Aposentou-se quando fez 70 anos, no final de 2017, e desde então é uma vida nova. Do Centro Cultural de Belém (CCB) à Culturgest, nunca o poder moveu Miguel Lobo Antunes, antes uma certa ideia de serviço à comunidade, como explica à VISÃO, arriscando (sem se importar) que lhe chamem velho e reacionário. No princípio da reforma, não foi fácil. Entretanto, já arranjou com que se entreter: pertence ao grupo de trabalho que está a rever o modelo de apoio às Artes e, surpresa das surpresas, é protagonista no mais recente filme de um dos novos realizadores portugueses. As filmagens ainda estão a decorrer, e a sua personagem canta. Consta que o ator até não se tem saído mal nas aulas de canto.
Se tivesse de resumir o que fez durante estes quase 70 anos de trabalho, o que diria?
Foram de facto quase 70 anos, desde que comecei os meus estudos (fiz a primeira classe com a minha mãe, em casa) até me reformar. Sempre considerei que estudar era trabalho; dava-me prazer, mas eu encarava-o como uma obrigação. Depois, a minha vida profissional caracterizou-se pelo facto de quase todas as minhas atividades terem sido resultado de convites de amigos.
Di-lo com orgulho.
Não sei se é orgulho, são circunstâncias da vida. Nunca tive uma ideia de carreira nem tão-pouco objetivos na vida: vou fazer isto, vou fazer aquilo, vou dedicar-me a isto e àquilo. O que sempre tive foi uma certa ideia de serviço – por causa da minha educação católica (e por ter sido um católico muito a sério) mas também porque eram esses os princípios daquele tempo. Lembro-me de, num almoço da minha turma do Liceu Camões, ter notado que a maior parte das pessoas era funcionário público. O que, naquela altura, era uma coisa boa; não por ter reforma no fim do trabalho, mas porque se tratava de um serviço à comunidade. Pode parecer um bocadinho piroso ou lamechas, mas nós vivíamos aquilo assim.
Nem sempre valorizamos o peso que o acaso tem nas nossas vidas?
Na minha vida profissional, sempre foi assim. Quando fui fazer uma biblioteca no Tribunal Constitucional, logo a seguir à Constituição de 1976; quando fui para o Instituto Português do Cinema; quando fui para o CCB. Sempre fui por haver alguém que achou que eu era capaz.
Porque fez a primeira classe em casa, com a sua mãe?
Hoje penso que terá sido por causa de eu fazer anos em dezembro e iria entrar para a escola com cinco anos.
Os seus irmãos também a fizeram?
Não, fui o único. Era o filho mais novo [Nuno e Manuel, os Lobo Antunes mais novos, nasceram mais tarde, em 1954 e 1958, respetivamente] e, segundo dizem os meus irmãos (porque não tenho essa recordação), eu era o preferido. Como era muito meiguinho, a minha mãe quis ter aquele menino perto de si. Mas fez questão de ensinar os filhos a ler. Seguia o livro oficial, não a Cartilha Maternal de João de Deus.
O que o afastou da religião?
Já expliquei isto por várias vezes e, portanto, tenho um discurso, uma cassete, sobre o assunto. Aquela noção de que, fora da Igreja, não há salvação, a ideia da comunidade, que é uma característica da Igreja Católica, é uma construção teológica, por um lado, mas corresponde também a uma afetividade. Isto é, era católico porque pertencia a grupos da minha idade, da Juventude Escolar Católica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC), em que todos éramos católicos. E vivia com muita intensidade aquela relação.
Isso não era o seu ambiente familiar, pois não?
O meu pai nunca ia à missa; a minha mãe ia, mas não comungava. Ia porque, explicou-nos ela, achava que a fé era muito útil para a vida. E quando eu lhe perguntava porque ela não comungava, a mãe dizia que, como era surda, não se conseguia confessar, não percebia o que o padre dizia. Com cinco ou seis anos, eu achava que isto era uma explicação plausível. Quando o último filho deixou de ir à missa, ela também deixou de ir. Vencida. Não tinha conseguido o seu objetivo.
Regressando à sua descrença…
Depois de me casar, com uma mulher, a Margarida [Vieira Mendes], que não era católica, continuei a ir à igreja e a seguir uma experiência de diálogo com Deus. Mas estava sozinho nisso, porque deixei de ir à JUC. E, de repente, comecei a pensar: isto é tudo uma construção minha. Para mim, até então, tinha sido evidente que Deus era o Criador e, de um dia para o outro, Deus já era a criatura. Foi muito pacífico, não me deu qualquer angústia.
Ainda por causa da reforma, ficou desorientado quando se viu sem horários?
No princípio, fiquei completamente baralhado, deprimido e triste. Depois, descobri que os reformados tratam de assuntos. A saúde começou a ter outra importância, desloco-me de transportes públicos, todos os dias tenho de fazer o almoço e o jantar. E tudo isto passou a ocupar muitas mais horas do meu dia. Dantes até podia pensar que tenho em casa muitos discos para ouvir, muitos livros para ler e muitos DVD para ver. Agora, quando começo a olhar, penso que não consigo estar o dia inteiro a ouvir música ou a ler.
Formou-se em Direito e acabou por ser programador e gestor cultural.
Nem isso eu sabia muito bem o que era…
Hoje, os programadores que estão na moda são os informáticos. Escrevem em código.
Cada vez mais, os programadores culturais também escrevem em código [risos]. Enfim, é o meu ponto de vista.
Isso merece ser desenvolvido.
Foi na Europália, em 1989, que eu comecei a fazer qualquer coisa parecida com o que hoje se chama programação. Não havia programadores nem curadores; havia comissários. Era assim que se chamavam. E ninguém tinha essa profissão; eram pessoas que faziam várias coisas e que, depois, alguém dizia: “Olha, tu és bom para isto.”
Era alguém que exercia aquelas funções durante aquele tempo?
Exatamente. Na Europália, o Eduardo Prado Coelho, um intelectual, era responsável pela literatura e teatro. O José Ribeiro da Fonte ficou com a música e a dança. A Simonetta Luz Afonso tinha as exposições, dirigia o Palácio Nacional de Queluz e julgo que, nessa altura, já tinha sido presidente do Instituto Português de Museus. Não gosto da palavra, mas a verdade é que eu pertenço a uma geração que foi pioneira, isto é: não havia formação nem prática nem experiência. Até há pouco tempo, eu era o matusalém; agora que me reformei é que deixei de o ser; já não faço parte desse grupo [risos].
Porque, do seu ponto de vista, os programadores culturais de hoje escrevem cada vez mais em código?
Uma das razões que me levaram a sair da Culturgest foi porque eu acho que vivo noutro tempo. Chegou outra geração, e as coisas mudaram muito. Normalmente, as pessoas mais velhas têm o hábito de dizer em relação àquilo que é novo: “No meu tempo é que era bom!” Encaramos com estranheza tudo o que os outros fazem de maneira diferente de nós. E reagimos, dizendo: “Não percebem nada disto.” Quando vi que isto me estava a acontecer, disse para mim próprio: “É tempo de ires embora, estás mesmo velho e, ainda por cima, estás convencido de que eles estão a fazer mal.”
.. És reacionário.
És reacionário. Todas as épocas têm o seu jargão, claro, mas eu não gosto daquele jargão; não consigo escrever daquela maneira, não consigo falar assim, não consigo pensar daquele modo, não consigo ter aquelas ideias daquela forma. É neste sentido que eu sinto que há também uma mudança de linguagem dos programadores – sobretudo quando escrevem, quando formulam o que querem fazer.
“Conheço isto, isto é bom, se eu fosse a vocês, ia ver.” Convive bem com uma certa vaidade associada ao ato de programar?
Escolher é excluir; não é possível programar sem escolher. O que é necessário é ter critérios na escolha; a seleção não pode ser arbitrária, obedece antes a critérios e a imensos constrangimentos (financeiros mas também, por exemplo, do próprio espaço, da disponibilidade, da gestão do próprio espaço). Em geral, os programadores procuram uma aprovação dos seus pares sob uma lógica de programação.
E é aí que são vaidosos?
Parece-me que, por vezes, acham que são artistas. Isto traduz-se em várias coisas: por um lado, julgam que a programação é uma criação, que aquelas escolhas têm, no seu conjunto, um ponto de vista criador. Não o dizem exatamente assim, mas acho que é o que está subjacente. Depois, por outro lado, consideram que devem dizer aos criadores o que fazer. Por vezes, isso é bom; há encomendas que resultam em obras muitíssimo boas. Nunca fiz assim e, em geral, as pessoas com quem trabalhei também não faziam assim. Procurávamos sempre o que os criadores queriam fazer. Cada vez mais, porém, generalizou-se essa hipótese. Não estou a dizer que isto não seja bom; o que digo é que há uma vaidade do programador que, por vezes, no seu discurso e na sua atuação, se impõe aos criadores.
Como se fosse uma arte.
Exatamente. E eu acho que não é; julgo que é um intermediário entre as pessoas – aquilo que habitualmente se chama público – e os artistas. O que o programador faz é permitir um encontro; é esse o seu papel, o mais discreto possível. O programador deve desaparecer.
No seu entender, quando se decide apresentar um determinado espetáculo, é pior ser presunçoso ou popularucho?
Julgo que uma coisa não se opõe à outra. O que é essencial é conhecer. Esta discoteca, por exemplo, resulta da necessidade de eu conhecer para, depois, poder escolher a música que apresentava. Esse conhecimento é indispensável, porque, em princípio, quanto mais eu souber, mais hipóteses tenho de fazer boas escolhas.
E o que é uma boa escolha?
Isso tem que ver com os espaços. No CCB, tínhamos um auditório com 1 400 lugares, um equipamento que custara um balúrdio e que, por isso, não podia ser apenas para meia dúzia de pessoas. Precisávamos de ter uma programação muito diversificada, com imensos espetáculos de entretenimento no Grande Auditório; caso contrário, era um desperdício. Na Culturgest, sempre tentámos, muitas vezes sem êxito, que houvesse espetáculos mais abertos do que outros, que eram nitidamente para grupos mais pequenos de pessoas. Resumindo, não é uma questão de ser popularucho: se tivesse de programar o Teatro Villaret, teria de fazer espetáculos populares; não tenho nada contra isso. Aliás, sou completamente contra a ideia de que o que eu gosto ou aquilo que as pessoas acham é que é o mais interessante…
As pessoas…?
Uma espécie de nomenclatura que diz “aquilo é que é bom”, “aquilo é que vale a pena”. Sinto que existe esse pensamento, o de uma certa superioridade intelectual e que, às vezes, é mesmo moral, sobre os desgraçados que não gostam de Menina e Moça – ou que não gostam de Os Maias, coisa horrível, quem não lê Eça é uma besta… A primeira vez que isso ficou muito claro para mim foi no CCB, a propósito do Ballet Nacional de Espanha. Todos nós – intelectuais, ainda por cima de esquerda – dizíamos que aquilo não tinha nível. E um dia eu fui ver: o CCB estava cheio, as pessoas estavam felizes, radiantes; era um bom espetáculo, bem dançado e bem coreografado.
Concorda com a ideia de que esse público poderá, depois, ir ver outros espetáculos?
Não, isso é falso. Lá porque foram ver o Ballet Nacional de Espanha, as pessoas não irão ver dança contemporânea. Há imensas coisas que se dizem que não se baseiam em conhecimento empírico.
Uma criança que frequente ateliers de artes não vai tornar-se num fervoroso adepto de exposições?
Não, porque entretanto o seu percurso de vida levou-a para outros lados. Dos estudos que eu conheço, o que está provado é que existe algo que influencia: a prática permanente de atividades artísticas, isto é, uma criança que toque um instrumento vai assistir, com maior probabilidade, a concertos quando for crescido. A prática, e também o ambiente em casa.
Como, no seu entender, é possível alterar esta realidade?
Com mais desenvolvimento, com as pessoas a serem formalmente mais educadas e com mais dinheiro. Porque é que os países nórdicos têm taxas de participação muitíssimo mais elevadas nos teatros, nas óperas…? É muito perigoso dizer isto desta forma, porque pareço elitista; as pessoas ficam a achar que defendo uma atividade cultural para um grupo restrito de pessoas, uma pequena parte da burguesia. Não é nada disso. No meu entender, o fervilhar da atividade criativa que hoje se vê em Portugal, e em particular em Lisboa, é uma preciosidade.
O turismo que está a mudar a vida de Lisboa e do Porto também pode beneficiar a cultura?
O que normalmente se faz para se atrair turistas são espetáculos de rua, festivais de rock ou de música popular, digamos assim, para contrapor à música erudita. Gosto imenso de rock, de pop, de música do mundo. Não estou a desclassificar, mas isso não tem nada que ver com a parte da criação de que estávamos a falar. Ninguém vem a Portugal para ver a Anne Teresa De Keersmaeker ou a Sasha Waltz. Nós próprios, quando vamos ao estrangeiro, o que privilegiamos são as casas, as ruas, a vida da cidade, os monumentos, os museus e os palácios.
Os turistas vão ao Museu dos Coches, mas nunca irão ao Museu de Arte Antiga?
Se tivéssemos um Louvre, as pessoas vinham a Lisboa por causa do Louvre. Mas não vêm por causa do Museu de Arte Antiga. Os turistas chegam cá e o que veem? O cardápio das revistas, sites e aplicações de telemóvel: as vistas panorâmicas, alguns museus e coisas fake, como o Castelo de São Jorge e o Mosteiro dos Jerónimos.
Até que ponto é que o facto de ter sido educado na família que foi, e nomeadamente de o seu pai ter sido quem foi, contribuiu para o ajudar a, digamos, apreciar a Arte?
O meu pai gostava muito de música, de literatura e das chamadas belas-artes, fosse pintura ou escultura, mas detestava sair e, apesar de gostar muito de música, nunca ia a espetáculos nem a concertos. Ele adorava, quase obrigava, que os outros gostassem do que ele gostava. Com ele, aprendi bastante sobre música e literatura.
De que é que ele gostava?
Na literatura, sobretudo dos clássicos, Eça, Ramalho Ortigão, Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Do século XX, considerava tudo desprezível, nada chegava aos calcanhares do Eça. Outra componente importante da sua influência era o facto de ele estimular a competição. Numa fase em que o meu pai já tinha uma instalação estereofónica, costumava gravar excertos de concertos e de sinfonias numa bobina. Nós íamos lá e ele dizia: “Identifiquem.” O que, para mim, era sempre uma humilhação, porque, apesar de ser o único que tinha música no quarto (dava explicações e, na mesma loja onde o meu pai tinha comprado a sua instalação, comprei um leitor de cassetes), nunca sabia nada. O António, que estava deitado no seu quarto a olhar para o teto, sabia sempre tudo. A propósito disto, lembro-me de uma coisa que uma vez um amigo, que também era de uma família só de rapazes, me falou e sobre a qual eu nunca tinha pensado: a competição entre os irmãos pelo amor dos pais.
Faz sentido.
Faz todo o sentido. Acho que todos nós andámos numa competição, não consciente, não voluntária, não agressiva, para que os nossos pais gostassem de nós. Em relação à minha mãe, era pacífico, ela gostava de mim; eles todos consideravam que ela gostava mais de mim do que deles.
E como isso se revelava?
É que a influência não é só do meu pai, é também dos meus irmãos: eu queria chegar ao nível dos meus irmãos. E porquê? A explicação que agora dou é: queria que o meu pai me admirasse tanto a mim quanto a eles. E a música, digo eu também agora, era a área em que eu estava mais à frente. Eles não ouviam tanta música como eu, eu estava sempre, sempre, sempre a ouvir música. Talvez houvesse ali um domínio em que, porventura, eu poderia chamar mais a atenção do meu pai. A partir de certa altura, o meu quarto passou a ser o antigo escritório do meu pai, tinha lareira e tudo e, desde os meus 18, 19 anos, ali estava eu fumegando cachimbo como o meu pai, ouvindo música.
Conquistou-o pela música e pelo tabaco.
Não o conquistei; nunca me dei muito bem com ele. Isto na verdade não tem qualquer originalidade; todos nós somos marcados pelos nossos pais. No caso, era uma personagem muito forte. O meu pai marcou-me em muitas coisas, mas noutras foram os meus irmãos que o fizeram. Eu tinha, e tenho, uma admiração enorme pelos meus irmãos. O João, para mim, era e é genial. O António é genial, de outra forma. Não é que eu quisesse ser como eles, mas achava que eles eram extraordinários. São sobredotados, têm dons, uma coisa que ou nunca tive.
E a sua mãe, no meio desses homens todos?
A minha mãe era uma figura apagada. Era suposto que ela fosse burra. Até que todos descobrimos que ela não era nada burra, que era muito inteligente. O meu pai estava em permanente exibição do seu saber. Além de uma grande memória, tinha uma técnica ótima de memorização: falava naquilo que estava a ler e, com isso, fixava melhor.
Como a memória do seu irmão António.
Ao jantar, eles faziam competição. Diziam um poema para que o outro adivinhasse o autor, como se fossem jogos florais. E batiam-se em pé de igualdade, estavam que tempos naquilo: tac-tac, tac-tac, tac-tac.