Professor de Neurociência Cognitiva na University College London, John O’Keefe nasceu em Nova Iorque, em 1939, mas cedo se radicou no Reino Unido. Inicialmente estudou Engenharia Aeronáutica, um interesse que terá talvez contribuído para que, um dia, viesse a conseguir decifrar um mapa de reconhecimento cognitivo, uma espécie de “GPS interior” do cérebro. A descoberta haveria de valer-lhe, em 2014, um dos Prémios Nobel da Medicina. Veio recentemente a Lisboa, dar uma conferência na Fundação Champalimaud, durante a Cimeira Global do alzheimer.
Até que ponto já conhecemos hoje o cérebro?
Há já uns anos, através do uso de técnicas diversas, começámos a ter uma ideia bastante boa do que faz cada parte do cérebro. Quem tiver um tumor na parte de trás do cérebro, habitualmente fica com problemas de visão. Mas, se o tumor ou outra lesão for no lobo temporal, pode ser a audição afetada. Também podemos dizer que partes do cérebro, por exemplo, contribuem para o reconhecimento de faces. E muitas podem fazer isso, embora não todas. Portanto, neste aspeto da localização, sabemos que particularmente a superfície do cérebro, o córtex, parece estar divido em pequenos nichos, que fazem pequenas coisas. E, nalguns casos, até fazem coisas abstratas.
Como quais?
Se estivermos a tentar tomar uma decisão muito difícil, isso envolve os lobos frontais. E para as emoções ativam-se também zonas específicas do cérebro. Através de experiências em animais, podemos observar algumas dessas áreas, como o hipocampo, e ver como um grupo de células fica interessado, por exemplo, num determinado estímulo visual, como um objeto a mover-se em determinada direção. Também já sabemos bastante, sobretudo pelo trabalho da Biofísica e da Biologia Molecular, como as células individuais trabalham. O que nos falta é o cerne de toda a questão, quer dizer, como é que muitas células falam umas com as outras, como interagem, para criar a representação de determinada face, de um som específico, ou de uma peça de música. É muito mais complicado, porque não temos apenas de observar uma, mas muitas células ao mesmo tempo. E estamos apenas no início do uso de técnicas que nos permitirão fazer isso.
Com que técnicas contam?
Temos agora tecnologia, como circuitos de computador, que nos permitem registar eletricamente o trabalho de muitas células. E através da luz, de lasers, podemos iluminar um feixe de células ao mesmo tempo, e tentar vê-las modificar-se, ver o cálcio a entrar quando estão ativas. Com o registo ótico podemos observar não apenas as células em atividade, mas também identificá-las e ver como se ligam umas às outras. Estamos na fase em que podemos ativar células. Nas experiências com animais poderemos levá-los a que, quando virem algo que represente determinado objeto, eles devam fazer algo, como andar para a direita ou a esquerda. Se pudermos impor artificialmente esse padrão, o animal vê algo quando as células são ativadas, assim como as células se ativam quando ele vê alguma coisa. É um passo muito importante para estabelecermos a relação causal entre padrões do cérebro e várias perceções e comportamentos.
É verdade que alguns tipos de memória, como a vocabular, melhoram com a idade?
Depende da idade. Claro que o vocabulário aumenta durante a primeira parte da nossa vida. Se continuamos depois a desenvolver vocabulário ou outros tipos de memória, depende do que fazemos. Isto foi primeiro demonstrado por uma colega da University College London, que fez um estudo com taxistas. Em Londres, eles têm de saber imenso sobre a estrutura da cidade. Na realidade memorizam 25 mil ruas antes de poderem conduzir o táxi. E uma parte do cérebro deles, o hipocampo, foi sempre aumentando de tamanho enquanto eles trabalharam, mas, quando deixaram a profissão, diminuiu de novo. Não se sabe exatamente o que é esse aumento, mas há qualquer coisa anatómico que se desenvolve com o uso. E o mesmo foi já observado noutras profissões. Portanto, penso que, se exercitarmos a memória ou desenvolvermos estratégias para a melhorar, ela aumenta com o tempo. Mas, a certa altura, todos acabamos por sentiremos alguns problemas de memória, porque perdemos todos os anos algumas células e contactos entre elas.
A doença de alzheimer apaga as memórias ou as ligações que dão acesso a elas?
As duas coisas. Estamos ainda na fase das hipóteses, mas creio que muitos concordarão que existem alguns fatores de risco e que, nesses casos, é mais provável desenvolver a doença, como sejam os genes ou certos comportamentos à medida que se envelhece. Mas pensa-se hoje que o processo se desenrola ao longo de muito mais tempo, eventualmente uns 20 anos antes de aparecerem os sintomas. Talvez isto suceda por, numa primeira fase, serem apenas destruídas as ligações. As células continuam a funcionar bastante bem, mas têm dificuldade em comunicar umas com as outras e em formar memórias. Depois, à medida que a doença avança, as mesmas células começam a funcionar menos bem, acabam por morrer e as memórias desaparecem. Uma das coisas que estamos a tentar conseguir é identificar as fases iniciais da doença. Só nessa altura poderemos fazer alguma coisa. Mesmo que tivéssemos hoje uma droga que limpasse algumas das proteínas tóxicas, como a tau, pensa-se que não seria suficiente, porque o dano já estava feito. E um dos problemas com o sistema nervoso dos mamíferos é que os nervos não se regeneram.
O hipocampo é a primeira parte a ser atingida pela doença?
É um pouco controverso, porque parece haver uma zona no meio do cérebro, o mesencéfalo, onde ela talvez chegue antes. Mas o hipocampo é certamente a primeira zona do córtex a ser atingida e, depois, espalha-se daí para outras áreas.
Se o hipocampo é atingido no início da doença, quais são as memórias que se perdem primeiro?
Há vários tipos de demência, mas só no caso do alzheimer o hipocampo é o primeiro a ser atingido. Noutras é o lobo frontal, por exemplo. Pensamos que um dos primeiros sinais de alzheimer é a perda do sentido de orientação, onde se deixou as chaves do carro ou a que sítio se queria ir. Estes doentes perdem a possibilidade de se localizarem no espaço e no tempo, de saberem o que fizeram ontem ou hoje e com quem, o tipo de memórias “o quê, onde e quando”. As memórias episódicas, que se formam com base na própria experiência pessoal, parecem ser das primeiras a desaparecer. Estou muito interessado nos testes relacionados com espaço. Podemos, por exemplo, mostrar a mesma imagem vista de perspetivas diferentes, a ver se o doente as reconhece. E alguns colegas meus estão a usar técnicas de realidade virtual, para perceber se os doentes encontram o caminho. É importante termos testes simples, que possam ser usados pelos clínicos gerais.
Na fase atual pode ver-se a doença através da imagiologia, assim como a evolução?
A melhor maneira de ver as lesões é quando a pessoa morre. Nos vivos só se consegue isso indiretamente, por exemplo medindo o hipocampo, que se vai tornando mais pequeno no primeiro ano ou anos antes de aparecerem os sintomas. E, com análises histológicas (estudos dos tecidos), pode detetar-se a presença nas células das proteínas patológicas, as placas de beta-amiloide ou a proteína tau. Assim como temos marcadores para ver se há vestígios dessas proteínas no sangue ou na espinal medula.
Portanto, pode ver-se a doença e a sua evolução, mas não se conhecem as causas nem o tratamento?
Sim. Há muitas pessoas a tentar descobrir um medicamento que ao menos retarde a doença. As empresas farmacêuticas bem têm procurado, mas até agora sem grande êxito. Seria importante conseguirmos saber quem vai desenvolver alzheimer dentro de dez anos, para tentarmos encontrar a cura. Mas creio que a maioria dos investigadores está sobretudo interessado na forma de atrasar o processo, nem que fosse alguns anos. Já aliviaria o fardo não só dos doentes, como das famílias.
Para a deteção precoce, até que ponto são importantes os testes de orientação espacial?
Estamos vários grupos a trabalhar na orientação espacial. Se acreditarmos que a doença começa pelo hipocampo, pela zona do córtex entorrinal, e que ali estão armazenadas as memórias de orientação espacial e as memórias episódicas, então os testes de orientação espacial devem ser importantes. Têm de ser muito sensíveis, para poderem detetar lesões em pequenas áreas. E isso é difícil. Há quem pense que o hipocampo é uma rede de células, que podem compensar-se umas às outras. Se houver, por exemplo, uma centena de células envolvidas na identificação de um local, poderia perder-se 10 ou 20 por cento delas que não se daria por isso, porque as outras cumpririam a tarefa. Se fosse assim, só conseguiríamos detetar a doença já a partir de certo grau. Mas não creio nisso. Penso que conseguiremos demonstrar, sobretudo com os testes em animais, que é possível detetar alterações em pequenas áreas.
Pensa que os testes encontrarão sinais da doença antes de serem visíveis em imagens?
Esperemos que sim, mas não estamos lá ainda. A nossa ideia seria dar os testes a um grande grupo de pessoas. Depois, se detetássemos pessoas eventualmente em risco, formaríamos um subgrupo, para confirmarmos os resultados através de biomarcadores e de imagiologia. Veremos se conseguimos chegar primeiro. Mas também é verdade que há máquinas cada vez mais sensíveis, que podem observar áreas e alterações mais pequenas do que há cinco anos. E os biomarcadores também são cada vez mais rigorosos.
Mas, se não há ainda uma droga que atrase o processo, porquê o ênfase na deteção precoce?
Penso que a esperança está em irmos conduzindo estes dois tipos de investigação em paralelo. Não serve de muito um bom diagnóstico, quando já não há nada a fazer. Mas também não é muito útil termos uma droga que possa administrar-se nas fases iniciais, sem sabermos quais são os grupos de risco. Esperemos que se consiga avançar nos dois caminhos ao mesmo tempo.
Portanto, é aí que está a centrar-se a investigação?
Sim. Estou particularmente interessado em perceber como se atrasa a progressão da doença. Penso que seja como o cancro. Enquanto o tumor está localizado, não é assim tão grave, mas depois, quando já há metástases, as coisas complicam-se. Se pudéssemos ver como a proteína tau migra para as outras áreas e conseguíssemos impedi-la disso, já seria muito bom. Uma das teorias é que todos temos no cérebro alguma proteína tau e que vai aumentando com a idade. Se a conseguíssemos manter no lugar, seria ótimo.
Quais são as últimas memórias que um ser humano perde?
Existe a ideia de que tanto nos doentes de alzheimer como nos que têm lesões no hipocampo, há uma proteção para as memórias mais antigas da vida. Está descrito um caso muito famoso, o do doente H.M. Tinham-lhe sido removidas cirurgicamente partes do cérebro dos dois lados, para tentar controlar crises graves de epilepsia. A partir daí, ele perdeu a possibilidade de formar novas memórias e desapareceram as dos 10 a 15 anos anteriores.
Mas conseguiu preservar memórias da juventude, como uma viagem que fez pelo sul dos Estados Unidos. Passa-se o mesmo com doentes de alzheimer. Porquê?
Não sei, nem creio que alguém saiba por enquanto. Há quem tenha a teoria de que quanto mais repetimos a lembrança de um episódio, mais pormenores recordamos e, portanto, a memória do acontecimento vai-se tornando maior. Mas é apenas uma explicação.
Portanto, não concorda com a tese de que as últimas memórias a perder-se são as afetivas?
As memórias emocionais, se lhe chamarmos assim, como o afeto pelos familiares, parecem estar armazenadas à parte. Parecem estar associadas a uma parte do cérebro chamada amígdala. Creio que se conservam até mais tarde, precisamente por estarem numa zona do cérebro que só é atingida em fases mais tardias da doença.