Por estes dias, Maria Elisa Domingues anda ocupada com a divulgação do seu último livro, 40 Anos do SNS, um desafio que recebeu do Governo para assinalar as quatro décadas do Serviço Nacional de Saúde. Faz sentido. Foi num programa que a jornalista coordenava e apresentava na RTP que António Arnaut falou pela primeira vez do projeto de SNS. E os seus livros anteriores – Viver com Fibromialgia, Amar e Cuidar e Confissões de Uma Mulher Madura – são também guias para uma vida saudável.
Aos 69 anos, Maria Elisa decidiu escrever as suas memórias, nem que tenha de continuar a roubar tempo à tese de doutoramento sobre produção de telenovelas. Sente a “obrigação moral” de o fazer, diz, e o marido, o advogado americano Sanford “Sandy” Hartman, já está habituado a vê-la atarefada. “O que vale é que ele tem para aí um ano de impeachment para se entreter”, dirá já depois de terminada a entrevista.
Há pouco, enquanto estava a ser fotografada, ouvi alguém murmurar: “Olha, a Maria Elisa.” Mesmo agora que já não aparece com regularidade no ecrã, as pessoas metem-se consigo?
Os portugueses gostam sobretudo de falar com alguém conhecido. Mesmo no auge da minha fama, e fama entre aspas porque não gosto de me pôr em bicos dos pés, houve um episódio que foi uma lição para a vida. Entrei num táxi, o senhor olhou para trás e começou: “Conheço-a de qualquer lado, não conheço? Ah, é a Fátima Campos Ferreira! A Judite de Sousa? Hum, já sei, é a Dina Aguiar!”. Aí, eu disse logo: “Finalmente, o senhor adivinhou!” e ele ficou radiante.
Então não a aborrece ser confundida.
Há aquela expressão engraçada: a pessoa “dá” na televisão. Temos um bolo de pessoas que “dão” na televisão, e quem não perceber isto e ficar ofendido por ser confundido está desgraçado porque, tirando Cristina Ferreira ou Manuel Luís Goucha, as pessoas “dão” na televisão.
Às vezes até gostava de passar mais despercebida?
Quando estava no auge da fama e tinha idade para namorar bastante, era complicado. Mas tive a sorte de não haver tantos social media como há agora, portanto ainda pude, com alguma discrição, estar com uma pessoa e ninguém se meter comigo.
Não se metiam nunca?
Algumas vezes meteram-se, mas diria que foram mais as vezes em que isso não aconteceu. E, hoje, a principal razão que leva as pessoas a virem ter comigo é a fibromialgia. Quase não consigo ir a um supermercado, onde a população feminina ainda é maioritária, sem dar uma consultazinha.
Pois é, esteve dois anos em Medicina antes de ir para a RTP. Ganhámos uma jornalista e perdemos uma médica de família?
De família não, porque queria ser psiquiatra. Agora, olhando para trás, acho que podia ter dado uma boa médica, pois gosto de pessoas e sei ouvir, mas saber ouvir também é preciso para a nossa profissão.
Na sua geração ia-se muito para médico, advogado ou engenheiro. No seu caso, podemos falar em vocação ou houve influência paterna?
Total influência. O meu pai era engenheiro geógrafo, mas tinha tido um primo médico, um primo direito, que era como se fosse seu irmão, que se suicidara por amor aos 30 e tal anos. Era uma história bonita, mas silenciada. E eu, como era a herdeira daquele primo, fui sempre pressionada para vir a ser médica.
Uma pessoa mata-se por amor? Não é por não estar bem?
Eu acredito que alguém pode matar-se por amor, completamente. E nem é por causa desta história, porque nunca soube pormenores. O meu pai nem assumia que o primo se suicidara.
Estamos a falar de um pai conservador?
Estamos a falar de um pai comunista e conservador. O meu pai era das pessoas mais inteligentes que conheci e nunca acreditou na queda do Muro de Berlim! Morreu pouco tempo depois e achava que não passava de uma ficção, de fake news. Era um homem de esquerda, mas conservador do ponto de vista dos costumes, uma espécie de Álvaro Cunhal 2. Já a minha mãe era politicamente semelhante, mas católica.
Junta-se um pai comunista e uma mãe católica e dá o quê? Aliás, deu duas vezes o quê? Porque a Maria Elisa tem um irmão mais novo.
[Risos.] Só sei que deu dois filhos de esquerda, mas a minha mãe evoluiu ao longo da vida e tornou-se mais realista. No fim, ela que tinha sido contra as nossas separações, dizia ao meu filho para nunca se casar. Mas havia coisas de que não se falava. Entre divorciar-me aos 28 anos e voltar a casar-me aos 62, nunca disse à minha mãe que tinha um namorado. Houve um que tive de apresentar, porque se tornou público e era muito mediático, mas fomos todos jantar e ela fingiu que não percebia. Os meus pais eram pessoas um pouco estranhas.
Que princípios cultivavam?
A verdade acima de tudo. E ainda o rigor, a exigência, a justiça. A minha mãe era aquele tipo de pessoa que estava na praia e, se visse uns pais a tratarem mal um filho, ia ter com eles, insultava-os e, depois, se continuassem, era capaz de chamar um polícia se houvesse um por perto.
Sei que fez a primária em casa porque o seu pai estava sempre a trocar de terra. Não era chatíssimo estudar em casa?
Era a tal exigência, mas aprendia facilmente. Normalmente era a minha mãe que me ensinava, só a Matemática ficava para o meu pai porque ele adorava. Também não havia mais nada para fazer à noite, lembre-se de que estávamos na província.
Que outras recordações guarda de pequena? Como foi a sua infância?
Foi bastante macambúzia. Fui filha única até aos 9 anos e não tinha ninguém com quem brincar. Havia os filhos dos amigos do meu pai, mas até esses eram poucos, por isso brincava sozinha e sem maçar ninguém. A minha mãe contava que chegava a esquecer-se de mim em casa.
Aí pelos seus 10 anos, já teria consciência daquilo que a rodeava. Portugal do início dos anos 60 era um país bom para se viver?
Era um país paupérrimo. Acho que tive sempre muita consciência social, porque os meus pais me explicavam tudo. Lembro-me de que os trabalhadores rurais, a nossa realidade porque vivíamos maioritariamente em montes, no Alentejo, levavam para a jorna uma fatia de pão com uma coisa em cima. Podia ser uma sardinha, um bocado de toucinho.
Mesmo mais tarde, nos anos 70, as crianças morriam que nem tordos – e estou assumidamente a puxar a conversa para os 40 anos do SNS, sobre os quais escreveu agora um livro. Olha-se para trás e percebe-se que, em quatro décadas, houve um avanço civilizacional extraordinário.
Um avanço que tem tudo que ver com o SNS e, primeiro que tudo, com uma geração de precursores dos quais destacaria Baltazar Rebelo de Sousa, Gonçalves Ferreira, que foi seu secretário de Estado, Miller Guerra, Arnaldo Sampaio, Albino Aroso e António Arnaut. Durante a Primavera Marcelista, e estamos a falar de 1971-1972, Gonçalves Ferreira cria uma rede de 300 centros de saúde que vão ser a malha na qual se vai plasmar o SNS de Arnaut. Ainda antes desta reforma, quem faz a primeira radiografia das necessidades do País, em termos de médicos, enfermeiros, etc., é Miller Guerra. Arnaldo Sampaio é o pai do Plano Nacional de Vacinação, uma das razões para as criancinhas não morrerem que nem tordos e para nós termos hoje a esperança de vida que temos à nascença. E Albino Aroso cria o Planeamento Familiar, vital para as crianças nascerem e sobreviverem bem. Todos eles foram fundamentais para depois, em cima disto e já em liberdade, Arnaut fazer a legislação.
Ouvi-a dizer numa entrevista recente que se as pessoas soubessem o que são, por exemplo, os serviços de saúde nos Estados Unidos da América punham-se de joelhos a agradecer o nosso SNS. Como se explica que tenha tão má imagem?
Aquilo que está a criar a má imagem do SNS, e com razão, é o envelhecimento. A sua matriz foi pensada para uma esperança de vida que tem aumentado em todas as décadas. Vão-se criando rolhas aqui e acolá para se estancar a hemorragia, mas não se reviu o sistema. E ele está em risco de colapsar porque não é olhado como um todo. Não acha estranho que não se fale de envelhecimento na campanha eleitoral?
Se Maria Elisa voltasse a ser deputada [foi dois anos, pelo PSD] falaria do envelhecimento?
Não volto, mas falaria com certeza. Fui para o parlamento tentar falar, sobretudo, de problemas sociais e de problemas ligados aos média, e foi a maior desilusão da minha vida.
Hoje faria da saúde o seu cavalo de batalha?
Faria. Repare, o meu último programa na RTP, que durou vários anos, chamava-se Serviço de Saúde e fui eu que escolhi o tema. Portanto, há muitos anos que tudo isto me preocupa. Voltando ao envelhecimento da população, veja como as suas consequências não foram repercutidas na reorganização dos serviços de saúde. Por exemplo, todos sabemos que há idosos nos hospitais com indicação para alta e que ninguém vai buscar. Seria mais barato financiar estruturas de apoio do que mantê-los ali, porque não há nada mais caro do que uma cama de hospital.
Qual foi a maior surpresa que teve ao pesquisar sobre o SNS?
O estado da saúde mental. Quis ser psiquiatra, sempre me interessei pela psiquiatria, o meu primeiro marido é pedopsiquiatra e eu conheço vários psiquiatras, mas não pensei que a saúde mental estivesse tão mal. É o parente pobre do SNS, está uma desgraça.
Quando diz que está uma desgraça…
Não estou a comparar com o que era há 40 anos. Temos um SNS de qualidade e tendencialmente gratuito, capaz de tratar as patologias mais graves, e temos serviços de ponta comparáveis com o que de melhor se faz no mundo. Estou a comparar com o que seria desejável, nunca, por amor de deus, me ponham a dizer que está pior do que há 40 anos. É mentira e odeio as pessoas que dizem essas coisas. Na saúde mental fez-se uma coisa muito importante que foi desinstitucionalizar, mas transinstitucionalizou-se.
É uma tendência internacional.
Sim, não a inventámos, mas o problema é que muitos dos doentes mentais passaram dos hospitais psiquiátricos para lares, onde as pessoas não têm formação para os receber. Elas veem-se aflitas e sedam-nos. E eles estão ali, pum, pum, pum, cheios de medicamentos, a ver televisão, e alguns até estão atados para não fugirem. Foi bom acabar com os sítios confinados só para os ditos maluquinhos, mas era preciso pensar para onde iriam. E isso até estava pensado e escrito, porque nós temos leis para tudo: eram pequenas comunidades de pessoas que teriam uma fase de adaptação e depois ficariam numa chamada residência assistida. As comunidades existem, mas em número superdiminuto, e por isso a maioria dos doentes está em casa, o que representa um sofrimento horrível para as famílias.
Já prometeu que vai escrever as suas memórias. Não tem medo de indignar ou de magoar alguém?
Tenho algum, mas considero que, como profissional de televisão, tenho um testemunho a dar porque desbravei muito caminho, tenho essa obrigação moral. Fui a primeira mulher a fazer uma série de coisas, e isso muitas vezes teve um preço sobre o qual na altura não podia falar. Tive muita sorte e gente que confiou cegamente em mim, não foi tudo só pesado, mas por trás havia pessoas que a única coisa que tentavam era pôr-me cascas de banana.
Qual é a imagem que quer deixar?
Não tenho nenhuma ideia para o meu epitáfio. [Risos.] Só quero ser honesta até ao fim. As pessoas acharam toda a vida que eu era uma durona na profissão e não sou nada, nunca fui.
Talvez por causa das entrevistas aguerridas. Era a nossa Oriana Fallaci.
Fallaci detestou o dr. Álvaro Cunhal, chamou-lhe mentiroso… Eu gostei. Não concordava com ele em coisa nenhuma, mas era um charmeur, com a maior delicadeza, um senhor. Tenho saudades de pessoas assim. Um Cunhal é irrepetível, um aristocrata da política como houve poucos.
E um Mário Soares?
Era outra coisa. Um dos namoros mais acidentados da minha vida, e longo, de seis anos, foi com um grande amigo do dr. Mário Soares. Uma vez, ia entrevistá-lo na RTP e, quando ele chegou, quis falar comigo e toda a gente achou que estava a tentar impingir-me um tema, porque quando era primeiro-ministro tinha o hábito de pedir: “Veja lá, se não se esquece de perguntar” isto ou aquilo. Mas naquele dia trazia-me um recado do meu namorado, porque eu estava zangada e ele adorava gossips de namoros.
Hoje, olho para si e vejo uma mulher serena, feliz, e quero apostar que o amor tem alguma coisa que ver com isso.
Vou dizer-lhe uma coisa: nesse dia da entrevista ao dr. Mário Soares, eu estava despedaçada porque era uma história difícil. Agora estou novamente casada e tenho um amor tranquilo, mas a minha vida amorosa foi muito acidentada.
O amor pesa na sua vida?
Pesa imenso, foi sempre a coisa mais importante, e a morte também. Perdi pessoas muito cedo, e inclusivamente pessoas a quem estava ligada do ponto de vista amoroso.
Mais do que a carreira?
Muito mais. Não estou a dizer que é bom ou que é mau, ou sequer que é uma opção. É o feitio das pessoas, e é difícil a gente escapar ao feitio.
Maria Elisa já disse que as mulheres, quando começam a parecer mais velhas, sentem-se descartáveis. Uma tia minha, que tem 73 anos, comentava no outro dia que se sente invisível e que a sensação não é de hoje.
Há um preconceito enorme em relação à idade e é de toda a sociedade. Acha que, quando me reformei, choveram convites em minha casa? De todo. Mas onde nós, mulheres, mais notamos isso é no olhar dos homens. Sou contra o abuso de poder, no local de trabalho, onde também tive experiências negativas, obviamente, mas não tenho nada contra o cortejar. É muito difícil para uma mulher, que foi alvo de uma certa galantaria masculina, de repente ver que ela acabou de uma forma irremediável e acabou devido à idade.