A 9 de novembro de 1989, os alemães de Leste iniciaram uma debandada rumo à zona ocidental de Berlim, momento que marca a queda do muro que separava a cidade e as duas Alemanhas. Nessa altura, pensou-se que a implosão da Cortina de Ferro e do mundo comunista levariam a que todos os muros fossem derrubados. A realidade demonstrou o contrário. Três décadas depois, o número de grandes barreiras fronteiriças aumentou de cinco para 70.
As novas fronteiras “já não são linhas defensivas militares contra a invasão de Estados”, explica Reece Jones, diretor do jornal Geopolitics e professor no departamento de Geografia e Ambiente da Universidade do Havai. “Agora, servem de proteção contra o movimento de indivíduos descritos como sendo uma ameaça para os sistemas políticos, culturais e económicos.”
Foi para contestar as “restritivas e mortíferas” políticas de imigração nos EUA e na Europa que este académico coordenou uma obra extraordinária, acabada de publicar, com 20 autores e 284 páginas, Open Borders: In Defense of Free Movement. Ele que já havia escrito outros livros de referência, como Violent Borders: Refugees and the Right to Move, está já a preparar o próximo, para provar que as leis de imigração nos EUA, desde as primeiras aprovadas em 1875, “têm tudo que ver com a raça”.
A queda do Muro de Berlim gerou a esperança de que até as pequenas barreiras viriam a ser derrubadas. Construir fronteiras era considerado um anacronismo em democracia...
O número de muros erguidos nos últimos 30 anos evidencia a mudança de objetivos das fronteiras na era da globalização. Como documentou a minha colega Elisabeth Vallet [autora de Borders, Fences and Walls], no final da II Guerra Mundial, havia apenas cinco muros em todo o mundo. Em 2000, havia 15, mas hoje já são 70.
Com muros em tantos locais diferentes, é impossível fazer generalizações sobre todos eles, mas estas estruturas são, muitas vezes, uma reação contra a globalização. Sempre que pessoas, ideias e capitais se movem pelo mundo, alguns sentem o desejo de recuar para recuperar e ter um maior controlo. Isto vê-se no Brexit mas também na resistência a acordos de comércio livre e na reação à imigração.
No caso da Europa, qual é o principal objetivo para a construção de mil quilómetros de muros em toda a UE – “a fronteira mais mortífera do mundo”?
Os muros são ineficazes na tentativa de travar qualquer movimento. Sem guardas, são facilmente derrubados ou trepados com uma escada. Os muros fortemente vigiados por guardas fronteiriços e equipamento de segurança podem impossibilitar o movimento em determinados pontos de acesso. Alguns estudos indicam, todavia, que a militarização de uma determinada zona da fronteira apenas desvia o movimento para outra, geralmente mais perigosa – é o chamado “efeito funil”. Ora como estes novos locais remotos são mais perigosos, há uma relação direta entre segurança fronteiriça e mortes de migrantes. Fugindo da violência ou das más condições de vida nos países de origem, as pessoas vão continuar a migrar, mas a sua viagem tornar-se-á mais mortífera. A agência Associated Press registou 14 mil mortes de migrantes em todo o mundo, entre 2014 e 2018. É claro que a culpa por estas mortes é atribuída aos políticos e às agências fronteiriças que aplicam as novas leis contra a imigração. Ainda recentemente, foi apresentada uma queixa contra a União Europeia, no Tribunal Penal Internacional, por “crimes contra a Humanidade” nas suas fronteiras. [No processo, apresentado em 4 de junho por dois advogados, Juan Branco e Omer Shatz, acusa-se, em particular, França, Itália e Alemanha de, ao tentarem travar imigrantes vindos da Líbia, terem contribuído para a morte de pelo menos 14 mil pessoas.
Segundo o Transnational Institute, em Amesterdão, a extrema-direita na Europa “tem manipulado a opinião pública, criando medos irracionais em relação aos imigrantes, uma xenofobia que ergueu muros mentais nas pessoas”. Como se deve enfrentar este desafio?
Tudo se resume ao medo. A extrema-direita tem sido capaz de criá-lo e de usar informações falsas para ver as suas posições apoiadas. Não nos esqueçamos, porém, de que eles não representam a maioria em nenhum país. Como se constatou nas eleições europeias de maio, os partidos da extrema-direita atingiram o limite ou até perderam votos na maior parte dos países.
Os EUA precisam de imigrantes, o país assiste ao menor crescimento demográfico dos últimos 80 anos. Mas Donald Trump insiste no muro com o México…
Estou agora a escrever outro livro, sobre a raça e as leis de imigração nos EUA. Embora muitas pessoas pensem que estas leis sejam normais em qualquer país, no caso norte-americano, a primeira lei tinha tudo que ver com a raça, especificamente com o objetivo de afastar as pessoas não brancas. As primeiras duas leis nacionais, Page Act, de 1875, e Chinese Exclusion Act, de 1882, proibiam a entrada de imigrantes chineses no país. E a primeira grande lei de imigração, Johnson-Reed Immigration Act, de 1924, estipulava quotas com base na origem nacional, interditando toda e qualquer imigração asiática e restringindo duramente outros imigrantes, exceto os que vinham do Norte e da Europa Ocidental. Num artigo publicado no New York Times, o promotor desta lei, David Reed escreveu: “A partir deste momento, a composição racial dos EUA torna-se permanente.” O que agora estamos a assistir é ao regresso a essas normas do passado, com Trump e os seus aliados a usarem a política migratória para restringirem a imigração não branca.
Acaba de publicar Open Borders: In Defense of Free Movement. Porque continua esta missão que considera “idealista”?
Parte do meu trabalho como professor é ter uma visão mais alargada de um determinado tema e não me deixar arrastar pelas políticas do momento. O sistema de Estados soberanos é um desenvolvimento político relativamente novo: os primeiros Estados com fronteiras emergiram na Europa no século XVII e espalharam-se pelo mundo em meados do século XX.
[O antropólogo norte-americano] James C. Scott, no seu livro Against the Grain: A Deep History of the Earliest States, mostra que a atual configuração política só existiu para 0,2% da História. Portanto, há razão para acreditar que, no futuro, aparecerá um novo sistema que substituirá o atual. A norma da existência humana é a migração. A anomalia é uma fronteira fechada. Em Open Borders, eu começo por interrogar se o movimento é ou não um direito humano fundamental, e concluo que é. Embora, no nosso atual momento político, possa parecer idealista defender o direito de todos os seres humanos a moverem-se livremente por todo o mundo, esta é a posição moral justa que todos nós deveríamos defender.
O que aconteceria se, devido a uma guerra, por exemplo, a maioria da população de um país se mudasse para outro? Qual o impacto humano, económico e ambiental de uma política de fronteiras abertas?
Estudos sobre migração têm demonstrado, de maneira consistente, que esta é economicamente benéfica para ambas as partes, independentemente de serem migrantes económicos ou refugiados. Nos países de acolhimento, os imigrantes criam mais empregos, por exemplo, quando arrendam casas ou fazem compras em lojas locais. Segundo um estudo realizado nos EUA, cada imigrante cria 1,2 postos de trabalho adicionais além do seu. A imigração também beneficia os países de origem, porque alivia a pressão sobre a Segurança Social ao mesmo tempo que contribui para a economia com as remessas dos migrantes. Em termos puramente económicos, é inequivocamente positivo defender fronteiras abertas. A oposição à imigração tem, na maior parte dos casos, bases culturais. Os imigrantes introduzem no modo de vida do país que os acolhe novos alimentos, palavras e determinadas tradições, enquanto se integram no seu tecido social. Estas trocas culturais são geralmente benéficas, mas assustam algumas pessoas. Não creio que ter medo de os nossos vizinhos falarem uma língua diferente ou
de seguirem um modo de vida distinto seja justificação para proibi-los de entrarem num país.
Afinal, o que são fronteiras e desde quando é que Estados-nação são por elas definidos? É possível determinar quando se começou a construir muros e como tem evoluído o controlo fronteiriço?
O papel específico desempenhado pelas fronteiras mudou de forma dramática nos últimos 300 anos. Originalmente, na sua maioria as fronteiras eram linhas defensivas militares, em que um Estado posicionava o seu Exército para impedir a invasão de outro Estado. Embora algumas destas fronteiras ainda existam (por exemplo, a DMZ [Zona Desmilitarizada] na Península Coreana ou a Linha de Controlo de Caxemira [que separa a Índia e o Paquistão]), o propósito da maioria das fronteiras, no último século, passou a ser o de delinear espaços de autoridades soberanas separadas. À medida que o sistema de Vestefália de fronteiras mutuamente reconhecidas [depois da Guerra dos 30 anos que devastou a Europa de 1618 a 1648] foi sendo mundialmente aplicado, e particularmente depois da criação das Nações Unidas em 1945, a ameaça de invasão por parte e um Estado vizinho diminuiu substancialmente. E as fronteiras tornaram-se lugares em que diferentes sistemas de autoridade soberana eram institucionalizados e aplicados. Naquela época, os gigantescos projetos de segurança fronteiriça raramente eram necessários porque, na ONU, havia o reconhecimento mútuo da autoridade de cada Estado e não existia uma ameaça iminente que justificasse uma infraestrutura tão onerosa. Nos últimos 30 anos, na era da globalização e da mobilidade do trabalho, o objetivo das fronteiras voltou a mudar, tornando-as novamente linhas de proteção dos privilégios de um Estado. Em vez de linhas defensivas que afastam invasores, as fronteiras servem agora de proteção contra o movimento de indivíduos descritos como sendo uma ameaça para os sistemas políticos, culturais e económicos.
À medida que aumentam as provas de que as mudanças climáticas estão a forçar os seres humanos a migrarem através de fronteiras internacionais, vários Estados têm vindo, com toda a urgência, a aprovar leis e a impedir entradas indesejadas. Este novo objetivo mudou profundamente
o modo de construção e de patrulha das fronteiras, com a mobilização de mais pessoal e investimento numa vasta gama de tecnologias militares e de segurança, monitorizando, identificando e bloqueando movimentos não autorizados.
Há um século, Franz Kafka descrevia a Grande Muralha da China como “um fracasso da imaginação humana”, mas muitas pessoas ainda olham para esta colossal estrutura com enorme admiração. Porquê?
Os muros funcionam como símbolo. Eles removem todos os medos que as pessoas possam sentir sobre ideias abstratas, como a globalização, a imigração, a insegurança económica e as mudanças culturais. Instintivamente, Donald Trump percebeu o poder dos muros como símbolo de “nós e eles”. É, por excelência, símbolo da exclusão nacionalista.
Qual das barreiras, vedações ou fortificações erguidas desde 1989 pode hoje ser considerada o novo “Muro da Vergonha”?
Todas!