem tive a honra de ser colega e tenho a de ser amiga. Angela Merkel é doutorada em Química Quântica. E penso como Martin Luther King era um extraordinário pregador, que James Baldwin poderia tê-lo sido se o não tivessem perseguido, Angela Davis ainda hoje fala, escreve e pensa de forma brilhante. Ou como Mandela foi um ser de exceção “extremamente único”, e como Indira Gandhi ou Benazir Bhutto eram mulheres determinadas e grandes líderes, também assassinadas por isso mesmo. Agora já não há “gente” assim? Há claro, é preciso estar atenta e procurar. Há promessas eloquentes, como Malala e Greta Thunberg, ou mesmo o jovem Miguel Duarte, que insiste em ajudar os migrantes e refugiados perdidos no mar, desafiando leis injustas e inumanas.
Acredita que estes tempos difíceis serão combustível para os populismos?
Obviamente.