Começou a escrever um diário por acaso, durante uma viagem em 1993. Engenheiro mecânico de formação, doutorado no Reino Unido, ex-professor do Instituto Superior Técnico, tinha-se tornado, em 1976, diretor-geral de ensino superior. No Ministério da Educação tinha ainda coordenado projetos para o Banco Mundial, o que alargara muito o seu mundo. Em 1995, seria um dos independentes chamados por Guterres para o seu primeiro Executivo, concretamente para a Educação. Mas grande parte da sua vida ficaria ligada à Fundação Gulbenkian, de onde saiu em 2015, ao fim de 30 anos, metade deles como administrador. Agora, aos 75 anos, as notas do diário ajudaram-no a reconstituir todo o seu percurso no livro Quem só espera nunca alcança (ed. Clube do Autor), que acaba de lançar com a jornalista Dulce Neto.
Teve uma vida partidária curta, de apenas seis anos. Porquê?
Entrei para o PS em 1975, após a prisão do general Soares Carneiro. Aquilo impressionou-me, até por estar no serviço militar. Era preciso travar a loucura. Nunca me dei bem com aqueles populismos e esquerdismos. Em 1981, saí, depois da disputa entre Soares e Zenha a propósito do apoio a Eanes nas presidenciais. Interessava-me um projeto, uma ideia. Aquilo da luta pelo poder não era para mim. Nas eleições internas efetuadas na altura até votei em branco. Disse para mim: “Acabou.” E assim foi.
Dá-se conta de que a política é o fio condutor da maior parte
do seu livro?
Sempre me fascinou, mas à distância. Acho a política uma arte de artes, porque tem a ver com tudo. Hoje está, erradamente, muito sujeita ao mundo financeiro, mas ainda tem o seu lugar.
Estende esse fio condutor desde a ida de Humberto Delgado à sua cidade, Castelo Branco, até aos tempos do Grande Houdini, como chama a António Costa.
O Houdini era um mágico que se permitia ser acorrentado e metido dentro de água que, mesmo assim, conseguia sempre libertar-se. António Costa tem uma tal capacidade de negociar que, mesmo quando pensamos que está completamente metido num emaranhado, de repente salta cá para fora.
A propósito do atual Governo diz que, como engenheiro, sabe que podem conseguir-se ótimos resultados “com peças díspares.” Foi o caso?
Estes acordos são muito circunstanciais, feitos para questões concretas. Não são acordos de longo prazo, com fôlego. Vão sendo negociados quase semestre a semestre. Em termos de futuro do País, deixam-me algumas interrogações. Mas lá que os resultados têm sido espetaculares têm. Os mercados olharam com ceticismo no início, mas viram depois que o Governo tinha um drive sobre a situação. Os investidores ganharam confiança, as exportações subiram, há crescimento económico. Embora também seja verdade que o País está a ser muito puxado pelos sinais de recuperação da Europa e pela política do BCE. O Governo passou a ter uma autoestrada à sua frente. Foi um caminho um pouco interrompido no verão.
Devido aos incêndios?
Sim e ao roubo de armas em Tancos. Reagiu de forma muito frouxa e as pessoas sentiram-se um pouco desprotegidas. Agora precisamos de ver o pós-Orçamento, para saber como o Governo encara os próximos dois anos. Creio que o PR, em matéria de controlo orçamental, está muito alinhado com o Governo. Houve ali uma pequena descolagem no verão, quando o PR assumiu, e bem, algum protagonismo. É bom para o País que estejam sintonizados em matéria orçamental, para continuarmos a cumprir com as regras de Bruxelas, o que dá alguma preocupação, atendendo aos partidos que apoiam o Governo, mas é essencial.
Já na juventude, em Castelo Branco, tinha alguma suspeição dos comunistas. Ainda mantém essa reserva?
O PCP ficou muito preocupado com o resultado das autárquicas. Viu que o seu eleitorado não é tão fixo como pensava. Agora quer mostrar trabalho através da sua vertente sindical, sem sequer disfarçar. Mas não creio que o PCP ou o BE possam forçar muito a barra. Quem estoirar com esta solução pode ser o grande prejudicado.
Manteve-se à margem da política, mas conta que, quando Guterres o convidou para ministro, não hesitou 24 horas. Porquê?
Conhecia-o bem do Instituto Superior Técnico. Quando voltei do Reino Unido, em 1969, ele já estava como monitor ou assistente. Era muito genial, tinha sido um aluno fantástico. Depois conheci-o melhor quando estive no PS e fizemos uma razoável amizade. Não hesitei, porque ele era favorável à minha ideia de que cada escola é uma escola, o contrário de um sistema uniforme. Mas, ao fim de quatro anos, achei que já tinha dado o meu contributo.
Mas enfrentou manifestações poderosas contra as propinas. Aliás, eram muito animadas, com cartazes de grilos em gaiolas.
O governo anterior tinha feito uma lei de propinas iníqua, tecnicamente mal concebida. Definia o valor das propinas em função do rendimento das famílias, comprovado através da declaração de IRS, que sabemos como é feita. Em muitos casos tínhamos os filhos dos empregados de empresas a pagarem mais do que os filhos dos donos.
A intenção da lei era boa, mas revelou-se um desastre e suspendemo-la. Depois, quando fizemos a lei de financiamento do ensino superior, fixámos uma taxa para as propinas, que seria o equivalente ao salário mínimo. Demorou muito a negociar com reitores, sindicatos, alunos. Seguiu-se uma contestação forte dos estudantes. Aliás, era sobretudo das associações. Dali a dois ou três meses, a situação estabilizou. E já não há manifestações de estudantes desde praticamente essa altura, o que também é um pouco enigmático. Se só tinham por objetivo a contestação às propinas, acho fraco como argumento.
Como ministro, diz que os seus interlocutores mais difíceis não foram os sindicatos nem os estudantes. Então quem eram?
Quando surgiu o debate sobre a dicotomia entre universidades e politécnicos, havia instituições e algumas pessoas com uma posição contrária à minha. Sempre defendi um sistema binário, com universidades e politécnicos dialogando entre si, mas objetivos diferentes.
O problema vinha de deputados, autarcas, interesses regionais. Foi talvez a única questão em que disse que, se fosse por diante a outra posição, eu sairia. Mas o primeiro-ministro nunca vacilou.
Nas suas idas ao Parlamento constatou que “as pessoas de maior qualidade se sentavam na primeira e na última fila.” Como concluiu isso?
Na primeira normalmente estão os líderes, os que intervêm. Na última sentam-se os que têm um estatuto acima dos outros. Naquela altura, era o caso, no PSD, de Barbosa de Melo, Mota Amaral, Calvão da Silva ou Fernanda Mota Pinto. Não estavam na pequena brega. Eram uma espécie de senadores. Nas outras filas sentavam-se os que estavam aos microfones, telefones, etc.
Do seu governo saíram dois futuros primeiros-ministros (Sócrates e Costa), além de um secretário-geral da ONU (Guterres)…
De Sócrates guardo uma ideia mais vaga. Era secretário de Estado do Ambiente. Foi só uma vez ao Conselho de Ministros falar, salvo erro, sobre a estrutura da faturação da EDP. E tinha uma grande preocupação com as pessoas da Beira Baixa, já que tinha sido eleito deputado pela Covilhã. Com António Costa, que era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, tive um contacto muito mais frequente.
E o que recorda dele?
Era um homem muito brilhante. Na primeira vez que fui ao Parlamento disse-me que fizesse a minha intervenção no início e outra vez no fim, mas que deixasse para ele a ida à luta. Respondi às perguntas e, na parte da brega, de que os deputados tanto gostam, ele esgrimia. Era muito bom a argumentar, um grande parlamentar. Tive com ele uma magnífica relação. Cheguei a levá-lo a uma etapa da Volta a Portugal em Bicicleta, entre Bragança e o Alto da Sra. da Graça. Eu já nessa altura tinha o hábito, que mantenho até hoje, de ir acompanhar a Volta. Íamos no carro da direção e foi um dia inesquecível. Ele gostou, divertiu-se.
No seu tempo no governo tinha como líder da oposição Marcelo Rebelo de Sousa. Conta que consigo ele “não foi um cata-vento.”
Cumpriu todos os compromissos que assumira comigo durante um almoço que tivemos.
Dizia respeito às propinas?
Os compromissos tinham a ver com o pré-escolar, a lei de finanças do ensino superior, que incluía as propinas, e uma alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo. Não só cumpriu tudo, como vim a saber, mais tarde, que o conseguira com a oposição de parte da sua bancada.
No livro conta que o conhecia dos anos 80, embora não se lembre bem de onde, “porque ele está em todo o lado.”
Sinceramente não me recordo de onde. É uma pessoa de uma cordialidade tal que é difícil dizer a partir de que altura nos tornámos amigos. Não me lembro das circunstâncias, mas foi seguramente quando ele estava no Expresso. Lembro-me de uma cena com ele perfeitamente extraordinária.
Então?
Houve um Conselho de Ministros plenário no CCB. A certo ponto saí e percebi que se ouvia cá fora, até na casa de banho, tudo o que se dizia lá dentro. No dia seguinte, um jornal publicou a minha intervenção. Eu tinha dito que o presidente do PSD era uma espécie de lebre, como as usadas no atletismo, para imprimir maior ritmo à corrida. Só que algumas são tão rápidas que o pelotão não as acompanha. Disse que Marcelo era uma espécie de lebre que, a certa altura, já nem o partido o via. Depois, ele ligou-me e disse: “Daqui fala a sua lebre preferida!” Tem um grande sentido de humor.
A maneira como ele tem exercido o mandato surpreende-o?
Não. Nas presidenciais fui apoiante de Maria de Belém, mas aprecio a enorme capacidade que ele tem revelado em conciliar uma Presidência dos afetos com uma Presidência muito estruturada nos grandes temas, a estabilidade governamental, equilíbrio orçamental, representação externa, além de uma grande facilidade em estabelecer pontes. É um dos grandes atores da concertação social. Devemos-lhe muito por isso.
Depois dos 70 anos foi tirar uma cadeira sobre História dos Fascismos. Mantém o seu interesse pela II Guerra Mundial?
O meu pai era germanófilo. Sempre me fez impressão que um homem tão generoso e bem formado tivesse essa posição. Hoje percebo. O mundo era outro, a informação corria de forma muito diferente. O nazismo apareceu para repor uma certa ordem por que as pessoas ansiavam. Depois resultou em toda aquela perversão. Sempre me intrigou que aquilo se tenha passado num país com um nível cultural avançadíssimo, entre pessoas que de dia mandavam matar e, à noite, tocavam piano ou violino. Tenho 200 ou 300 livros sobre a II Guerra Mundial.
Politicamente, como se vê hoje? Como um homem de esquerda, com inclinação para o PS?
Não. Revejo-me muito na definição de Macron. Não sou de esquerda nem de direita. Gosto de coisas de esquerda e de direita. Há uma esquerda cega que ainda não compreendeu que a criação de riqueza se deve sobretudo à iniciativa privada. As experiências de desenvolvimento assentes em projetos coletivos foram um desastre. A esquerda preocupa-se com a redistribuição, mas não com o tamanho do bolo. Só há crescimento quando há inovação e para isso é preciso conhecimento. Mas temos uma necessidade absoluta de combater as desigualdades. A globalização retirou muita gente da miséria, mas aumentou o desequilíbrio entre os que têm muito e pouco.
Em relação à Europa, diz que deposita as suas esperanças em Macron e Merkel. Realmente?
O Brexit foi uma grande machadada, embora creia que o Reino Unido vá ser o principal prejudicado. Quero acreditar que Alemanha e França estarão em condições de relançar um debate sobre o futuro da Europa. Atendendo às posições do PCP e do BE, vai ser um debate difícil em Portugal. Creio mesmo que será o ponto mais difícil para a continuidade de acordos como o atual. Macron é um político jovem, que entrou de rompante e derrotou a extrema-direita. Merkel, em minha opinião, é a política europeia com uma ideia mais sustentada e consistente sobre o futuro da Europa. Não sei se estarei totalmente de acordo com ela, mas tem um projeto europeu.
Diz que os jovens parecem estar um pouco a acordar, como se viu com Bernie Sanders (EUA) ou Jeremy Corbyn (RU).
Pelo menos eles atraíram-nos nas eleições que disputaram. A política não tem sido nada estimulante para os jovens.
E não teriam mais razões para se revoltarem do que os de Maio de 68?
Maio de 68 ainda era muito inspirado pelo marxismo. A URSS tinha atraído muitos intelectuais e estudantes. Hoje não temos grandes ideologias novas. Sanders e Corbyn atraíram os jovens com ideias antigas. Quando Corbyn propõe a nacionalização dos caminhos de ferro, é por opção ideológica ou apenas porque eles funcionam mal? Será interessante perceber como se consegue atrair jovens de Oxford ou Cambridge para propostas do velho Partido Trabalhista dos sindicatos. É um fenómeno que politólogos e sociólogos devem analisar